Acabou a 'saída temporária' na execução da pena privativa de liberdade?
18 de junho de 2024, 13h22
Em 20 de março de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o texto do Projeto de Lei nº 2.253/2022, vindo do Senado, que restringe a saída temporária de presos que cumprem sentença penal condenatória.
A despeito da real natureza do novo texto legal, a maioria dos comentários em torno da proposta legislativa basicamente se referiam à “extinção do benefício”, evidenciando, por esse prisma, de alguma forma, uma certa insensibilidade do legislador quanto a essa temática, que é da maior importância para a sociedade.
Trata-se da Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, que altera a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), para dispor sobre a monitoração eletrônica do preso, prever a realização de exame criminológico para progressão de regime e restringir os benefícios da saída temporária e do trabalho externo.
Com efeito, a matéria foi sancionada pelo presidente da República com alguns vetos, nomeadamente no que concerne às restrições impostas ao instituto da “saída temporária” (revogação dos incisos I e III do artigo 122 da LEP etc.), sob a alegação de violação à Constituição de 1988, que, “ao vedar o aprisionamento perpétuo, sinaliza, por via reflexa, a relevância da diligência pública no modo de regresso da população carcerária à sociedade” [1].
A polarização da sociedade, refletida no ambiente político-partidário, mas não apenas nele, levou à acerbas críticas nos dois sentidos: de um lado, os “progressistas”, mais ligados ao campo político da esquerda, manifestaram-se contrários à modificação legislativa, argumentando que ela viola direitos humanos; do outro, os “conservadores”, afeitos ao campo político da direita, e defensores, às vezes convenientemente, de um Direito Penal mais rigoroso e de uma execução de pena implacável “contra os criminosos”, com discursos laudatórios às mudanças implementadas, apresentando-se, nesse sentido, como paladinos da “lei e ordem”.
Certamente, tais vozes foram refletidas em dois momentos do processo legislativo, quais sejam: 1) no veto do presidente Lula às restrições à “saidinha”, ocorrido em 11/4/2024, ao qual aludimos anteriormente; e 2) na posterior derrubada do veto pelo Congresso Nacional, ocorrida em 28/5/2024, e entendida pelos analistas políticos como uma derrota do governo [2], vale dizer, um revés para o “campo progressista”.
O que diz o texto legal?
Faltou, entretanto, o que lamentavelmente não é incomum em momentos que tais da vida nacional, uma análise cuidadosa não apenas das razões de ser do instituto da “saída temporária” ou “saidinha”, como muitos costumam chamar, mas também do que dizia o texto legal antes de ser modificado e do que passou a dizer por força da mais recente modificação realizada pelo Congresso.
Primeiramente, cumpre ressaltar que a Lei de Execução Penal brasileira (Lei nº 7.210/84), a LEP, logo em seu artigo 1º afirma categoricamente que: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
A Constituição de 1988, realmente, veda a pena de caráter perpétuo (artigo 5º, XLVII, “b”), ao mesmo tempo em que determina a individualização da pena (artigo 5º, XLVI), a ser observada nos planos legislativo, judiciário e executório. E o Código Penal brasileiro estabelece que as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado (artigo 33, § 2º), sendo os regimes de cumprimento de pena o fechado, o semiaberto e o aberto [3].
Visando à ressocialização ou reintegração do condenado à sociedade (prevenção especial positiva), o sistema de cumprimento de pena no Brasil é declaradamente progressivo. Nessa linha, o artigo 112, caput, da LEP, prevê que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido determinados percentuais da pena privativa de liberdade no regime anterior (que é mais rigoroso). E prevê, igualmente, em seu artigo 131, o benefício do livramento condicional, remetendo ao artigo 83 do CP.
Diante disso, longe está a pena criminal de exercer uma mera função de reprovação ou retribuição ao crime, conforme palavras de Hegel, “ao mal do crime, aplica-se o mal da pena”, uma vez que o crime é a negação do direito, sendo a pena “a negação da negação do direito” (isto é, a pena é um fim em si mesmo).
Mais que isso, o Direito Penal, por seu único produto, a pena, cumpre a missão de prevenção (geral e especial), se propondo a exercer funções específicas e efetivas em busca da pacificação social. Tanto que o artigo 59 do CP diz que na fixação da pena (as penas aplicáveis dentre as cominadas; a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; e a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível) o juiz também levará em consideração a prevenção do crime.
