QUESTÃO DE INTEGRIDADE

Infiltração de organizações criminosas em licitações mostra falhas do compliance antimáfia

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15 de junho de 2024, 9h51

Apesar do forte controle sobre as contratações públicas e do meticuloso processo de habilitação para licitações, o Brasil ainda não tem instrumentos capazes de evitar a infiltração no Estado de empresas controladas por organizações criminosas.

Vinicius Marques de Carvalho, ministro da Controladoria-Geral da União, citou o tema da integridade empresarial

Essa conclusão é dos especialistas no assunto que participaram do Seminário Internacional 2024 Segurança Pública, Direitos Humanos e Democracia, organizado pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresas (IREE) na sede do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

O tema do compliance antimáfia foi levantado tendo como pano de fundo o recente caso investigado pelo Ministério Público de São Paulo de duas empresas que venceram licitações para a prestação do serviço de transporte público na capital paulista.

Essas empresas efetivamente prestam o serviço — elas transportam cerca de 700 mil passageiros por dia e receberam, em 2023, mais de R$ 800 milhões da Prefeitura de São Paulo. O problema, segundo o MP-SP, é que elas se habilitaram financeiramente para participar das licitações com dinheiro injetado por uma organização criminosa, oriundo do tráfico de drogas e de outras atividades ilícitas.

Ministro da Controladoria-Geral da União, Vinícius Marques de Carvalho destacou que as investigações mostraram que é possível o entrelaçamento entre contratações públicas de serviços essenciais e crime organizado.

“A gente precisa começar a tratar a dimensão da segurança pública olhando também para a integridade empresarial, e como o mundo empresarial pode ser uma via de contaminação do crime organizado, com consequências provavelmente muito deletérias para a sociedade.”

Deficiência normativa

Para o ex-ministro da CGU Valdir Simão, não há na lei um dispositivo que proteja a administração pública desse tipo de empresa. Todo o processo de habilitação é feito considerando os aspectos técnico, financeiro, fiscal, contábil, trabalhista e jurídico, mas não de integridade.

Isso ocorre, em sua análise, porque o Brasil não trata o tema da integridade como uma diligência necessária para a participação em licitações públicas. Assim, se não há prevenção, nada impede que empresas ganhem licitamente contratos para lavar o dinheiro obtido no crime.

“Eu ainda enxergo uma certa deficiência normativa e estrutural para esse enfrentamento. Não é aceitável que uma empresa que ganha licitação, que presta um bom serviço público, seja manejada por uma organização criminosa. Como sociedade, a gente não pode aceitar esse tipo de fenômeno, que já está acontecendo.”

Uma possível solução para o problema, segundo Simão, é usar melhor os instrumentos centralizadores que estão na Lei de Licitações: o Portal Nacional de Contas Públicas e o Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas.

A previsão da norma é que todas as empresas que assinam contratos públicos sejam previamente cadastradas em um banco de dados que deve ser anualmente atualizado.

“A partir daí, sabendo quem são as empresas, quando foram constituídas, com qual capital, talvez a gente consiga criar uma rede para evitar que as organizações criminosas se infiltrem, identificando previamente quais são os riscos e buscando mecanismos para afastar esse tipo de empresa dos processos licitatórios.”

Raio-x de fornecedores

Ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Ester Dweck tem como missão buscar maneiras de melhorar a capacidade do Estado de entregar serviços para a população. Um dos focos de seu trabalho é o manejo de processos, entre os quais estão os de licitação pública.

Segundo a ministra, a lei oferece sistemas unificados para cadastro e registro de compras públicas, de transferências de recursos e de fornecedores. Em parceria com a CGU, ela tem buscado desenvolver formas de analisar os dados para identificar ilícitos.

Um desses sistemas é o cadastramento unificado de fornecedores. Todos os que desejam participar de licitações devem passar por ele, o que o torna um mecanismo propício para exercer o compliance antimáfia.

“Ele permite esse raio-x de fornecedores. A gente pode, por exemplo, consultar os sócios da empresa, o que permite avaliar a existência de sócios em comum, saber se é servidor público. Ele pode ser usado para fazer as análises de quem são os sócios do fornecedor”, explicou a ministra.

“A gente sabe, claro, que não vai estar lá registrado que determinada pessoa é parte de organização criminosa. Por isso é necessário o apoio dos órgãos de segurança pública, para evitar que a empresa continue fornecendo para a administração pública”, complementou ela.

A ideia, portanto, não é instituir mais controles, mas aproveitar melhor os que já existem para prevenir a infiltração do crime organizado nos serviços do Estado. João Antonio da Silva Filho, conselheiro do Tribunal de Contas do município de São Paulo, defendeu foco no controle externo antes do desperdício do dinheiro.

“Chegar antes pressupõe a valorização do controle preventivo, em detrimento do controle repressivo. É aquele que amedronta o gestor público de assinar qualquer contrato. O controle externo tem de valorizar os instrumentos que fazem com que as políticas públicas ocorram em parâmetros que prestigiem o sentido do Estado”, opinou o conselheiro.

 

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