Paradoxo da Corte

Três recentes decisões que enaltecem o TJ-SP

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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14 de junho de 2024, 8h00

Escrevendo sobre o ofício dos juízes, o magistrado e professor Antoine Garapon, na sua excelente obra Le gardien des promesses: le juge et la démocracie (Paris, O. Jacob, 2010), assevera, em tom crítico, a exemplo de que nenhum advogado ético deve se jactar, afirmando que nunca perdeu uma causa, o juiz que tem consciência da sua relevante função, não pode se iludir, vangloriando-se de que toda decisão que profere encontra-se irretocável!

Spacca

Numa instigante coletânea que chegou recentemente às minhas mãos, publicada em Cambridge, Inglaterra, pela prestigiosa editora Intersentia, e coordenada pelos juristas A. Uzelac e C. H. van Rhee, intitulada Nobody’s Perfect (Ninguém é perfeito), é inteiramente dedicada, sob a perspectiva da comparação jurídica, aos recursos e às ações autônomas de impugnação das decisões judiciais.

Dentre as inúmeras contribuições que compõem a obra, há um artigo escrito pelo professor inglês Neil Andrews, que aborda os recursos na experiência jurídica inglesa, no qual é feito um eloquente elogio à sabedoria e à humildade do juiz que se retrata diante de um equívoco que incidiu. Salienta o autor que a maior esperança do jurisdicionado e de seu advogado, quando o juiz reconhece o error in procedendo que cometeu, é a reforma de sua própria decisão de ofício ou a requerimento da parte lesada.

Piero Calamandrei, num ensaio pouco conhecido abordando esse mesmo assunto, sob o título Regole cavalleresche e processo, também se referia à grandeza de caráter do juiz vocacionado, que expressa virtude voltando atrás, para corrigir um defeito de um ato decisório de sua autoria (Studi sul processo civile, 3, 1929).

Exemplos

Na atuação diuturna da profissão perante o Tribunal de Justiça de São Paulo tenho repetido que atualmente, como é notório, as respectivas câmaras  se destacam por julgar milhares de recursos, muitos deles complexos, dentro de um lapso de tempo invejavelmente curto, que alçam a Corte paulista num patamar que pode muito bem ser considerada como um dos tribunais mais rápidos do mundo ocidental.

Não é preciso dizer, no entanto, que em algumas circunstâncias, no meio de um número imenso de acórdãos proferidos dia após dia, deparamo-nos com uma ou outra decisão contendo equívoco formal (error in procedendo), que, pelo nosso sistema processual, na maioria das hipóteses, pode perfeitamente ser desafiada pelo recurso cabível dirigido às cortes superiores.

Contudo, não persiste dúvida, nestas situações, em especial, para o litigante prejudicado, do senso de justiça quando se verifica a reconsideração de determinado ato decisório pelo próprio juiz que a proferiu. A realidade contudo bem demonstra que tal atitude raramente se verifica no cotidiano forense.

Daí, o motivo de minha enorme satisfação, como advogado militante, ao tomar conhecimento, num exíguo espaço temporal, de três recentes atos decisórios (dois acórdãos e uma decisão monocrática) nos quais prevaleceram, de modo inequívoco, a sabedoria, a humildade e a coragem dos respectivos julgadores.

O primeiro acórdão provém da 10ª Câmara de Direito Público por ocasião do julgamento dos embargos de declaração n. 1004314-54.2021.8.26.0642/50001, com voto condutor do juiz convocado doutor José Eduardo Marcondes Machado.

Partindo de uma premissa equivocada, ao apreciar esse referido recurso, a turma julgadora, à unanimidade, proferiu decisão que considerou intimado do acórdão o advogado que estava presente na sessão de julgamento do recurso de apelação. Na sequência, os embargos de declaração não foram conhecidos, porque considerada extemporânea a sua respectiva oposição, ao argumento de que, in verbis:

“(…)
Como houve oposição ao julgamento virtual da apelação interposta pela requerente Pássaro Marrom, o processo foi julgado na sessão telepresencial ocorrida em 16/10/2023, em que as partes (autora, rés e a Buser), representadas por seus advogados, compareceram de forma online e realizam sustentação oral…

Ainda no mesmo dia, o acórdão embargado (fls. 3.967/3.980) foi finalizado e disponibilizado nos autos.

