Interesse Público

Implementação de cotas de gênero em concursos públicos

Autores

  • é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

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  • é bacharela em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais. Advogada da Companhia Energética de Minas Gerais.

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  • é bacharela em Direito pela Faculdade Milton Campos. Pós-graduada em Direito Administrativo e em Compliance e Integridade Corporativa pela PUC-MG. Advogada da Companhia Energética de Minas Gerais.

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13 de junho de 2024, 8h00

Em que pese o progresso experimentado nas últimas décadas quanto ao reconhecimento dos obstáculos que a mulher enfrenta no mercado de trabalho — desigualdade salarial, dupla jornada, estigmatização, entre outros —, um grande caminho ainda há de ser ativamente percorrido para que seja alcançada a efetiva igualdade entre os gêneros.

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concurso público prova exame

De acordo com o relatório World Gender Gap 2023, do Fórum Econômico Mundial, no ritmo atual a igualdade de gênero somente seria alcançada, entre os países participantes do ranking, daqui a 131 anos, média que piorou quando comparada àquela divulgada no relatório de 2020 (baseado em dados pré-pandemia da Covid-19), que previa 99,5 anos. Dentre 146 países participantes, o Brasil atualmente ocupa o 57º lugar, imediatamente atrás de Laos, Croácia e Bolívia, considerando quatro critérios comparativos: participação e oportunidades econômicas, oportunidade educacionais, acesso à saúde e empoderamento político.

Nesse contexto, dando enfoque ao papel que a administração pública possui de atuar positivamente para a redução dessas disparidades, exatamente nos termos do que preceitua o inciso II do artigo 5º da Constituição, propõe-se a seguinte reflexão: a inexistência de lei que determine a implementação de reserva de vagas para mulheres em concursos públicos impede que essa medida seja implementada de forma voluntária?

Não há resposta uníssona na doutrina ou na jurisprudência para esse questionamento, tampouco praxe administrativa relevante ou uniforme a ser considerada. Defende-se, entretanto, especialmente em consideração aos casos em que se verifica — de fato — discrepância de gênero na ocupação de cargos e empregos públicos, que a ausência de previsão legal específica não deve representar obstáculo à implementação dessas ações afirmativas.

A controvérsia surge especialmente porque historicamente a atuação administrativa é relacionada a uma concepção estrita do princípio da legalidade, que traduz uma necessidade de vinculação positiva da administração pública à lei, como forma de conter os tentáculos do estado, em cenário histórico conhecido pela ode ao liberalismo como decorrência das revoluções liberais.

Interpretação

Todavia, a interpretação mais adequada e atual do princípio da legalidade, preconiza o entendimento de que a atuação administrativa não retira fundamento de validade apenas da lei, mas do ordenamento jurídico como um todo — composto por normas constitucionais, legislação infraconstitucional, regulamentos administrativos e tratados internacionais – o que resulta no conceito moderno de juridicidade.

A CF/1988 é fonte primária do ordenamento jurídico, que é fundamento direto de validade para a implementação de ações afirmativas que efetivem os preceitos nela insculpidos, neste caso, especialmente nos artigos 3º, incisos I, III e IV; 5º, inciso I; 7º incisos XVIII, XX, e XXX; 170, inciso VII; 193, caput; e 226 § 5º.

Sobre a implementação de ações afirmativas como ferramenta para a realização material do princípio da igualdade, Bernardo Gonçalves Fernandes esclarece:

“No campo de aplicabilidade e de efetivação do princípio da igualdade, é importante ainda, tecermos alguns comentários sobre as ações afirmativas (affirmative actions), que se caracterizam pelo tratamento diferenciado pelo Estado de um grupo ou de uma identidade a fim de que se estabeleçam medidas compensatórias por toda uma história de marginalização socioeconômica ou de hipossuficiência. Aqui, o foco é a concretização da igualdade de oportunidades em face dos demais indivíduos. A origem de tal ideia vem do direito norte-americano, que em substituição à doutrina do separate but equal entre brancos e negros (por exemplo, uma escola para brancos e uma escola para negros), percebe a necessidade de uma ação mais interventiva pelo Estado no sentido de afastar sentimentos discriminatórios (desarrazoados). Certo é que as ações afirmativas irão se inserir no intitulado âmbito de uma política social de discriminação positiva que, como já salientado, visam a corrigir desigualdades de cunho histórico.”  (FERNANDES, Bernardo Gonçalves. 2017. p. 473. grifo nosso)

Na conjuntura global, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que “é um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade” firmado em 2015 no âmbito da Organização das Nações Unidas, elenca como objetivo nº 5: “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Desta feita, como meio para a respectiva concretização, são apontadas metas a serem cumpridas, ressaltando a necessidade de atuação positiva da administração no sentido de reduzir as desigualdades entre os gêneros, especialmente no que diz respeito ao exercício de liderança e ao acesso a recursos financeiros [1].

