Opinião

PL 1.904: viabilidade fetal como marco ao aborto legal decorrente de estupro

Autor

  • Lyzie Perfi

    é advogada criminalista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie associada ao Instituto de Defesa de Direito de Defesa e sócia-proprietária do

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17 de junho de 2024, 16h25

Na última quarta-feira (12/6), em apenas 23 segundos, foi aprovada pela Câmara dos Deputados a urgência na tramitação do Projeto de Lei n° 1.904/24, que equipara o aborto de feto quando houver viabilidade fetal — que será presumida em mais de 22 semanas de gestação, nada impedindo que ocorra antes – ao crime de homicídio simples.

Referido projeto legislativo foi apresentado em 17 de maio de 2024, e altera os artigos 124, 125, 126 e 128 do Código Penal, que se referem ao crime de aborto.

De acordo com a sistemática proposta, caso o aborto seja realizado após 22 semanas de gestação ou caso comprove-se a viabilidade fetal antes de tal marco, as penas aplicadas ao crime — que hoje são de 1 a 3 anos, quando realizado pela própria gestante, ou 1 a 10 anos se realizado por terceiro — passam a ser as mesmas do homicídio simples, de 6 a 20 anos — isso se não se entender pelo homicídio qualificado, ocasião em que haverá exasperação da pena.

Impensável inovação

Não bastante a punição extremamente severa imposta aos agentes, o projeto de lei se tornou polêmico por também prever que referida pena se aplica até mesmo para a gravidez resultante de crime de estupro (ou aborto humanitário), já que, pela inserção do parágrafo único ao artigo 128 do Código Penal, uma vez comprovada a viabilidade fetal ou gravidez acima de 22 semanas, a excludente de ilicitude prevista para gravidez decorrente de estupro não se aplicará.

Spacca

Atualmente, nos termos do artigo 213 do Código Penal, a pena de estupro é de 6 a 10 anos, majorada para 8 a 12 anos caso resulte lesão corporal de natureza grave. Caso a vítima seja menor de 14 anos ou esteja em situação de vulnerabilidade que impossibilite a capacidade de oferecer resistência, a pena é de 8 a 15 anos, majorada para 10 a 20 anos caso resulte em lesão corporal de natureza grave, conforme dispõe o artigo 215 do mesmo diploma legal.

Em aspectos práticos, temos que em relação ao aborto de gravidez resultante de estupro, o legislador passará a punir com mais gravidade a mulher que optar por interromper a gravidez indesejada do que o próprio estuprador, tendo em vista que a pena de estuprador e estuprada apenas poderá se igualar em estupro de vulnerável e caso ocorra lesão corporal grave à mulher.

Isso quer dizer que a pessoa gestante que optar por não seguir a gestação resultante de crime de estupro após as 22 semanas de gravidez ou, uma vez verificada a viabilidade fetal, poderá permanecer privada de sua liberdade por mais tempo que seu agressor. Uma impensável inovação legislativa.

Na mesma esteira, um crime cuja pena inicial prevista ocorreria em regime aberto, passa a ter início, no mínimo, em regime semiaberto, podendo até mesmo se iniciar no fechado caso supere oito anos de reclusão.

Ou seja, aos olhos do legislador, o crime de aborto se realizado após as 22 semanas de gestação — ou antes, caso haja viabilidade intrauterina —, passará a ser mais grave que o crime de estupro, inclusive em relação à própria vítima do crime de violação sexual.

Abertura de precedentes

Não obstante a violência institucional e a revitimização da mulher agredida em contraponto com as últimas novidades legislativas aprovadas pelo Congresso, como a Lei Mariana Ferrerer, a maior problemática para a aplicação da viabilidade da vida intrauterina como termo final do direito ao aborto é a abertura de precedentes para que se questione judicialmente qualquer gravidez em que se acredite existir possibilidade de viabilidade fetal.

Isso porque, considerando as barreiras já impostas ao acesso ao aborto legal, é imaginável que médicos passem a exigir exames de inviabilidade fetal para realização do procedimento, impedindo que a mulher tenha acesso ao aborto legal ou postergando a realização do procedimento até que completem 22 semanas de vida, impossibilitando, dessa forma, sua realização nos termos permitidos em lei.

A limitação imposta na proposta legislativa, também trará insegurança jurídica ao profissional de medicina para a realização do procedimento médico, dificultando ainda mais o acesso ao direito previsto às mulheres, quando não impedindo-o.

Estupros de vulneráveis

Sobre o assunto, ainda é importante frisar que tal limitação imposta ao direito do aborto em casos de estupro irá atingir principalmente as crianças abusadas sexualmente e que venham a engravidar.

Isso porque, de acordo com o anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, em 2022 foram levados às autoridades um total de 74.830 ocorrências de estupros, sendo que desses 56.820 foram praticados contra pessoas em estado de vulnerabilidade, 40.659 delas crianças menores de 13 anos [1].

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Sem embargo, dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS tabulados pela BBC News Brasil em 2020, indicam que o Brasil registra em média seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos [2]. Indicando que, infelizmente, não são raras as vezes em que estupros de vulneráveis evoluem para uma gravidez.

Sobre essas meninas, a interrupção da gestação em estado avançado é mais comum e se deve a diversos fatores tais como a própria ignorância sobre a gravidez, a descoberta tardia pela família, o medo de represálias pelo agressor e a falta de acesso a serviços de aborto legal dependendo da localidade em que a criança se encontra.

Não por acaso, diante de tais fatos, o projeto de lei tem recebido na mídia e pelos coletivos feministas o nome de PL da Gravidez Infantil.

Ofensas a direitos fundamentais

Sob o aspecto constitucional, temos graves ofensas aos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura, ao tratamento desumano e degradante e à proporcionalidade da pena, além dos direitos constitucionais ao planejamento familiar e à saúde reprodutiva da mulher.

Sob aspectos sociais, temos a condenação de mulheres simplesmente por serem mulheres e terem capacidade de gestar, pouco importando se tal gestação ocorre a partir de uma violação corporal, impondo-as á revisitação da dor do estupro ao serem obrigadas a gerar o fruto de um crime.

Importante ressaltar, no entanto, que tal novidade legislativa não parece ser de anseio da população, tendo em vista pesquisa realizada pela Ipsos em 2023, em que o instituto aponta que 70% da população brasileira se mostra favorável ao aborto quando a gestação é resultante de um estupro [3].

À imprensa, o idealizador do projeto afirma tratar-se de um teste ao presidente da República quanto à sua afirmação de campanha de contrariedade o aborto. Isso às custas da dignidade pessoal e sexual de meninas e mulheres agredidas.

Por muito tempo, as mulheres tiveram seus direitos renegados, foram subjugadas e tratadas como acessório a um mundo de lógica machista. O Congresso Nacional, ao que parece, está disposto a jogar novamente a cidadã mulher ao status de inferioridade, colocando seus corpos a favor do Estado, e consequentemente aos homens agressores, sem que haja qualquer oportunidade de Defesa.

 


[1] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf

[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53807076

[3] Pesquisa disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pesquisa-aponta-empate-tecnico-entre-favoraveis-e-contrarios-a-legalizacao-do-aborto-no-brasil/

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  • é advogada criminalista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, associada ao Instituto de Defesa de Direito de Defesa e sócia-proprietária do

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