Mudança do limite máximo da RPV e sua aplicação aos casos pendentes
20 de junho de 2024, 11h16
A recente alteração do limite máximo das requisições de pequeno valor (RPV) traz implicações significativas para os débitos pendentes de pagamento pela Fazenda Pública. Este artigo analisa como essas mudanças afetam os credores e a aplicabilidade das decisões judiciais anteriores.
Como todos sabem, a Constituição de 1988 estabeleceu, no artigo 100, a sistemática dos precatórios como forma de pagamento dos débitos devidos pela Fazenda Pública que fossem judicialmente reconhecidos. De acordo com essa sistemática, em síntese, os precatórios apresentados até uma determinada data (atualmente 1º de abril) serão incluídos no orçamento do ente federativo devedor do ano seguinte e serão pagos conforme a liberação do orçamento.
Como exceção a essa regra, existem as chamadas “obrigações definidas em leis como de pequeno valor” (artigo 100, §3, CF), também conhecidas como requisições de pequeno valor, que serão pagas em até 60 dias de sua requisição, de modo que a sua quitação será mais célere em comparação ao precatório.
Alteração do limite
Embora o valor limite da RPV federal esteja fixado em 60 salários-mínimos, estados e municípios podem estabelecer seus próprios limites. A Constituição apenas determina que será de 40 salários-mínimos o limite da RPV para os estados que não disciplinem o limite em lei própria, e que para os municípios o limite será de 30 salários-mínimos até que venha a lei disciplinadora do limite (artigo 97, §12º, ADCT).
Com efeito, estados e municípios podem definir um limite abaixo ou acima do limite padrão previsto na Constituição, ou mesmo alterar esses limites ao longo do tempo. O ponto é saber qual o impacto da alteração do limite máximo para as RPVs aos débitos ainda pendentes de pagamento. A hipótese mais comum ao longo do tempo tem sido a redução no limite máximo da RPV, seja em estados, seja em municípios.
Entendimento do STF
Surgiu, então, a discussão sobre quais os débitos seriam afetados por essa redução. O novo limite (menor) se aplicaria aos débitos pendentes de pagamento, ainda que o trânsito em julgado da sentença condenatória tenha se dado na vigência do limite anterior (maior)?
O Supremo Tribunal Federal afetou e decidiu o Tema 792 da Repercussão Geral, fixando a seguinte tese: “Lei disciplinadora da submissão de crédito ao sistema de execução via precatório possui natureza material e processual, sendo inaplicável a situação jurídica constituída em data que a anteceda” . Em outras palavras, prevaleceu o entendimento de que o limite para a RPV vigente na data do trânsito em julgado seria o limite aplicável, ainda que sobreviesse lei alterando o limite.
O caso concreto analisado pelo STF dizia respeito à Lei Distrital nº 3.624/2005, que reduziu o limite das RPVs de 40 para 10 salários-mínimos. Esse entendimento veio sendo largamente aplicado a diversos outros casos envolvendo leis de outros entes federativos, especialmente pela tendência de diminuição do valor limite das RPVs.
Mudança no DF
Calhou ao Distrito Federal novamente reavivar o debate, editando a nova Lei Distrital nº 6.618/2020, que aumentou o limite das RPVs de 10 para 20 salários-mínimos. Surge, então, novo questionamento: a tese fixada no Tema 792 aplica-se também aos casos de aumento no limite das RPVs?
Não tardou que essa discussão chegasse ao STF, o qual definiu, então, que a tese fixada no Tema 792 é aplicável apenas aos casos em que o limite máximo das RPVs é diminuído, o que significa, a contrário sensu, que o referido tema não se aplica quando o limite máximo é majorado.
O leading case da distinção foi a Reclamação 55.307/DF, na qual consignou-se o seguinte: “O debate ocorreu, portanto, sob a perspectiva do direito adquirido à incidência do Regime de RPV nos casos transitados em julgado anteriormente ao surgimento da norma distrital que reduzisse o valor, em face do princípio da segurança jurídica. […] A tese fixada no Tema 792 não se aplica à presente hipótese, onde se discutem as consequências da Lei Distrital 6.618/2020, que aumentou o teto para a expedição de Requisição de Pequeno Valor para 20 (vinte) salários-mínimos”. E não só, o voto vencedor consigna o seguinte:
“Credores com direito ao regime constitucional mais benéfico, por meio do pagamento de RPVs com base na nova legislação, teriam tratamento jurídico distinto de outros credores pelo mesmo valor, somente com base no fator tempo. A diferenciação do tratamento de credores na mesma situação perante o Estado, tão somente com base no fator cronológico e por força da aplicação de tese fixada para solucionar questão de irretroatividade – e não de ultratividade -, ofende ao princípio da igualdade dos credores perante o Estado devedor.
Em termos finais, a manutenção do credor numa ordem cronológica de pagamentos de precatórios com base exclusivamente em norma revogada, traduzirá pagamentos mais rápidos a outros com mesmo crédito a receber, sem um fundamento constitucional a justificar o tratamento diferenciado, insuficiente o critério temporal para tal conclusão.”
A distorção apontada pelo acórdão do STF realmente chama a atenção pela sua relevância. Afinal, qual o sentido de privilegiar credores que demoraram mais para acionar o Poder Judiciário, ou que tiveram uma prestação jurisdicional mais lenta.
Jurisprudência
Nesse mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal também decidiu a Reclamação 54.470, e o STJ possui dois precedentes com a exata mesma compreensão, o primeiro o RMS 68.549/DF, e o mais recente deles sendo o RMS 71.141, no qual o acórdão consigna o seguinte: “o entendimento sedimentado no Tema nº 792 da repercussão geral, segundo o qual a legislação disciplinadora do teto descrito no artigo 100, § 3º, da Constituição da República é inaplicável a situações jurídicas constituídas antes de sua entrada em vigor, somente incide quanto às regras redutoras do respectivo patamar, não alcançando normas que ampliam a possibilidade de quitação das dívidas do poder público sob a sistemática de obrigações de pequeno valor, consoante distinguishing abraçado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal e por ambas as Turmas integrantes da 1ª Seção desta Corte”.
Conclusão
Portanto, não há dúvidas de que o precedente firmado no Tema 792 foi conformado para ressalvar as hipóteses em que o limite máximo das RPVs é aumentado.
Assim, é possível resumir o entendimento do Supremo sobre a matéria da seguinte forma:
1 – Se a lei reduz o limite máximo das RPVs, o novo limite será aplicável somente aos processos ainda sem trânsito em julgado, de modo a que se aplica o limite anterior aos casos transitados em julgado antes da vigência do novo limite;
2 – Se a lei aumenta o limite máximo das RPVs, o novo limite será aplicável aos processos já transitados em julgados.
Ressalte-se, por fim, que além da incoerência sistêmica que seria causada pela existência de credores em fila de Precatório com créditos menores do que o atual limite das RPVs, a segurança jurídica e irretroatividade das leis é um direito fundamental contra o Estado, e não a favor do Estado.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!