Seguros Contemporâneos

Embriaguez ao volante e seguro de vida

Autor

  • Jurandyr Carrara

    é advogado da Prudential do Brasil atuante na área securitária especialmente em demandas contenciosas envolvendo contratos de seguro de vida pós-graduado no MBA de Gestão Jurídica em Contratos de Seguro e Inovação na Escola de Negócios e Seguros (ENS).

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20 de junho de 2024, 8h00

As súmulas editadas pelos tribunais superiores são um resumo de entendimentos consolidados que norteiam a comunidade jurídica sobre a jurisprudência firmada pelo próprio tribunal e, no caso do Superior Tribunal de Justiça, têm a missão constitucional de unificar a interpretação de leis federais.

Em dezembro de 2018, por meio de sua 2ª Seção, o STJ editou a Súmula nº 620 com a seguinte redação: “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida”.

Tendo como referências os artigos 768 do Código Civil (CC) e 54, §§ 3º e 4º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que tratam, respectivamente, sobre o agravamento de risco intencional nos contratos de seguro e das cláusulas limitativas de direito em contratos de adesão, a referida súmula foi editada após o julgamento do EREsp 973.725/SP, quando restou decidido não ser válida a “exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas”.

Dentre outros argumentos, a decisão foi baseada na Carta-circular Susep/Detec/GAB/nº 8/2007, que determinou às seguradoras que alterassem as condições de seus produtos visando à vedação desse tipo de exclusão de cobertura.

Percebe-se que a intenção do regulador foi de proibir as companhias seguradoras de estabelecer como risco excluído, em contratos de seguro de vida, os sinistros envolvendo o consumo de álcool, ou seja, a predeterminação explícita por meio de cláusula de exclusão expressa em contrato, o que foi plenamente atendido por todo o mercado.

Com isso, o segurador não poderia negar a cobertura de forma automática em razão de o sinistro envolver o segurado em estado de embriaguez. Todavia, a partir desse entendimento, iniciou-se a equivocada percepção de que, estando o segurado embriagado, a recusa jamais poderia ocorrer, devendo a súmula ser aplicada de forma objetiva.

Agravamento de risco

Imperioso destacar que a carta-circular surgiu de uma recomendação jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) que, por meio de sua Procuradoria Federal junto à Susep (Superintendência de Seguros Privados), emitiu parecer (nº 26.522/2007) pela impossibilidade de a embriaguez ser objeto de cláusula de risco excluído.

Todavia, foi expressa pela possibilidade de recusa pela embriaguez como agravamento de risco, cabendo ao segurador a produção da prova do nexo de causalidade entre o estado de embriaguez do segurado e o evento danoso. O documento que originou a Carta-circular Susep nº 8/2007 assim atestou sobre o tema:

“Assim, nosso parecer é no sentido de que, salvo alguma peculiaridade do risco coberto, análoga à embriaguez ao volante, seria de melhor técnica contratual considerar o consumo de tais substâncias como agravamento de risco e não como risco excluído. É indispensável a prova a ser desempenhada pela seguradora, do nexo causal entre o estado anormal do segurado e o evento danoso. Não basta que se prove o consumo de tais substâncias que podem levar àquele estado anormal, porque isto não exime a seguradora de pagar pela cobertura custeada com o prêmio já pago pelo segurado, o que seria grave inadimplemento contratual.” (grifo do articulista)

Fruto desse raciocínio, o normativo mais recente acerca do tema, a Circular Susep nº 667/2022, que dispõe sobre as regras complementares de funcionamento e os critérios para operação das coberturas de risco de seguros de pessoas, trata a embriaguez do segurado tão somente na parte relacionada a riscos excluídos, proibindo a particularização explícita dessa condição (artigo 26). Porém, em nada dispõe sobre eventual vedação em caracterizar o fato como agravamento de risco.