No que concerne à “saída temporária”, tem-se que as hipóteses de cabimento do instituto, que é eminentemente de execução penal, sempre estiveram previstas no artigo 122 da LEP, que sofreu modificações ao longo dos anos, produzidas pelas Leis 12.258/2010 e 13.964/2019, e, mais recentemente, pela no início mencionada Lei nº 14.843/2024.
Conforme dicção legal (antes da atual reforma), a saída temporária (sem vigilância direta) se aplica aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto, desde que para: 1) visita à família; 2) frequência a curso supletivo profissionalizante ou de instrução do segundo grau ou superior; e 3) participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
Todas essas hipóteses estavam regulamentadas no artigo 124 da LEP — revogado pela nova legislação —, segundo o qual a autorização seria concedida por prazo não superior a sete dias, podendo ser renovada por mais quatro vezes durante o ano (caput); e quando se tratasse de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída seria o necessário para o cumprimento das atividades discentes (§ 2º).
A Lei nº 14.843, de 2024, todavia, trouxe o § 2º ao artigo 122, que diz: “Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa”, conferindo, assim, maiores dificuldades para a concessão ao condenado tanto da hipótese remanescente de “saída temporária”, quanto de trabalho externo. Trouxe, ademais, o § 3º, assim redigido: “Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante ou de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes” (como dito, disposição antes assinalada no § 2º do revogado artigo 124).
Pá de cal?
A revogação de parte do artigo 122 e de todo o artigo 124 da LEP coloca uma pá de cal em parte significativa do instituto da “saída temporária”, embora não o tenha eliminado por completo da ordem jurídica pátria, uma vez que o benefício foi mantido quando se tratar de frequência a curso profissionalizante ou de instrução de ensino médio ou superior. Vale dizer, unicamente as saídas temporárias para “visita à família” e para “participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social” foram expressamente abolidas pelo legislador.
A saída temporária para o estudo, por sua vez, que estava no § 2º do artigo 124, passou a ser inteiramente regulada no § 3º do artigo 122, seguindo, pois, vigente, mas desde que o condenado não esteja cumprindo pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa (artigo 122, § 2º), ou seja, a nova lei é mais rígida (lex gravior) que a Lei º 13.964/19, que vedava o benefício apenas quando se tratasse de crime hediondo com resultado morte (anterior redação do § 2º do artigo 122).
Lamenta-se a opção legislativa, dado que o inevitável retorno do condenado ao convívio social se torna melhor qualificado quando há uma readaptação em etapas, a partir do cumprimento de requisitos rígidos, devidamente observados no momento da concessão dos benefícios, a fim de que a sociedade tenha tranquilidade e segurança ao receber de volta, definitivamente, o infrator da lei penal.
Nas palavras do professor Cláudio Brandão, “as teorias da prevenção procuram valorizar o homem na medida em que transcendem a pena em si mesma e buscam dar a ela uma finalidade em prol do ser humano” [4]. Ou seja, atende-se perfeitamente a teleologia do princípio da legalidade ao se conferir à pena criminal, para além da função de retribuição da culpabilidade, a função reabilitadora, da qual em alguma medida deflui o sistema progressivo, que se radica na diminuição da intensidade da pena.
Por fim, registre-se que a nova lei tem caráter prejudicial (novatio legis in pejus), de modo que não pode retroagir para os sentenciados antes da sua entrada em vigor. Aliás, esse entendimento (não retroação da lex gravior), no que toca às novas restrições impostas aos institutos da saída temporária e do trabalho externo — de não se aplicar àqueles que cumprem pena por crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa —, recentemente foi aceito no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida pelo ministro André Mendonça no HC 240.770/MG.
[1] Conferir razões dos vetos em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Msg/Vep/VEP-144-24.htm. Acesso em: 10 jun. 2024.
[2] Vejam-se, nesse sentido, dentre muitas outras, as seguintes reportagens: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/congresso-saidinha/#:~:text=O%20Congresso%20decidiu%20nesta%20ter%C3%A7a,%E2%80%9Csaidinha%E2%80%9D%2C%20em%20feriados; https://www.cartacapital.com.br/politica/congresso-derruba-veto-de-lula-e-volta-a-proibir-a-saidinha-de-presos/; https://www.infomoney.com.br/politica/em-nova-derrota-de-lula-congresso-derruba-veto-e-proibe-saidinha-de-presos/. Acesso em: 10 jun. 2024.
[3] Conforme § 1º do mesmo dispositivo legal, “considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado”.
[4] BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 319.
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