Diário de Classe

O marketing e a inversão de prioridades

Autor

  • Óliver Vedana

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos especialista em Direito Processual Civil e pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica ambos pela ABDConst.

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15 de junho de 2024, 8h00

A passagem do ter para o parecer, denunciado há décadas por Debord em sua clássica obra A Sociedade do Espetáculo, é palpável quando o assunto são as redes sociais.

A crítica ao parecer que não é já foi abordada há alguns meses, neste espaço (aqui). O que se pretende explorar, aqui, é uma “segunda camada” do assunto, a inversão das prioridades na formação do jurista, e como os rumos do marketing jurídico têm evidenciado isso.

O Brasil, segundo a Forbes, é o terceiro maior consumidor de redes sociais em todo o mundo [1]. Nesse contexto, quando o assunto é marketing, as plataformas digitais ganharam protagonismo. Empresas e profissionais se valem do marketing digital para expor e vender seus negócios, produtos e serviços. Desconsiderar a relevância do segmento digital, nessa quadra da história, está fora de questão. A partir do que se faz isso é que precisa ser (re)pensado.

Fature R$ 20 mil por mês como advogado

Na corrida para conquistar clientes, para vender algo, ou, nos termos “digitais”, para criar um posicionamento, parece que a entrega do que é vendido se torna menos importante.

O desenvolvimento profissional técnico e aprimorado, cada vez mais necessário para lidarmos com a complexidade dos problemas enfrentados pela nossa sociedade, tem ficado em segundo plano. Ao menos em partes. Isso porque é perceptível um aumento na quantidade de cursos voltados para o alcance de resultados (financeiros, principalmente). Isso não é um problema, afinal, assim como exposto por Maria Olívia Machado na 24ª Conferência Nacional da Advocacia Brasileira da OAB, o advogado deve investir no conhecimento além do técnico jurídico [2]. O problema é quando esse conhecimento técnico jurídico é relegado, ou, pior, quando esse conhecimento “além” se torna o “fim” da profissionalização.

Há dados que direcionam para essa inversão, como por exemplo a queda na procura por cursos de mestrado e doutorado no Brasil, desde 2018 [3]. Em contrapartida, cada vez mais cresce a oferta e a demanda por cursos de “como lotar a agenda”, “como vender como nunca”. Na área do Direito, não é raro encontrarmos chamadas como: “fature R$ 20 mil por mês como advogado”, “métodos para vender mais na advocacia”, “estratégias de vendas na advocacia”. Paralelamente a isso, o mercado coaching, só nos EUA, movimenta mais de U$ 2,3 bilhões ao ano, crescendo cada vez mais no Brasil [4].

Esse não é um fenômeno limitado à área jurídica. Presenciamos, na semana passada, o caso do empresário de 27 anos que morreu após ser submetido a um peeling de fenol, realizado por uma profissional que, por meio de um curso livre e sem a formação adequada, vendeu algo para seu consumidor [5].

Precisamos falar mais sobre o ensino jurídico, seus (inúmeros) problemas, seus desafios e até sua remodelagem. Por isso que livros como O ensino jurídico (e)m crise, de Lenio Streck (que será lançado em breve), são tão importantes para que esse debate ganhe cada vez mais robustez.

Quando uma má formação encontra um terreno cheio de possibilidades como o das redes sociais, é o consumidor quem sofre as consequências.

Sobra para quem?

Mesmo após a aprovação do novo Provimento 205/2021 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, há incontáveis profissionais do Direito que, na ânsia de vender seu serviço – ou de criar seu posicionamento no mercado digital, como dizem – reproduzem conteúdos rasos e até mesmo equivocados. Em muitos casos, não se estuda (a sério) o que se vende. O vendedor não sabe que não sabe – o que é a pior ignorância. O problema é que, com frequência, o consumidor não sabe do equívoco. Aquilo que é apresentado é tido como verdade e a demanda é criada até chegar no ápice do movimento, o fechamento do negócio. Mas o fechamento do negócio não é um fim em si mesmo.

Há uma linha tênue entre uma informação incompleta e uma informação errada. A incompletude da publicidade “meramente informativa” não raras vezes é ignorada pelo próprio profissional que cria um conteúdo, justamente em razão dessa má formação técnica.

Mais uma vez: Maria Olívia Machado tem razão ao dizer que o conhecimento não técnico (jurídico) precisa ter relevância. Ele é fundamental para lidarmos com o dia a dia profissional, mas ele não pode ser mais importante que o conhecimento técnico, por uma questão lógica… Todo contrato fechado a partir de um bom marketing digital, no campo jurídico, não termina com a assinatura contratual. Ele só começa, efetivamente. Aí não são técnicas de engajamento, posicionamento, geração de conteúdo, ou aparências que ditarão os rumos do negócio.

É nesse sentido que Lenio Streck, de tempos em tempos, faz uma pergunta que, em um passado não tão distante, era motivo de constrangimento: você faria uma operação cardiovascular com um médico que tivesse estudado por livros como “Operação Cardiovascular Facilitada”? ou “A Fibrilação Atrial em Palavras Cruzadas?” [6].

Quando a imagem a ser criada (as vezes disfarçada de posicionamento) é mais importante que a busca pela melhor capacitação profissional técnica, ao fim e ao cabo, sobra para quem?

O que o consumidor compra, em muitos casos, é uma imagem – em vários sentidos. Um bom vídeo (de preferência em 4K), um bom áudio, roupas de grife, alguns efeitos, uma boa edição, fotos com um bom ângulo, e pronto: posicionamento criado.

A nível de mercado, profissionais que vendem uma imagem de quem não são acabam, ora ou outra, absorvidos pela “lei da semeadura”.

Mas, nesse contexto todo, onde fica o consumidor que “comprou” um profissional de excelência, pela imagem (ou posicionamento) criado, e precisa ou precisou lidar com as consequências por uma má entrega?

Não podemos inverter as prioridades, ou deixar que o conhecimento jurídico e capacitação técnica assumam um papel de coadjuvantes. Do contrário, seremos experts em vendas, mas incapazes de lidar com a técnica. Insuficientes para resolver problemas muitas vezes complexos demais para o mundo das aparências.

 


[1] https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/03/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-consome-redes-sociais-em-todo-o-mundo/

[2] https://www.conjur.com.br/2023-nov-28/advogado-nao-pode-mais-ter-so-conhecimento-tecnico-dizem-especialistas-em-marketing/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/04/por-que-o-interesse-por-cursos-de-mestrado-e-doutorado-esta-caindo-no-brasil.shtml

[4] https://g1.globo.com/go/goias/especial-publicitario/instituto-brasileiro-de-coaching-ibc/coaching-e-desenvolvimento/noticia/coaching-o-mercado-que-movimenta-mais-de-u-23-bilhoes-ao-ano.ghtml

[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/08/peeling-de-fenol-veja-tudo-o-que-se-sabe-sobre-empresario-que-morreu-apos-realizar-procedimento-estetico-em-sp.ghtml#8

[6] https://www.conjur.com.br/2015-jan-22/senso-incomum-estudo-mostra-porque-roda-oab-ou-bbb-isso/

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  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos Bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos Especialista em Direito Processual Civil e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica, ambos pela ABDConst.

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