Colocada em consulta pública, a nova circular gerou discussões e, instada a se pronunciar, a Procuradoria Federal teceu críticas contundentes acerca do enunciado sumulado pelo STJ, ao concordar com a supressão de parágrafo que visava a proibir a embriaguez como agravamento de risco:

“11. Inicialmente, registro que a Súmula 620 do STJ é específica para seguro de pessoas, não abarcando seguro de danos. Com efeito, é esta a sua redação, verbis: Súmula 620 do STJ – “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.” 12. Para além disso, em que pese o texto da referida Súmula não ter adotado redação técnica apropriada, é fato que o seu conteúdo veda que a embriaguez, nos seguros de pessoas, seja considerada tanto como causa de exclusão de cobertura quanto como causa de agravamento de risco suscetível de levar à perda de cobertura. Note-se que o texto é bastante amplo no sentido de impedir que o pagamento da indenização seja negado em razão de embriaguez, no que termina por abarcar tanto as situações de exclusão de cobertura quanto as situações de agravamento de risco suscetível de levar à perda da cobertura. […] 14. De todo modo, considerando que a redação da Súmula não é tecnicamente apropriada, e tendo em vista a dinâmica da vida prática, tenho que não há impedimento para que o tratamento das situações de agravamento de risco em razão da embriaguez ocorra apenas nos casos concretos. É dizer, não há necessidade que o regulador trate de modo específico essa situação do agravamento de risco em razão da embriaguez. 15. Com isso, é de se concluir que a supressão do parágrafo único do art. 26 da minuta, proposta pela área técnica, não está a agredir o sistema jurídico vigente.” (grifo do articulista)

A Susep criticou a abrangência dada pela Súmula nº 620 do STJ, pois o texto leva a entender que a recusa por embriaguez não poderia ocorrer por risco excluído e também em razão do agravamento de risco. Por esse motivo, acolheu o parecer da Procuradoria, deixando clara a possibilidade de negativa de cobertura em razão da embriaguez do segurado por agravamento de risco, desde que o nexo de causalidade seja comprovado no caso concreto.

Do ponto de vista normativo e regulatório, a Circular Susep nº 667/2022 traz maior robustez ao tema, pois utiliza todo o raciocínio registrado desde 2007 e o “oficializa” por meio de uma circular, e não por mera carta às sociedades seguradoras, datada naquele ano.

Assim, as razões adotadas pela autarquia, que fundamentaram inúmeros julgados no STJ, jamais impediram a negativa do pagamento do capital segurado em casos de constatação e prova, após o evento danoso, de que o sinistro ocorreu em consequência do estado de embriaguez do segurado. Desta forma, não é razoável a tese firmada atualmente, que tem desconsiderado a conduta reprovável do segurado.

Involuntária fatalidade

Em setembro de 2022, o tribunal novamente se debruçou sobre a questão ao julgar o Recurso Especial nº 1.999.624/PR, que também tinha como objeto um acidente automobilístico envolvendo um segurado consideravelmente embriagado (concentração de 16,4 dg/l de álcool etílico no sangue, conforme laudo do exame de necropsia), causando enorme expectativa no mercado segurador.

Em que pese o posicionamento do ministro relator Luis Felipe Salomão, que votou expressamente pela possibilidade de a seguradora produzir prova de que a conduta do segurado configurou agravamento do risco e influiu decisivamente na ocorrência do sinistro, prevaleceu o voto do ministro Raul Araújo, que, mesmo reconhecendo que o acidente decorreu do estado de embriaguez do segurado, aplicou a súmula de maneira automática sob o argumento de que, se cabível a indenização em casos de suicídio (morte voluntária e premeditada), respeitado o critério objetivo/temporal de dois anos, com mais justeza também seria cabível nos casos de involuntária fatalidade.

Araújo reproduziu um trecho do voto do ministro Villas Bôas Cueva, no julgamento do REsp 1.665.701/RS, afirmando que “as cláusulas restritivas do dever de indenizar no contrato de seguro de vida são mais raras,visto que não podem esvaziar a finalidade do contrato, sendo “da essência do seguro de vida para o caso de morte um permanente e contínuo agravamento do risco segurado” (grifo do articulista).

