Opinião

Direito Penal (financeiramente) possível: menos é mais efetivo

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16 de junho de 2024, 6h06

A corrente punitivista do pensamento político-criminal, que defende o Direito Penal como o mecanismo de pacificação social mais eficaz e ensejou políticas repressivas como a da “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero”, sustenta que o pensamento jurídico-penal dominante se encontra desconectado da função do Estado de proporcionar segurança pública.

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Segundo alega, o foco da mainstream é proteger o criminoso a partir da construção de um aparato doutrinário e jurisprudencial garantista ao extremo e instigado pelo discurso de que o Brasil prende demais e os estabelecimentos penitenciários não ostentam condições suficientes para cumprir a missão de ressocializar o preso.

Como forma de reação a essa concepção considerada de caráter minimalista há também quem defenda a abolição total do Direito Penal surge o discurso expansionista do Direito Penal [1], com a defesa do acolhimento de novos bens jurídicos (difusos e coletivos) através da tutela antecipada de riscos (crimes de perigo abstrato), o qual enseja políticas criminais mais intrusivas em relação às que decorreram do chamado Direito Penal liberal.

Direito Penal simbólico

Contudo, levando-se em consideração que política criminal também é política pública [2] e que a implementação de políticas públicas demanda realização de despesas, é preciso ter a consciência, em primeiro lugar, de que a escassez dos recursos públicos, presente em qualquer sociedade, é um fator limitador da expansão da tutela penal. E em segundo lugar, que o efeito da quebra das expectativas coletivas decorrente da ausência de aparato estatal suficiente para investigar, julgar e punir poderá abalar a confiabilidade e reputação do Direito Penal como instrumento de pacificação social, o qual acabará por transformar-se em um “Direito Penal simbólico”, carente de respeitabilidade e, portanto, de efetividade.

Nesse sentido, observa Cueva Carrión [3] que a expansão penal, devido ao acúmulo de crimes que ela cria, torna o Direito Penal algo puramente simbólico e não efetivo. Esse efeito desnatura a missão do Direito Penal e faz com que pareça ridículo ao impor objetivos que não são realistas ou realizáveis.

Segundo Hassemer [4],  simbólico, em sua compreensão crítica, consiste no atributo que uma norma penal apresenta, segundo o qual as funções latentes da norma suplantam suas funções manifestas, de maneira a gerar a expectativa de que o emprego e o efeito da norma concretizarão uma situação diversa da anunciada pela própria norma. Por isso, segundo o professor alemão, o Direito Penal simbólico, que tendencialmente abre mão de suas funções manifestas em favor das latentes, trai as tradições liberais do Estado de Direito, em especial o conceito de proteção de bens jurídicos, e frauda a confiança da população na tutela penal.

Da mesma forma, na visão de Sanz Mulas [5], para o Direito Penal eminentemente simbólico, o importante não é lograr que efetivamente sejam evitadas determinadas condutas, mas, sim, conseguir uma sensação de segurança, de confiança, muitas vezes graças aos meios de comunicação, limitando-se a construir mensagens de tutela e garantia frente a uma realidade que realmente lhe é alheia ou que não lhe compete.

Dessa forma, o sistema penal é utilizado como um mero instrumento, conjuntural e político, destinado a tranquilizar inquietudes, inseguranças e inclusive a dirigir a consciência dos cidadãos, assumindo assim um papel que antes era atribuído à ética ou à moral.

Aspecto comunicativo do Direito Penal

Portanto, não se pode perder de perspectiva que a força do Direito Penal decorre do esforço estatal diário para que as normas sejam observadas pela sociedade, o que se materializa em respostas ágeis ao comportamento antissocial. Trata-se do aspecto comunicativo do Direito Penal (preventivo geral) que se vê ameaçado diante da possibilidade de que seja transformado em algo meramente simbólico.

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Contudo, a percepção entre os juristas é a de que o movimento expansionista surge com força e parece difícil de ser contido, na medida em que, diante de um fato de repercussão social negativa, é muito mais fácil, rápido e barato para os governos responderem à sociedade com novas leis repressivas do que efetivamente agir com o aparato já existente para prevenir ou reprimir condutas lesivas.

Devemos reconhecer que é possível que os governos consigam, a curto prazo e sem fazer muito esforço, reverter a percepção de insegurança ocasionada por um evento específico. Entretanto, a criminalização excessiva de condutas, a longo prazo, não se sustenta e, como dito, causará sérios abalos na capacidade de o direito penal comunicar-se com a sociedade.

Direito Penal financeiramente possível

Assim, tomando em consideração as restrições financeiras, principalmente em países como o Brasil, que produziram constituições recheadas de promessas não cumpridas nas áreas de saúde, educação, segurança, habitação, assistência social, entre tantas outras, os recursos escassos destinados às atividades de investigação, acusação, julgamento e execução da pena deveriam concentrar-se nas condutas efetivamente impactantes para os indivíduos e a sociedade, descartando-se a tutela penal de bens não essenciais e de conflitos interpessoais passíveis de serem resolvidos por vias menos onerosas para os cofres públicos.