Pois bem.

Prevê o artigo 718, das Normas Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça deste Tribunal, que ‘A intimação do acórdão, que será assinado apenas pelo relator, far-se-á mediante publicação da súmula de julgamento no Diário da Justiça Eletrônico, ou na própria sessão de julgamento, passando a fluir prazo para eventual interposição de recurso’ – destacou-se.

Da leitura da disposição normativa acima, não resta dúvida de que, se o recurso não foi julgado virtualmente caso em que a intimação se dará necessariamente pelo DJE , e as partes compareceram à sessão presencial ou telepresencial, na qual realizaram sustentação oral e puderam presenciar a prolação do voto do relator, ficaram inequivocamente cientes do resultado do julgamento, confirmado pela subsequente divulgação de sua súmula (fl. 3.966), passando a fluir daí o prazo para interposição de outros recursos como os embargos de declaração, por exemplo…”

Pois bem, opostos novos embargos de declaração nº 1004314-54.2021.8.26.0642/50003 apontando o descabimento, no caso vertente, da aplicação da aludida norma da corregedoria, não tardou para que a respectiva turma julgadora reconhecesse o desalinho, revelando a nobreza de espírito do eminente magistrado relator, doutor Marcondes Machado, ao averbar de forma clara e precisa em seu voto que:

“(…) Conquanto combativas as teses defendidas pela embargada, que, em contrarrazões, aponta até mesmo a previsão legal que cuida da possibilidade de intimação das partes diretamente em audiência (artigo 1.003, § 1º, do Código de Processo Civil), fato é que os arestos embargados (fls. 4.001/4.005 e 4.026/4.030) partiram de premissa equivocada, qual seja, a de que o artigo 718, das Normas Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça, seria aplicável ao caso em exame, quando, em verdade, detidamente reexaminadas as normas correcionais deste Tribunal, tem incidência restrita aos Colégios Recursais integrantes do Sistema dos Juizados Especiais o citado artigo 718 está inserto na Seção XLI, que trata especificamente dos Colégios Recursais.

Logo, à falta de previsão normativa (legal, regimental ou correcional) própria, impraticável concluir, como antes se fez, que as partes haviam sido intimadas do resultado do julgamento da apelação interposta diretamente na sessão telepresencial de que participaram e na qual realizaram sustentação oral, daí por que também incorreto o entendimento de que os declaratórios anteriores seriam intempestivos.

Com isso, de rigor o acolhimento destes embargos de declaração (incidentes finais 50002 e 50003), para reconhecer o erro de premissa havido e, por conseguinte, desconstituir os acórdãos de fls. 4.001/4.005 e 4.026/4.030, com imediata submissão dos declaratórios inicialmente protocolados, incidentes finais 50000 e 50001, já encerrados e juntados aos autos de forma definitiva (fls. 3.988/3.999 e 4.008/4.017) a novo julgamento, o que se passa a fazer a seguir…”

Diante da expressa retratação, esse contundente acórdão bem demonstra o comportamento da turma julgadora em perfeita sintonia com a regra do artigo 5º do Código de Processo Civil, no sentido de que o mandamento da boa-fé processual é também direcionado, de modo inequívoco, à atividade jurisdicional.

Já o segundo acórdão que merece atenção encerra uma situação um tanto inusitada, na qual, ao julgar a ação rescisória n. 2144273-77.2019.8.26.0000, da relatoria do desembargador João Camillo de Almeida Prado Costa, a 19ª Câmara de Direito Privado, dois votos (o do relator e o da desembargadora Cláudia Grieco Tabosa Pessoa) julgavam improcedente o pedido de rescisão, sendo que o desembargador Ricardo Pessoa de Mello Belli pugnava pela procedência da ação rescisória.

Considerada esta circunstância, ao arrepio da regra do inciso I do parágrafo 3º do artigo 942 do Código de Processo Civil, procedeu-se ao julgamento estendido, resultando na procedência do pedido deduzido na ação rescisória por maioria de votos, isto é, por 3 votos a 2.