E, continuou, afirmando que “o agravamento do risco pela embriaguez, assim como a existência de eventual cláusula excludente da indenização, são cruciais apenas para o seguro de coisas, sendo desimportante para o contrato de seguro de vida, nos casos de morte”, ignorando totalmente o fato de o artigo 768 do Código Civil, que trata da perda da garantia em casos de agravamento de risco, estar contido na seção das disposições gerais relativa ao capítulo do contrato de seguro, ou seja, aplicável a seguros de dano e de pessoa.

Princípio da fragmentariedade

Um dos princípios basilares do Direito Penal é o da intervenção mínima, que aponta que deve-se proteger apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade, tendo como destinatários o legislador e o operador do Direito, que devem atuar de maneira moderada ao eleger condutas passíveis de proteção penal, não criminalizando fatos que podem ser satisfatoriamente resolvidos com a aplicação de outros ramos do Direito.

Dessa corrente do Direito Penal mínimo, acolhida pelos tribunais superiores, decorrem outros dois princípios: o da fragmentariedade e o da subsidiariedade, que, de acordo com o jurista Cleber Masson, apontam que “a atuação do Direito Penal é cabível unicamente quando os outros ramos do Direito e os demais meios estatais de controle social tiverem se revelado impotentes para o controle da ordem pública” [1]. Como conclusão lógica, uma conduta tipificada como crime para o Direito Penal não pode, para o Direito Civil (Seguros), ser irrelevante.

Segundo levantamento realizado pela ONG Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), apenas no ano de 2021, o Brasil registrou 8,7 internações e 1,2 morte por hora causados por acidente de trânsito provocados pelo uso do álcool, totalizando mais de 75 mil hospitalizações e quase 11 mil óbitos no período [2]. Os dados demonstram a gravidade e a alta lesividade à sociedade e, neste sentido, com os fundamentos que norteiam as normas penais, a legislação brasileira pune tal conduta com o devido rigor.

O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em seu artigo 306, afirma que é crime dirigir com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, atribuindo penas de detenção de seis meses a três anos, além de multa e suspensão, ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir.

Nota-se que, no crime em comento, não há necessidade de que ocorra qualquer acidente ou evento danoso, não se exigindo a comprovação de situação de perigo para a consumação do delito, pois é classificado como de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência. Portanto, basta que haja a simples condução de veículo automotor por indivíduo alcoolizado para que ocorra a presunção absoluta de perigo ao bem jurídico tutelado, qual seja, a incolumidade física e a vida de terceiros.

No ano de 2017 houve significativo aumento no rigor das penas relacionadas à prática delituosa, considerando como qualificadora a influência de álcool em relação aos crimes de lesão corporal e homicídio culposo na direção de veículo automotor, o que resultou na elevação das penas máximas para até cinco e oito anos de reclusão, respectivamente.

A atuação do ramo do Direito Penal não isenta o agente de outras punições, uma vez que, de acordo com o princípio da fragmentariedade, todo ilícito penal também é um ilícito perante os demais ramos do Direito. O mesmo CTB impõe sanções na esfera administrativa e, em seu artigo 165, classifica o ato como infração de trânsito gravíssima, impondo a penalidade de multa no valor atual de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por 12 meses, além de recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, havendo previsão de aplicação dobrada da multa em caso de reincidência no período de até 12 meses.

A rigidez (necessária) da legislação é tanta que o simples fato de haver recusa para a realização do teste ou exame clínico que permita atestar a influência de álcool pelo condutor é punido como se a embriaguez estivesse devidamente constatada, sendo aplicadas as mesmas penalidades.

Com claros reflexos na seara criminal e administrativa, a conduta de dirigir sob a influência de álcool também traz consequências na esfera cível e, especificamente, em relação ao próprio contrato de seguro e à responsabilidade civil das seguradoras.