Então, temos que admitir que o Estado não é capaz de adimplir suas obrigações constitucionais e punir todos os delitos praticados pelos indivíduos? Sim, parece não haver outro caminho. Na verdade, nunca foi e nunca será capaz. Mas é possível melhorar o estado de coisas, se passarmos a aceitar a realidade da escassez de recursos disponíveis e a incorporarmos às políticas criminais e à dogmática jurídico-penal.

A ideia não é inovadora. A noção de “reserva do financeiramente possível” [6], invocada pelos constitucionalistas quando pretendem dimensionar a efetividade dos direitos sociais, pode e deve ser incorporada ao estudo da Ciência Penal, a fim de tornar a norma penal incriminadora mais adaptada à efetiva capacidade de atuação repressora e preventiva do Estado. Afinal de contas, a segurança pública, objetivo final da norma penal, também é um direito social.

Devemos trabalhar, portanto, com a ideia de “direito penal financeiramente possível”, a partir da consideração das reais capacidades preventivas, repressoras e ressocializadoras do Estado que decorrem da escassez dos recursos públicos.

Criminalizar e majorar penas são medidas que não produzem o resultado desejado sem que o oneroso aparato investigativo, acusatório, judicial e de execução penal também funcione. E, quanto mais crime, quanto mais pena, de um lado, mais polícia, mais Ministério Público, mais Judiciário, mais presídios serão necessários, de outro, e o resultado, considerada a escassez de recursos, é menos efetividade, menos respeito, menos prevenção e menor capacidade ressocializadora do Direito Penal, ante a sua evidente incapacidade de gerar temor àqueles que cogitam empreender condutas criminosas e de regenerá-los para o retorno ao convívio social.

Meio-termo

Em suma, a simples e inconsequente criminalização de condutas ou majoração de penas descontextualizadas da real capacidade interventiva do Estado, longe de gerar estabilidade social, ante a escassez de recursos públicos, ainda enfraquecerá a capacidade comunicativa do Direito Penal.

É necessário, portanto, convergir para um termo médio entre as perspectivas punitivista e minimalista de forma a identificar um núcleo duro de atuação do direito penal (financeiramente possível e viável) e, consequentemente, preservar/resgatar sua efetividade e respeitabilidade perante os indivíduos, como instrumento de prevenção, repressão e ressocialização.

 


[1] Para melhor compreensão do fenômeno da expansão do direito penal, conferir: SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Overcriminalization: The Limits of the Criminal Law. Oxford University Press, USA, 2008.

[2] STRAND, Rafael F. Política pública criminal. Tirant Brasil, 2023. CALIL, Mário Lúcio Garcez. A política criminal como política pública: a (re) construção da dogmática penal a partir da “ciência conjunta do direito penal”. Revista do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania, Londrina, v. 3, n. 2, p . 93-110, jul/dez. 2018. SOUZA, Strauss Vidrich de; IFANGER, Fernanda Carolina de Araujo. Política criminal: uma política pública relativa à matéria criminal. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 13, n. 1. p. 292-305, 2023.

[3] CUEVA CARRIÓN, Luis. Las escuelas penales (Spanish Edition) (Locais do Kindle 2287-2293). Ediciones Cueva Carrión. Edição do Kindle.

[4] HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Organização e revisão Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos. Tradução Adriana Beckman Meirelles … [et al.]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2008, p. 221.

[5] SANZ MULAS, Nieves. Manual de política criminal. Tradução de Luiz Renê G. do Amaral e Marina Franco Lopes M. Filizzola. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, p. 64-65.

[6] Segundo Christiane Falsarella, “a expressão “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen) foi utilizada pela primeira vez pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, em julgamento proferido em 18 de julho de 1972. Trata-se da decisão BVerfGE 3 33, 303 (numerus clausus), na qual se analisou a constitucionalidade, em controle concreto, de normas de direito estadual que regulamentavam a admissão aos cursos superiores de medicina nas universidades de Hamburgo e da Baviera nos anos de 1969 e 1970. Em razão do exaurimento da capacidade de ensino dos cursos de medicina, foram estabelecidas limitações absolutas de admissão (numerus clausus). (…) O Tribunal entendeu ser possível restringir o acesso aos cursos de medicina, uma vez que os direitos sociais de participação em benefícios estatais “se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade .” Por conseguinte, foi empregada a expressão reserva do possível para se sustentar que não é possível conceder aos indivíduos tudo o que pretendem, pois há pleitos cuja exigência não é razoável.”

(Disponível em: https://www.apesp.org.br/comunicados/images/tese_christiane_mina_out2012.pdf. Acesso em: 12 de junho de 2024.)

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