Opinião

Tutela da probidade administrativa entre vazios, vieses e voluntarismos (parte 3)

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

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12 de junho de 2024, 7h02

Continuação da parte 1 e da parte 2

Em arremate às intervenções outrora realizadas neste espaço, considerando as modificações da Lei de Improbidade Administrativa e que repercutiram em fundamentos constitucionais da administração, bem como na adoção de modelo jurídico exclusivo, encerramos nossa análise no que respeitam a exclusão do elemento normativo ‘culpa’ e a exigência de único elemento do injusto, o ‘dolo’ (para alguns ‘dolo específico’), para imputação da prática de improbidade.

Eis o voluntarismo.

Vamos por partes.

1 — A exclusão da modalidade improbidade administrativa culposa e o ressarcimento integral aos ‘bens fundamentais’. A necessidade de aproveitamento do ‘erro grosseiro’ como pedra angular da ‘lex legum’

As alterações supervenientes na Lei 8.429/92 tinham, dentre as causas subjacentes, as dificuldades dos gestores na lida geral com a administração pública considerando a atuação dos chamados controladores (dentre eles Ministérios Públicos, Tribunais de Contas, Controladoria Geral etc.). Em especial relevo, iniciativas dos MPs em determinados casos criticadas pelos excessos, mas também corrigidas pelo avançar jurisprudencial.

É necessário não perder de vista que a fixação de premissas dispositivas pela atividade do legislador em muitas vezes é complementada pelo exercício jurisdicional. Neste ponto, vale a lembrança de que o amadurecimento da legislação encontra reforço primoroso na pragmática jurisdicional que suplementa falhas, corrige excessos e, precipuamente, garante a aplicação fundamentada e equilibrada da lei à vista do caso concreto. [1]

Cumpre aqui tratar a questão da culpabilidade em dois motes diversos para a LIA: a revogação da modalidade culposa e o desprezo à noção de bens fundamentais.

Reprodução

Foi justamente o exercício da jurisdição, ou da chamada jurisprudência constitucionalmente orientada, que desencadeou precedentes de ajuste à necessidade do elemento do injusto ‘dolo’ para as violações que configurassem enriquecimento ilícito (artigo 9º) e descumprimento dos princípios constitucionais administrativos (artigo 11) e do elemento do injusto ‘dolo’ e elemento normativo ‘culpa’ para as violações que importassem em danos ao patrimônio público (artigo 10).

Assim, a responsabilidade dos agentes públicos sempre foi de índole subjetiva (elemento do injusto) ou normativa (culpa), sem que houvesse previsão de ‘causalidade direta’ tal qual ocorre quando da imputação da administração pública.

E assim o foi, e assim o é, por conta de certa obviedade: enquanto a administração pública é desenvolvedora de atividade (e daí o risco é inerente e a responsabilidade objetiva torna-se presunção), os agentes públicos são produtores de atos, de decisões, de gestões, com reconhecimento de obstáculos e dificuldades.

Os riscos são controláveis pelas medidas preventivas e precautórias e são ‘conhecidos’ ou ‘deveriam ser conhecidos’ pela administração pública (serviço público, controle de pandemias, centros de saúde da população, conservação de vias etc.). Via de consequência, os danos deles decorrentes autoriza a responsabilidade objetiva da administração pública. Eis a relevante contribuição da responsabilidade civil para atendimento da coletividade e das vítimas.

Já os atos são aqueles que têm controle a partir do próprio agente, daí a possibilidade de não responsabilização quando escorreita a conduta (assim compreendida aquela não-antijurídica), como de imputação pela censurabilidade considerando comportamento afrontoso ao sistema jurídico, nos casos de vontade livre (dolo), ou de negligência ou imprudência (culpa), ausência dever de cuidado. [2]

Ora, não só o “dolo”, mas também a “culpa” está “valorosamente” alinhada na Constituição para a responsabilização dos agentes públicos, tendo funções precípuas no sistema de responsabilidade administrativa, civil e penal, a saber: i – no estabelecimento de imputação normativa (já que se alinha à ausência de dever de cuidado); ii – na fixação da indenizabilidade (grau de culpa é baliza que contribui na formulação do ‘quantum ressarcível’, para além da ideia de ‘piso’ ou ‘teto’ indenizável); iii – na ancoragem de desestímulos, tendo em vista o caráter pedagógico.

