Opinião

Cessão de servidores como arma política contra independência do Judiciário

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18 de junho de 2024, 18h28

Da herança clientelista do serviço público brasileiro

Diz-se que os imperativos administrativos mais essenciais da democracia liberal são a isonomia e a impessoalidade do serviço público. Objetivando evitar a captura oligárquica da coisa pública e também impedir que o Estado seja apropriado por grupos particulares, foram criados mecanismos jurídicos para conferir uma maior independência aos agentes estatais, tencionando que ajam sempre em busca do interesse público e com estrita observância dos preceitos legais.

Em tempos remotos, seja no período imperial [1] ou durante as ditaduras cívico-militares, houve uma notável ingerência dos poderes políticos (especialmente do Executivo) no âmbito do Poder Judiciário, com a indicação ad hoc de julgadores parciais e a perseguição aos dissidentes dos respectivos regimes [2]. Assim, na terra do patrimonialismo estamental [3], a Justiça era sinônimo de balcão de negócios entre burocratas e elites locais.

Com o advento da Constituição de 1988, todavia, os comandos de democratização buscaram superar o passado oligárquico-patrimonialista do Estado brasileiro e positivar dispositivos aptos a fazer com que este funcionasse como a máquina orgânica e impessoal idealizada pelos teóricos iluministas de outrora. Dessa forma, foram instituídas garantias orgânicas aos membros do Poder Judiciário (inamovibilidade, irredutibilidade e vitaliciedade) e princípios processuais que prestigiam a independência intelectual (livre convencimento motivado). Ademais, seu quadro de funcionários passou a contar com servidores efetivos de carreira, dotados de estabilidade após três anos de exercício e selecionados de forma objetiva e meritocrática, mediante concurso público de provas e/ou títulos.

Todo esse aparato normativo pretendeu que o exercício do múnus jurisdicional procedesse alheio às rotineiras pressões políticas e econômicas de grupos poderosos. Se, no passado, o quadro de pessoal era formado por “amigos do rei” e favorecia as trocas promíscuas de favores políticos entre os donos do poder, nas quais esses agentes nomeados estavam sujeitos a demissões arbitrárias em caso de contrariedade às ordens de seus padrinhos políticos, o paradigma moderno é de que a estabilidade funcional dever garantir que o Judiciário se mantenha, ao menos em certo grau, blindado em relação à “politicagem” dos detentores de mandato eletivo.

Spacca

Porém, nos últimos anos, os prefeitos e governadores formularam estratagemas políticos de duvidosa constitucionalidade para, novamente, tomar as rédeas da Justiça: a cessão de imóveis públicos e servidores ao Poder Judiciário.

Da cessão de servidores como arma política contra a independência do Poder Judiciário

O gestor público é, naturalmente, menos inclinado a valorizar a expansão do quadro de servidores efetivos, posto que estes consubstanciam evidente óbice para os seus interesses gerenciais. Primeiramente, os agentes estáveis são menos suscetíveis a ceder a manipulações institucionais no exercício do ofício, se comparado aos exoneráveis ad nutum e temporários, de forma que dificilmente serão utilizados como moeda de troca entre figuras de influência governamental. Por conseguinte, os servidores concursados podem se revelar um problema para as pretensões orçamentárias do gestor, notadamente para a elevação dos benefícios financeiros dos juízes, visto que não podem ser demitidos a qualquer tempo, os seus vencimentos são irredutíveis e os estatutos jurídicos lhes conferem inúmeras garantias pecuniárias para o desfruto de uma vida digna.

Logo, em lugar de realizar concursos públicos rotineiramente para preencher seus quadros funcionais e viabilizar a prestação satisfatória da atividade judiciária, a cúpula do Judiciário opta pela opção mais conveniente politicamente: a ampliação do número de comissionados/temporários nos seus quadros e a extensiva admissão de cedidos de prefeitura.

Cumpre indagar, a princípio, o motivo pelo qual um chefe do executivo municipal cederia tantos servidores para o desempenho de funções em outro Poder Estatal, muitas vezes mantendo a responsabilidade pelas suas remunerações ou parcelas destas (cessão com ônus para o cedente), e a própria disponibilização de imóveis municipais para a instalação de Varas e Centros Judiciários. A razão, lamentavelmente, não é a boa vontade na contribuição para a melhora do sistema judicial, mas o capital político investido nessa empreitada: o Judiciário passa a ficar submisso aos interesses da classe política.

A influência, ainda que subconsciente e psicológica, é indubitável. As demandas de improbidade administrativa para responsabilização de agentes municipais e as ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública serão analisadas sob outras perspectivas, não estritamente jurídicas, e as suas respectivas consequências/sanções restarão constantemente sopesadas (leia-se: minoradas), a fim de que o pacto político entre os diferentes poderes não entre em atrito e ponha em cheque essa questionável simbiose.

Caso houvesse qualquer desapontamento por parte dos chefes políticos, bastaria pôr termo final à cessão de servidores e reaver os imóveis disponibilizados, observados os requisitos legais e contratuais. Dessarte, os gestores judiciários se tornam mais temerosos em perder a camada barata, maleável e acessível de servidores cedidos e imóveis gratuitamente transferidos.

Em um só ato, os tribunais ferem de morte a moralidade administrativa (ao negligenciarem o acesso aos quadros do Judiciário mediante processo seletivo objetivo e isonômico) e a impessoalidade pública (ficando reféns de demandas políticas do Legislativo e do Executivo locais). As conquistas democráticas da Carta Magna de 1988 vão, sorrateiramente, sendo suplantadas pelas velhas forças políticas municipais.

Resta questionar se os tribunais superiores e, principalmente, o Conselho Nacional de Justiça estão comprometidos com a luta pela independência e probidade do Poder Judiciário, contra a captura política pelas classes oligárquicas, através da sedimentação de uma jurisprudência sólida e de uma fiscalização eficiente contra os números abusivos de cedidos e comissionados que encontram-se usurpando as atividades técnicas a finalísticas de servidores efetivos [4], em detrimento dos postulados sacramentados nos artigos 37 e seguintes da Lei Maior.

Apenas com o assentimento desses órgãos superiores será possível evitar que caiam em ostracismo os ideais republicanos e liberais outrora concebidos pelo constituinte originário.

 


[1] Ainda eram vistos resquícios dos privilégios medievais nos primórdios do Império brasileiro, com amplo domínio exercido pela Coroa sobre as decisões judiciais, vez que Pedro de Alcântara dotava de legitimidade para nomear os juízes de direito, assim como suspendê-los e modificar o conteúdo decisório de suas sentenças. (LORENZONI, Lara Ferreira, Tribunal do júri no banco dos réus: a luta por uma justiça cidadã – 1. ed – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 61).

[2] A exemplo da supressão do status constitucional do Tribunal do Júri na vigência da Carta Constitucional de 1937, durante o Estado Novo, e a cassação de ministros do STF na ditadura militar (https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/stf-nunca-foi-fechado-mas-teve-ministros-cassados-pela-ditadura-militar/).

[3] Termo cunhado por Raymundo Faoro no clássico “Os donos do Poder”, de 1958, para designar a existência de uma camada de fidalgos e funcionários públicos privilegiados que assessoravam o príncipe na formação da monarquia portuguesa. Segundo o cientista social, o Estado brasileiro haveria nascido com os vícios constitutivos herdados pela confusão entre o público e o privado oriunda da gênese do Império português, razão pela qual não conseguia funcionar como ente anônimo e encontrava-se suscetível de apropriação por grupos privados.

[4] Basta conferir os dados anunciados pelo CNJ no “Justiça em Números” de 2022, p. 54 (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf).

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