Público & Pragmático

Tendências apontadas pelo julgamento da ADI sobre a Lei das Estatais

Autor

  • Guillermo Glassman

    é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

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16 de junho de 2024, 8h00

A Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) veio, depois de muitos anos, para cumprir o artigo 173, §1°, da Constituição, que, na redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998, prevê que lei específica deve estabelecer o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços. No que diz respeito à nomeação de dirigente das estatais, a Lei nº 13.303/2016 apresentou conteúdo moralizante, criando, especialmente em seu artigo 17, diversos requisitos reputacionais, de conhecimento, de experiência e de prevenção a conflitos de interesses. Entretanto, como a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, é justo questionar se as restrições para nomeação de gestores das empresas estatais têm cumprido o papel para que foram previstas ou se, para além disso, acabaram por afastar dessas entidades figuras que teriam sido importantes para o seu desenvolvimento.

No que diz respeito aos requisitos para nomeação de gestores, a Lei das Estatais foi decisivamente influenciada pelo contexto da operação “lava jato”. As investigações da operação orbitaram, principalmente, contratos da Petrobras e outras estatais, cujos dirigentes à época possuíam profundas relações político-partidárias com a base de apoio do governo federal. A intenção do legislador foi de evitar ou ao menos reduzir o aparelhamento político das empresas estatais definindo uma presunção absoluta de conflito de interesses. Já mais de oito anos depois do advento da Lei nº 13.303, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre os requisitos para indicação de gestores definidos por ela e sua compatibilidade com a Constituição.

ADI 7.331

Em dezembro de 2022, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) propôs ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob o nº 7.331, para que fosse declarada a inconstitucionalidade, com redução de texto, dos incisos I e II do parágrafo 2º do artigo 17 da Lei das Estatais. O caput do artigo 17 da Lei das Estatais define que os membros do conselho de administração e os indicados para os cargos de diretor, inclusive presidente, diretor-geral e diretor-presidente, das empresas estatais serão escolhidos entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento, ambos conceitos indeterminados, mas melhor concretizados nos incisos do mesmo artigo 17. O § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais, por sua vez, criou restrições adicionais à indicação para o conselho de administração e para a diretoria, fazendo constar de seus incisos I e II vedação à ocupação desses cargos por pessoas nas seguintes circunstâncias:

representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de ministro de Estado, de secretário de Estado, de secretário municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;

pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.

Ou seja, o § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais cria uma regra de incompatibilidade com relação a agentes políticos, comissionados, dirigentes políticos e legisladores; e uma regra de quarentena para aqueles que tenham atuado em estruturas político-partidárias.

A ADI 7.331 insurgiu-se, justamente, contra esses dispositivos, alegando, em suma, ofensa aos princípios da isonomia; da ampla acessibilidade a cargos, empregos e funções públicas; à liberdade de expressão a participação político-partidária; e à autonomia partidária.

Alegações

Especificamente, argumentou o PC do B, em primeiro lugar, que as habilidades e experiências necessárias para implementar as finalidades públicas a que se prestam as empresas estatais dependem de uma gestão com base em capacidades não só técnicas, mas também políticas. Em segundo lugar, prosseguindo o argumento, as pessoas não podem ser penalizadas pelo livre exercício de sua liberdade política. Em terceiro lugar, as restrições impostas pelos dispositivos combatidos colocam-se “como um desincentivo à participação ativa de filiados nas estruturas decisórias de partidos políticos e nas respectivas campanhas eleitorais, o que, no limite, pode levar a um verdadeiro enfraquecimento de determinadas estruturas partidárias”.

Chama a atenção na ADI 7.331 que a Advocacia-Geral da União (AGU) não defendeu a constitucionalidade dos dispositivos, mas, pelo contrário, sustentou que o que eles fazem é “estabelecer uma sanção de impedimento prévia, sem o exercício do contraditório e da ampla defesa estabelecidos no inciso LV do artigo 5° da CF/88, a pessoas em virtude de atividades lícitas e legitima anteriormente exercidas”. Essa posição se destaca porque, como regra geral, a AGU atua nas ações de inconstitucionalidade na qualidade de defensor dos dispositivos legais impugnados, por expressa previsão do artigo 103, §3°, da CF: “Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”. É certo que, desde 2009, o STF passou a entender que esse dever de defesa da lei pode ser relativizado, porém, de forma excepcional [1].

A Procuradoria-Geral da República, por seu turno, defendeu a constitucionalidade dos dispositivos que visam “coibir possíveis conflitos entre interesses institucionais das entidades e interesses político-partidários ou corporativos dos dirigentes de agremiações partidárias” […] “inviabilizando eventuais negociações políticas para a escolha de dirigentes e conselheiros nas empresas governamentais”. Além disso, essa precaução legislativa estaria em linha com recomendações de boas práticas de conformidade lançadas por organismos internacionais como a OCDE.