Destarte, as alterações provocadas pela Lei 14.230/21 são dúbias. Observe que as mudanças mesmo retirando a ‘modalidade culposa para imputação da improbidade administrativa’, exige, todavia, a reparação integral ao patrimônio público. [3]

No caso de lesão ao patrimônio público, a opção da legislação superveniente para o ressarcimento só decorre quando detectável a presença do elemento do injusto (dolo). Sendo a lesão decorrente negligência, imprudência, ou seja, ausência de dever de cuidado (elemento normativo) para com o patrimônio público — em outras palavras “desprezo ao esforço que a lei exige de todos os agentes públicos” — não será devido o ressarcimento e nem mesmo a legislação será aplicável.

Compreende-se aqui inconstitucionalidade aferível nesta alteração, porquanto a noção de “ressarcimento” restou ligada à qualidade de violação (só a dolosa), enquanto deixou-se de lado justamente o “objeto” da proteção constitucional: o bem jurídico tutelado, no caso o patrimônio público. Em outras palavras, as “bitolas” foram trocadas: sai o patrimônio público como bem constitucionalmente tutelado e entra para esfera de proteção a “gravidade da violação havida”.

Remarque-se que o patrimônio público tem robusta proteção constitucional, não só no capítulo dos direitos fundamentais (CF, artigo 5º, inciso LXXIII), mas no dever de zelo e dever de guarda em competência comum entre União, estados, Distrito Federal e municípios (CF, artigo 23, inciso I) e dentre as funções institucionais que condicionam a atuação do Ministério Público (CF, artigo 129, inciso III).

A propósito, na dogmática, o patrimônio público tem natureza de “bem fundamental” [4] porque é objeto de concreção para os direitos fundamentais, o que difere dos bens patrimoniais que têm disponibilidade e são objetos para a permissibilidade dos “direitos subjetivos”.

Não há dúvidas, pois, que o desprezo à modalidade culposa quanto à improbidade administrativa por lesão ao patrimônio público (LIA, artigo 10) é extremamente acintoso aos cânones constitucionais que reservam à coisa pública caráter de indisponibilidade, afetação e domínio geral para atendimento de direitos fundamentais.

Com efeito, mesmo que a LIA com as alterações advindas da Lei 14.230/21, tenha declinado da culpa como elemento normativo, tal nexo imputativo pode ser aproveitado nos termos do artigo 28 da Lei 13.655/18 [5]. A chamada “Lei de Segurança para a Inovação Pública” tem o mérito em aperfeiçoar a sistematização e estruturação do direito administrativo nacional. E, portanto, foi inserida justamente na Lindb.

Destarte, a Lindb caracteriza-se como “metanorma” ou “sobrenorma”. Está vocacionada, sobretudo, à ‘interação’ e ‘integração’ da pluralidade de regras havidas no ordenamento, promovendo a unidade e coerência do sistema jurídico, auxiliando nos mecanismos de interpretação, resolvendo antinomias, preenchendo lacunas, tanto de direito público como de direito privado.

Referida legislação é de ordem pública e interesse social. Portanto, cogente. Não pode ser olvidada, esquecida, desprezada. E neste sentido ela compõe o sistema de imputabilidades do regime jurídico administrativo, podendo acrescer nas hipóteses de lesão ao erário (artigo 10).

O erro grosseiro é definido como aquele que ultrapassa os limites do razoável diante de agente público que exerce suas funções sem precipitações e diligência. Trata-se de “falha manifesta” que evidencia negligência grave. [6] Portanto, o erro grosseiro tipifica comportamento que despreza padrões mínimos esperados de profissionais cuidadosos da administração pública.

Aliás, a Corte Constitucional, mesmo após a edição da Lei 14.230/21, utiliza o “erro grosseiro” como elemento normativo de imputação. [7] E, não fosse isso, cabe importante observação: adotado modelo de ‘direito administrativo sancionador’ e, na lembrança que tal padrão se adapta ao ‘direito penal’, como fazer com a ‘modalidade culposa de peculato’ que é tipificada no 2º do artigo 312 do CP?