Irresignada com o equívoco, por não caber na espécie a extensão do julgamento, a requerida opôs embargos de declaração, com caráter infringente, alegando a existência de error in procedendo, decorrente da equivocada aplicação do caput do artigo 942.

Com efeito, diferentemente do que sucede no julgamento não unânime do recurso de apelação, o supra referido inciso I do parágrafo 3º do artigo 942 do diploma processual excepciona a regra do caput, ao dispor que:

“§ 3º. A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em:

I – ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno…” (destaquei).

Saliente-se que os embargos de declaração nº 2144273-77.2019.8.26.0000/50001 foram endereçados ao desembargador Ricardo Pessoa de Mello Belli, então relator designado, que prontamente encaminhou o recurso à mesa de julgamento, no qual proferiu um magnífico voto, contando com a adesão de todos os demais ilustres integrantes da turma julgadora, reconhecendo a existência do vício e, por esta razão, entendeu que os embargos de declaração comportavam conhecimento e acolhimento, porque:

“(…) De fato, o julgamento da ação rescisória em exame, com a aplicação da técnica do julgamento estendido, se fez em clara infração à específica regra procedimental do artigo 942, parágrafo 3º, inciso I, do Código de Processo Civil.

Segundo o referido dispositivo, apenas nas hipóteses em que o julgamento não unânime da ação rescisória resultar na rescisão da sentença é que haverá ele de prosseguir com a ampliação do colegiado.

Nesse sentido, também é a interpretação dada pela jurisprudência e pela doutrina ao artigo 942, parágrafo 3º, inciso I, do Código de Processo Civil…

Na situação em exame, a Turma Julgadora, antes da aplicação da técnica do artigo 942 do Código de Processo Civil, proclamara a improcedência da ação rescisória, por maioria de votos. Desse modo, nos expressos termos da lei, não era caso de prosseguir no julgamento, mediante a ampliação do colegiado…

Assim, o v. acórdão embargado será  invalidado na parte relacionada ao chamado julgamento estendido, consequentemente proclamando-se o restabelecimento do julgamento inicial, que pronunciou a improcedência da ação rescisória, por maioria de votos, nos termos do voto do Relator Sorteado, registrada a divergência do 2º Juiz, consoante as declarações de voto já ali assentadas…”

Igualmente, neste caso se fez justiça, dada a oportuna retratação, em sede de embargos de declaração, demonstrativa do discernimento e da experiência do eminente desembargador relator, que então rejulgou a questão à luz da regra processual supra transcrita.

Por fim, reporto-me ao julgamento do agravo de instrumento n. 2156194-57.2024.8.26.0000, distribuído ao desembargador João Antunes, integrante da 25ª Câmara de Direito Privado.

Neste caso não se trata de reconsideração de precedente ato decisório, mas, sim, de decisão monocrática, que bem demonstra a coragem de seu prolator, a evidenciar, além da sobriedade e sabedoria, mais um predicado dos grandes magistrados.

Tal decisum, determinativo da suspensão dos efeitos do pronunciamento judicial agravado, enfrenta a incidência da Lei nº 17.785/2023, que instituiu o recolhimento de 2% sobre o valor do crédito a ser satisfeito, ao ensejo da distribuição do requerimento de cumprimento de sentença. Ademais, o artigo 523 do Código de Processo Civil não impõe qualquer providência nesse sentido.

Dúvida não há, por certo, de que irrompe ilegal a cobrança de custas para o processamento, pela parte que venceu a demanda, do incidente de cumprimento de sentença.

Daí porque entendo que merece todos os encômios a concessão da medida de urgência deferida pelo aludido eminente desembargador doutor João Antunes, a qual, pelos seus termos, realça nítida preocupação com o direito do agravante, dada a exposição deste à efetiva possibilidade de sofrer dano concreto.

Em suma, na condição de advogado, em pleno exercício profissional, considero que referidos julgamentos têm a virtude, por um lado, de procurar fazer justiça e, de outro, de servir de alento àqueles, como eu, que reconhecem a árdua tarefa de julgar com discernimento e seriedade.

Atos decisórios como estes tendem a robustecer o prestígio do Tribunal de Justiça bandeirante!

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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