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Já no âmbito infraconstitucional, com a expressa finalidade de “preparar o país para a assunção de compromissos cada vez mais evidentes com o desenvolvimento social e o crescimento econômico, com a ampliação da igualdade entre mulheres e homens e com o combate à pobreza, ao racismo, à opressão sobre as mulheres, bem como à todas as formas de discriminação social que se refletem em desigualdades históricas”, apresentou-se perante o Congresso, o Projeto de Lei 1.085/2023 [2], que dispunha sobre a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens para o exercício da mesma função.

Esse projeto deu origem à Lei 14.611/2023, que estabeleceu diversas medidas objetivas para a promoção da igualdade entre gêneros no país. Dentre elas, destaca-se o artigo 5º desse diploma legal, que firmou a obrigação de que as pessoas jurídicas de direito privado com 100 ou mais empregados promovam, com a observância dos preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados — Lei 13.709/2018 —, a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios, sob pena de multa administrativa, sem prejuízo da aplicação de outras sanções nos casos em que se identificar efetiva discriminação salarial baseada em gênero. Essa providência, contudo, foi objeto de diversos questionamentos perante o Poder Judiciário, inclusive por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade em trâmite no STF — ADI 7.612, com pendência de julgamento.

Em sentido favorável, destaca-se a decisão proferida pela Presidência do Tribunal Regional Federal da 6ª Região que, diante de pedido formulado pela União, determinou a suspensão dos efeitos da antecipação de tutela concedida para desonerar as empresas da obrigação de publicação dos relatórios — processo nº 6008977-76.2024.4.06.3800 —, mantendo, consequentemente, o dever imposto por força do artigo 5º da Lei 14.611/2023. Merecem destaque os seguintes fundamentos elaborados pela desembargadora Mônica Sifuentes:

“(…) Não fosse a aparência de legalidade dos instrumentos normativos citados, não se pode descurar que a Lei n. 14.611/2023, o Decreto nº 11.759/2023 e a Portaria nº 3.714/2023, foi criada com o intuito de corrigir essas lacunas, combater e eliminar as disparidades salariais baseadas em gênero e proporcionar maior segurança às mulheres, com vistas à promoção da igualdade de remuneração entre mulheres e homens que desempenham funções equivalentes, combatendo a discriminação salarial e garantindo que as mulheres recebam salários iguais aos dos homens para o mesmo trabalho.

Nessa linha de raciocínio, não há dúvidas de que a suspensão dos efeitos da decisão que deferiu a tutela de urgência em agravo de instrumento, em desfavor do Poder Público, possui natureza de medida excepcional de contracautela, podendo ser deferida quando comprovados o manifesto interesse público no afastamento dos efeitos da decisão requerida, bem como o perigo de lesão grave à ordem, à saúde, à segurança e a economia públicas, como resultante da execução da decisão requerida (AgRg na SLS n. 827/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Corte Especial, julgado em 4/6/2008, DJe de 7/8/2008 e AgInt na SS n. 3.347/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 06/06/2022, DJe de 20/4/2022).

No presente caso é evidente o manifesto interesse da União na manutenção dos efeitos da Lei nº 14.611/2023, e de suas normas regulamentadoras – Decreto nº 11.795/2023 e Portaria nº 3.714/2023 -, pois existente potencial risco de grave lesão à ordem pública, diante da circunstância de vislumbrar-se a manutenção da desigualdade de gênero no aspecto remuneratório, das empresas privadas de médio e grande porte.

Além disso, presente o periculum in mora reverso, traduzido pelo prejuízo que toda sociedade teria que suportar ao ter afastada legislação que se representa vital ao combate à desigualdade sistêmica e na proteção dos direitos da mulher. (…)” (TRF6 – 6008977-76.2024.4.06.3800, Desa. Mônica Jacqueline Sifuentes, Presidência do Tribunal, publicação em 26/03/2024.)

Sobressai, dessa argumentação, a valorização e a validação, ainda que em caráter sumário, dessa medida afirmativa que objetiva combater a desigualdade de gênero de forma efetiva no mercado de trabalho, premissa que vai ao encontro da possibilidade ora defendida, de implementação voluntária de cotas de gênero em concursos públicos.

Nessa linha de raciocínio, a recente aprovação (19/03/2024) pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Projeto de Lei 1.246/2021, que atualmente aguarda apreciação pelo Senado e objetiva a criação de reserva de participação mínima para mulheres em conselhos de administração de empresas estatais.  Sobre a influência dessa participação no desempenho financeiro das empresas foi publicado, em 29/07/2015, na Revista do XV Congresso USP de Controladoria e Contabilidade um estudo que conclui pela repercussão positiva da presença feminina, destaca-se:

“Frente à crescente participação das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, nos cargos de alta importância, o presente artigo teve por objetivo analisar a influência da participação feminina nos conselhos de administração sobre o desempenho financeiro das organizações.