Cautelar e julgamento

Inicialmente, o relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, deferiu a cautelar pleiteada para declarar a inconstitucionalidade parcial dos dispositivos impugnados, transformando a regra de quarentena numa regra de incompatibilidade restrita àquelas pessoas que ainda participam de estrutura decisória de partido político ou de trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral, e de titular de mandato no Poder Legislativo. A decisão foi fundamentada sob o argumento de que o § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais acabou “por estabelecer discriminações desarrazoadas e desproporcionais – por isso mesmo inconstitucionais – contra aqueles que atuam, legitimamente, na esfera governamental ou partidária” e, por isso, “uma restrição de direitos de tal ordem somente poderia ser estabelecida pelo próprio texto constitucional”.

Entretanto, ao final, prevaleceu a posição da divergência aberta pela ministro André Mendonça, apresentada em sessão do Tribunal Pleno do dia 6/12/2023[2], que argumentou que dirigentes partidários e demais autoridades indicadas § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais merecem tratamento diferenciado, para privilegiar os princípios da eficiência e da boa administração, tornando a discriminação legítima e, por isso, constitucional.

Situações exóticas

A ADI 7.331, que declarou constitucional dispositivos da Lei das Estatais, pode ter impacto relevante no funcionamento da política no Brasil. Isso porque tem feito parte da dinâmica do presidencialismo de coalização brasileiro [3] desde o princípio da redemocratização, a transição constante de quadros da organização partidária para a estrutura da administração direta e da administração indireta – inclusive de empresas estatais. Isso tem sido um dos elementos essenciais à formação das bases de governabilidade do Poder Executivo e torna viável, também, a incorporação dos ideólogos dos planos de governo na praxe administrativa após a eleição de um determinado partido.

Os dispositivos declarados constitucionais levam, na prática, de fato, a situações exóticas. Por exemplo, um economista que tenha participado da elaboração do plano de governo numa campanha eleitoral para Presidência da República poderá ser nomeado ministro da Economia, mas não presidente da Petrobras. Uma explicação para isso pode ser encontrada na defesa dos interesses de acionistas minoritários das empresas estatais e num maior risco de corrupção a que essas instituições estão sujeitas dada a maior flexibilidade de que gozam em suas contratações. Além disso, a competência política tem uma criticidade muito maior para um ministro de Estado que define as diretrizes que guiam, inclusive, as empresas estatais, do que para um dirigente de estatal, de quem se esperar uma competência técnica mais aflorada.

Além dessa perplexidade – no sentido de se poder o mais (nomeação a um ministério) e não o menos (nomeação para direção de empresa estatal) – a regra de quarentena do inciso II do § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais pode ser facilmente contornada. Basta que não se formalize o vínculo ao partido político ou à campanha eleitoral para inviabilizar a aplicação do dispositivo. Esse incentivo à redução da transparência na atuação política para fins de viabilizar a futura atuação em cargos de gestão na administração indireta pode representar o efeito contrário àquele pretendido pelo legislador ao definir as restrições constantes do § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais, especialmente de seu inciso II.

Por outro, é certo que o Brasil precisa ainda evoluir – e muito – em mecanismos que permitam e garantam uma gestão mais profissionalizada, eficiente e ética das empresas estatais, sem com isso impedir ou dificultar o direcionamento político-democrático de sua atuação. Certamente, essa não é uma preocupação exclusiva do campo estatal, já que o mantra do Enviromental (ambiente), Social (social) e Governance (governança), intimamente ligado ao tema em questão, tem dominado a pauta empresarial do Brasil e no mundo nos últimos anos. Novos avanços na governança das empresas estatais podem e devem advir na esteira da ADI 7.331, seja para ajustar os critérios do § 2° do artigo 17 da Lei das Estatais – até o momento mantidas pelo STF – seja para acrescentar novas regras e precauções que apontem para a boa administração da coisa pública. No cenário atual, em todo caso, o STF, mantendo a integridade da Lei das Estatais neste ponto, contribuiu para o avanço na gestão da administração indireta.

 


[1] BRILHANTE, Igor Aragão. Virada jurisprudencial sobre o papel da AGU nas ADIS: contexto e lições. Revista da PGFN. v. 4, n. 2, p. 53–70, jul./dez., 2014.

[2] Sessão disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=_q_AJJ5pABE>.

[3] LIMONGI, F.; FIGUEIREDO, A. Bases institucionais do presidencialismo de coalizão. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 44, p. 81–106, 1998.

Autores

  • é professor, pesquisador, advogado, pós-doutorando na Faculdade de Direito da USP, doutor em Direito pela PUC-SP, MBA pelo Insper, Mestre em Direito pelo Mackenzie, especialista em Direito Administrativo pela Cogeae e certificado em Contratos de Infraestrutura pela FGV-SP.

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