Enfim, a “culpa” expulsa pela porta, volta pela janela na forma de ‘erro grosseiro’ ou ‘culpa grave’.

2 — O ‘dolo genérico’ e o ‘dolo específico’

À primeira vista, as alterações havidas, por maior esforço hermenêutico a ser arregimentado, não obriga a comprovação de “dolo específico” para reconhecimento da prática de todos os atos de improbidade administrativa tipificados em reserva legal.

É importante verificar que a lei exige, “além da voluntariedade”, a “vontade livre e consciente de praticar o ilícito tipificado” (LIA, artigo 1º, § 2º), mas isso não deixa de estar albergado no conceito de ‘dolo genérico’ que é, exatamente, o elemento subjetivo (ou elemento do injusto) que leva à improbidade, já que os tipos são fechados e ninguém pode alegar o desconhecimento de lei (Lindb, artigo 3º).

Vale dizer, o dolo com dois elementos psicológicos: o primeiro a cognição (ter consciência), o segundo a volição (tomada de posição). Ou o dolo com dois saberes: o saber efetivo (compreensão da conduta) e o saber devido (conhecimento do desvalor).

Em pouquíssimas tipificações derivadas da alteração, como aquelas constantes do artigo 11, incisos V e VI, utilizando a expressão “com vistas a”, ou no artigo 10, § 2º, quando se exige “finalidade”, estariam, em tese, configuradas certas exigências “a mais” que seriam a intenção de produção de resultado “peculiar”. Entretanto, apesar da finalidade exigida, não se trata de dolo específico já que o fim integra a vontade livre e consciente, portanto “dolo genérico”.

No âmbito do direito penal, para muitos de seus próceres, essa discussão está superada, mantendo o dualismo dolo direto (vontade livre e consciente de produção do resultado) ou dolo eventual (assunção do risco de sua produção). [8] Aliás, essa conclusão ao parece enfrentada pelo STF quando do Tema 1.199. [9]

Caso a introdução do ‘dolo específico’ seja reconhecida, o mister do Judiciário redundaria na célebre frase do jurista francês Philippe le Tourneau ‘quel juge pourrait sonder les reins et les coeurs? Serait-ce vraiment justice?’ (ou… que juiz poderia examinar os rins e os corações? Isso seria realmente justiça?).

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[1] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007).

[2] Essa a exegese condizente com a Constituição Federal no capítulo da administração pública, art. 37. Verbis: § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

[3] Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.

[4] FERRAJOLO, Luigi. Por uma carta dos bens fundamentais.  Revista Sequência. nº 60, p. 29-73, jul. 2010. Veja: “Chamarei por outro lado de bens fundamentais os bens cuja acessibilidade é garantida a todos e a cada um porque objeto de outros tantos direitos fundamentais e que, por isso, da mesma forma que estes, são subtraídos à lógica do mercado: o ar, a água e outros bens do patrimônio ecológico da humanidade e, ainda, os órgãos do corpo humano, os fármacos considerados “essenciais” ou “salva-vidas” e similares”.

[5] Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

[6] MS 24.631/DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa.

[7] STF.  ARE 1235427 ED-AgR-segundo / SP – SÃO PAULO. Relator(a): Min. CRISTIANO ZANIN. Julgamento: 09/10/2023. “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser passível a responsabilização, com base no art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993, apenas do advogado público que emita parecer jurídico em matéria de licitação, desde que demonstrada a existência de dolo, de omissão ou de culpa grave”.

[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral (Arts. 1º a 120). 26ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020., p. 810-811 “o especial fim, embora amplie o aspecto subjetivo do tipo, não integra o dolo nem com ele se confunde, uma vez que, como vimos, o dolo esgota-se com a consciência e a vontade de realizar a ação com a finalidade de obter o resultado delituoso, ou na assunção do risco de produzi-lo”.

[9] STJ – AgInt no RE nos EDcl no AgInt no AREsp: 2027433 PB 2021/0344020-4, Relator: Ministro OG FERNANDES: “A tese constante do Tema n. 1.199/STF não se refere à necessidade de comprovação do dolo específico do agente condenado pela prática de ato de improbidade administrativa”.

Autores

  • é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, presidente do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

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