Observou-se que em média 63% das empresas analisadas não apresentam mulheres em seu conselho de administração. Adicionalmente verificou-se uma baixa representação feminina nos conselhos, apresentando um percentual de 5,6%, em média, de mulheres nos conselhos de administração encontrados. Conforme destacado por Kellen et al. (2013) a baixa participação feminina nos conselhos pode ser devida a fatores culturais e sociais, sendo necessário, esforços por parte do governo, das organizações e das mulheres para superação dessa barreira.

Inicialmente, comparando-se as características das organizações com e sem a presença feminina, observou-se também que as empresas que possuem participação feminina apresentam um melhor desempenho, capturados pelo Q de Tobin e pelo Roa. (…)”

(SILVA JR., Claudio Pilar da. e MARTINS, Orleans Silva. 2015.)

Além disso, em 26/09/2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, durante a 2ª Sessão Extraordinária de 2023, no julgamento do Ato Normativo 0005605-48.2023.2.00.0000, relatado pela conselheira Salise Sanchotene, alteração na Resolução CNJ nº 106/2010, que promove “a criação da política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Poder Judiciário”. Trata-se de ação afirmativa que objetiva viabilizar o aumento da representatividade feminina em segunda instância por meio da utilização de lista exclusiva de mulheres em alternância com a lista mista tradicional nas promoções pelo critério de merecimento.

Particularmente sobre governança corporativa no âmbito de empresas estatais (administração pública indireta), realçamos a seguinte recomendação formulada nas Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):

“A entidade proprietária deve considerar a Recomendação da OCDE sobre a Igualdade de Gênero na Educação, Emprego e Empreendedorismo. Ela recomenda que as jurisdições incentivem medidas como metas voluntárias, requisitos de divulgação e iniciativas privadas que aumentam a diversidade de gênero nos conselhos e na diretoria das empresas listadas, e examina os custos e benefícios de outras abordagens, tais como cotas para o conselho. As recomendações relativas à igualdade de gênero no setor público são igualmente pertinentes para as EEs que prestam serviços públicos. De acordo com essas recomendações, as autoridades devem tomar medidas que incluam a introdução de mecanismos para melhorar o equilíbrio de gênero nas posições de liderança do setor público, tais como requisitos de divulgação, e definição de metas ou quotas para mulheres em cargos de diretoria.”

Como conclusão lógica, para que se possa viabilizar o equilíbrio de gênero nas funções de liderança das empresas estatais, é benéfico e recomendável que se estimule o ingresso de mulheres no respectivo quadro de funcionários, cujo provimento se dá por meio de concurso público, na forma do que preceitua o inciso II do artigo  37 da CR/1988.

Considerando todo o contexto exposto, defende-se, não só a viabilidade jurídica de implementação voluntária (sem imposição legal) de cotas para mulheres em concursos para o provimento de cargos e empregos públicos com amparo direto na CR/1988, mas a sua necessidade para a concretização do princípio da igualdade, em seu aspecto material, nos casos em que se verifica efetiva discrepância de gênero na ocupação de cargos e empregos públicos.

Para tanto, é importante que se observe que a implementação das cotas e das regras que lhes serão aplicáveis deve estar expressamente justificada em ato a que se dê publicidade. Ademais, o prazo para sua vigência deve ser prévia e expressamente determinado, com a finalidade de preservar a natureza temporária da ação afirmativa, devendo a possibilidade de sua prorrogação, bem como os resultados alcançados pela respectiva implementação, serem avaliados ao final desse período.

Finalmente, para essa operacionalização, ressalta-se a possibilidade de a utilização análoga do entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em resposta à Consulta nº 060405458, no sentido de que as “as cotas de candidatos dos partidos políticos são de gênero, e não de sexo biológico”, o que significa que “transgêneros devem ser considerados de acordo com os gêneros com que se identificam” (acórdão, relator ministro Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE – Tomo 63, 03/04/2018).

 


[1] Objetivo nº 05 – Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

Metas

5.5 – Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública;

5.a – Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais

5.c – Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.

[2] PL 1085/2023 – Senado Federal – Acesso em 24/04/2024

Autores

  • é presidente do IBDA, vice-presidente jurídica da Cemig, doutora em Direito Administrativo, professora da UFMG, ex-controladora geral e ex-procuradora geral adjunta do município de Belo Horizonte

  • é bacharela em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais. Advogada da Companhia Energética de Minas Gerais.

  • é bacharela em Direito pela Faculdade Milton Campos. Pós-graduada em Direito Administrativo e em Compliance e Integridade Corporativa pela PUC-MG. Advogada da Companhia Energética de Minas Gerais.

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