Em contratos de seguro de automóvel, ao contrário do atual entendimento em casos de seguros de pessoas, eventual acidente automobilístico causado por embriaguez do segurado ao volante ocasiona a negativa do direito à indenização em razão do agravamento de risco, nos termos do artigo 768 do Código Civil, sem qualquer necessidade de comprovação do nexo causal entre a embriaguez e o acidente.

Ou seja, caso o segurador comprove que o segurado estava em estado de embriaguez no momento do evento danoso, o mero ato de dirigir alcoolizado poderá afastar o dever de indenizar. Nesse sentido, citam-se os julgados do STJ: AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1684224/MG, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 7/12/2020, e Recurso Especial 1485707/SP, relator Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 22/11/2016.

Contradição

Portanto, considerando todo o arcabouço legal, regulatório e doutrinário, que proíbe e pune com rigor o indivíduo que assume o volante de um automóvel em estado de embriaguez, bem como gera responsabilidades de ordem criminal, civil e administrativa ao agente, a Súmula nº 620/STJ, tanto em sua redação quanto interpretação, possui total contradição com as leis brasileiras vigentes.

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Ao deixar de considerar um comportamento comprovadamente nocivo à sociedade, e que coloca em risco a vida e a integridade física de terceiros, como agravante do risco, ignora os tipos penais e ilícitos administrativos, e a posição topográfica do artigo 768 do Código Civil que, figurando na seção de disposições gerais do capítulo XV, referente ao contrato típico do seguro, é plenamente aplicável aos seguros de danos e de pessoas. Nesse ponto, é necessário destacar que não cabe ao julgador criar ou inovar a lei vigente, mas tão somente aplicá-la, sob pena de violação do princípio constitucional da separação de poderes.

Ademais, especificamente aos contratos de seguro, o posicionamento incoerente do enunciado prejudica totalmente o direito básico das seguradoras em predeterminar os riscos em suas apólices nos termos do artigo 757, CC, além de contrariar o princípio fundamental da relação securitária, qual seja, o da máxima boa-fé contratual, necessário à manutenção do equilíbrio econômico do contrato e administração do mutualismo.

É impossível um seguro tutelar conduta socialmente nociva e reprovável, estimulando a realização de riscos não moderados e não assumidos pelo segurador, causando, além da perda de vidas, o encarecimento no prêmio do seguro, que levará em conta o risco avalizado pelo Poder Judiciário, prejudicando indiretamente a massa segurada como um todo.

Em conclusão, vislumbram-se duas formas de solução à incompatibilidade aqui exposta: a edição de novo enunciado em substituição à súmula nº 620/STJ, com ressalva que clareie e possibilite a negativa de indenização em razão do agravamento do risco quando comprovado o nexo causal entre o sinistro e o estado de embriaguez do segurado ou, subsidiariamente, a modificação da orientação do STJ acerca do enunciado, restringindo sua aplicação aos casos de expressa exclusão contratual do risco (prática já abolida pelo mercado) ou de não comprovação do nexo causal entre o estado de embriaguez do segurado e o sinistro. Dessa forma, passaria o Tribunal da Cidadania a julgar de forma a desencorajar a conduta de se beber e dirigir, ato que impacta negativamente a vida de milhares de pessoas, e observaria o ordenamento jurídico nacional.

 


[1] MASSON, C. Direito penal esquematizadoParte geral. Vol. 1. 8. ed. Ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. p. 43.

[2] CISA – Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. Álcool e saúde dos brasileiros: panorama 2023. Disponível em: https://cisa.org.br/images/upload/Panorama_Alcool_ Saude_CISA2023.pdf. Acesso em: 10 jun. 2024.

Autores

  • é advogado da Prudential do Brasil atuante na área securitária, pós-graduado no MBA de Gestão Jurídica em Contratos de Seguro e Inovação na Escola de Negócios e Seguros (ENS).

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