Opinião

Reforma tributária: momento da incidência do ITBI

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13 de junho de 2024, 20h56

Nesta breve meditação, apresentamos um tema de caráter mais pontual, distante dos grandes temas centrais da reforma, mas que merece atenção por parte da comunidade jurídica. Trata-se de investida do PLP nº 108/24 sobre o  Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), ao buscar definir sua hipótese de incidência — em especial seu critério temporal — e que, a nosso ver, pode trazer certos questionamentos jurídicos. Compreendamos.

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O momento da incidência do ITBI sempre foi alvo de controvérsias devido à divergência na interpretação do conceito constitucional de “transmissão”. Diversas municipalidades sustentam que o momento de incidência do imposto ocorre anteriormente, como no registro do compromisso de compra e venda, o que leva os cartórios, por receio de serem responsabilizados pelo recolhimento do tributo (conforme o artigo 134, VI do CTN), a exigirem a antecipação do pagamento.

O Judiciário, por diversas vezes, manifestou-se no sentido de que a tributação do ITBI deve seguir o Código Civil de 2022, que expressamente dispõe que a eficácia do registro de transmissão ocorre desde o momento em que o título é apresentado ao oficial de registro (artigo 1.246). Isso é evidenciado pela farta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como no AREsp 1.760.009, no qual a corte firmou entendimento de que o fato gerador do ITBI somente se opera com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro no cartório de imóveis.

De acordo com o relator, excelentíssimo ministro Herman Benjamin: “O STJ entende que, mesmo em caso de cisão, o fato gerador do ITBI é o registro no ofício competente da transmissão da propriedade do bem imóvel, em conformidade com a lei civil, o que, no caso, ocorreu em 2015. Logo, não há como considerar como fato gerador da referida exação a data de constituição das empresas pelo registro de contrato social na Junta Comercial, ocorrido em 2012”.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter cancelado o julgamento nos autos do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.294.969 sob a sistemática de repercussão geral (Tema 1.124), no qual havia fixado a tese de que o “fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”, tendo em vista que se considerou que o caso, na verdade, versava sobre a cobrança do ITBI na cessão de direitos relativos ao compromisso de compra e vendado bem imóvel e não sobre a transmissão de propriedade imobiliária mediante o compromisso de compra e venda, fato é que a Suprema Corte tem inúmeros julgados sobre o assunto no qual se posiciona no sentido da Lei Civil, a exemplo do ARE nº 1.294.969 ED de relatoria do ministro Luiz Fux, no qual se afirma:

“(…) esta Corte possui jurisprudência sedimentada no sentido de que o fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente se aperfeiçoa com a efetiva transferência do bem imóvel, que se dá mediante o registro;”

A despeito da repetida manifestação judicial, os municípios insistem em legislar em sentido divergente e a exigir o tributo de forma antecipada, sob os mais diversos argumentos, especialmente o da eficiência fiscalizatória, levando os contribuintes a buscarem o judiciário se quiserem recolher no momento do registro.

Reforma tributária

O governo propõe, agora, por meio da reforma tributária, resolver a celeuma. Para tanto, o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 elaborado pelo Poder Executivo, e disponibilizado para o Congresso no dia 4 de junho, traz dispositivo específico (artigo 190) que altera o Código Tributário Nacional, inserindo o artigo 35-A com a seguinte redação:

“Art. 35-A. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da celebração do ato ou título translativo oneroso do bem imóvel ou do direito real sobre bem imóvel.”

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Ao dispor que a transmissão está ligada ao “título translativo oneroso do bem imóvel ou direito real sobre bem imóvel” a redação do PLP nos parece cumprir o quesito constitucional. Contudo, ao afirmar que o ITBI ocorre no momento da “celebração do ato ou título translativo”, o texto pode induzir à interpretação de que o momento da incidência do imposto é o da assinatura do contrato de promessa de compra e venda, o que iria de encontro aos contornos jurisprudenciais acima mencionados.

Como uma de nós já afirmou em outra oportunidade, deve-se respeito ao sentido técnico-jurídico adotado pelo constituinte:

o fato de o registro ser precedido de um negócio causal que a celebração contratual não é motivo suficiente para alterar essa delimitação, pois, se o diploma civil estabelece que a compra e venda só se perfectibiliza com a transcrição (atual registro), então somente neste instante é que ocorre efetivamente a transmissão” [1].

Em suma, a questão do momento de incidência do ITBI permanece controversa devido às interpretações divergentes entre os municípios e a jurisprudência estabelecida pelos tribunais superiores. A proposta de reforma tributária, materializada no Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, busca resolver essa controvérsia, porém, ao definir que o fato gerador do imposto ocorre na “celebração do ato ou título translativo”, corre o risco de perpetuar o litígio.

Expressões pela metade

Para uma solução eficaz e em consonância com o respeito ao texto constitucional seria recomendável que o legislador adotasse uma redação mais clara e alinhada à jurisprudência, sem se utilizar de expressões incompletas como “momento da celebração do ato”, que, afinal, não especifica qual ato a que se refere.

É preciso considerar a que reforma tributária consagra princípios como transparência, cooperação e simplicidade que pressupõem um sistema, com o perdão da redundância, mais simples, claro e harmonioso, menos sujeito, digamos assim, a um clima belicoso entre poder público e iniciativa privada que é tão peculiar daqueles sistemas complexos, eivados de antinomias e de possibilidades interpretativas.

Esses princípios, portanto, pressupõem uma busca por certo grau de univocidade e coerência nos textos normativos, que, conquanto não possa ser pleno, deve ser almejado na medida do possível. É o momento, assim, de se evitar potenciais conflitos, de se evitar “expressões pela metade”, de se evitar antinomias, prestigiando-se a segurança jurídica.

Portanto, seria oportuno que o Congresso, ao revisar a proposta de reforma, considerasse essas nuances e buscasse efetiva clareza e harmonia entre as legislações municipais e a Constituição da República Federativa do Brasil. A adoção de uma abordagem que respeite o sentido técnico-jurídico da transmissão de propriedade, conforme estabelecido pela jurisprudência, seria passo relevante para a resolução definitiva desse impasse tributário.

 


[1] McNaughton, Cristiane Pires. O tempo e o tributo: estudo semiótico do critério temporal da regra-matriz de incidência tributária. São Paulo: Noeses, 2019, p. 214.

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