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PLP 68/2024 e o IBS sobre a atividade financeira: requentando normas?

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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12 de junho de 2024, 8h00

A Emenda Constitucional nº 132 alterou o sistema tributário nacional introduzindo, dentre outras novidades, imposto de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), bem como Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), essa de competência da União  que tributa operações com bens e serviços.

Em fins de abril foi apresentado pelo Poder Executivo, à Câmara dos Deputados, em atendimento ao disposto no artigo 156-A da Constituição, o Projeto de Lei Complementar 68/2024 que institui, dentre outras providências, o IBS e a CBS. No dia de hoje, o que nos interessa, é seu Capítulo II que contempla as regras de incidência desses tributos sobre os serviços financeiros.

O artigo 170, do PLP 68/2024, dispõe que os serviços financeiros ficam sujeitos a regime específico de incidência do IBS e da CBS. Isso significa que os serviços financeiros estarão submetidos a um tratamento na cobrança desses tributos diverso daquele aplicável aos demais serviços, seja por sua base de cálculo seja por sua alíquota. De sua vez, o artigo 171 elenca os serviços financeiros objeto de tributação atendo-se, fortemente, às definições contempladas nas normas regulatórias que tratam dessa atividade no sistema jurídico brasileiro.

Assim o PLP considera como serviços financeiros aqueles objeto de normatização pelos componentes do Sistema Financeiro Nacional (SFN), que estão assim segmentados: (1) moeda, crédito, capitais e câmbio, normatizados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e tendo como agentes fiscalizadores o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM); (2) seguros privados, normatizados pelo Conselho Nacional de Seguros (CNSP) e tendo como agente fiscalizador a Superintendência  de Seguros Privados (Susep) e (3) previdência fechada, tendo como agente normalizador e fiscalizador o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) [1].

Indagação

A leitura do artigo 170 do PLP 68/2024 gera, de imediato, uma primeira indagação visto que o Código Tributário Nacional (CTN), fruto da Emenda Constitucional nº 18/1965, editado em 1966, contempla um capítulo voltado aos tributos sobre a produção e a circulação, dentre eles o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, e sobre Operações Relativas a Títulos e Valores Mobiliários, em seu artigo 63, depois incorporado à Constituição vigente, em seu artigo 153, sob a mesma denominação.

A regulação do artigo 63 do CTN ocorreu ao longo do tempo, mediante a edição de vários atos normativos, que sempre se referem a operações, e, a despeito de seu complexo nome, como acima, por envolver diversas hipóteses de incidência, acabou sendo tratado na lei, na jurisprudência e na doutrina como IOF, Imposto sobre Operações Financeiras, por conta da Lei nº 5.143/1966, que introduziu tal incidência no cenário brasileiro, antecedendo o próprio CTN e cujo texto foi por ele incorporado.

Spacca

No que tange à denominação genérica adotada pelo CTN, tributo sobre a circulação (de bens, no caso a mercadoria dinheiro), ela sempre nos pareceu adequada e segue sendo adequada, visto que tributa fluxos de recursos, capitais investidos independentemente de seus resultados, positivos ou negativos, aplicados em negócios de caráter financeiro, que envolvem o dinheiro [2]. O IOF entra na categoria de tributo extra fiscal, pois mais do que se prestar a “encher” os cofres públicos, volta-se a regular a moeda e o crédito.

Dito isso o que, rigorosamente, diferencia o IOF do IBS sobre “serviços financeiros”?  As que operações esses dois tributos se referem: as mesmas ou elas se diferenciam? A competência estadual para o IBS confronta com a competência federal do IOF? O que as distingue? Deveria a Constituição ter sido alterada para extinguir o IOF ou há algum detalhe específico que sustenta essa “dupla” tributação? O tema, para nós, ainda é obscuro e envolve questão a nosso ver de cunho constitucional, que não abordaremos, para tratar de outros aspectos que nos preocupam e que também podem comprometer o novo modelo tributário desenhado para o segmento financeiro se não devidamente resolvidos.

Concessão de crédito

Dada a amplitude da incidência do IBS sobre serviços financeiros, como se observa da lista proposta no artigo 170 do PLP 68/2024, examinaremos, de forma breve, apenas as operações que envolvem a concessão de crédito, próprias das instituições financeiras, normatizadas pelo CMN e fiscalizadas pelo BC.

De acordo com o artigo 171 do PLP 68/2024 consideram-se, dentre outros, como serviços financeiros, as operações de crédito, assim entendidas as operações de adiantamento, empréstimo, financiamento e desconto de títulos. Essa repartição das operações de crédito corresponde à definição contemplada no Cosif, Padrão Contábil das Instituições Reguladas pelo BC.

Assim o Cosif define: empréstimo como operação de entrega de recursos realizada sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos; desconto de títulos como operação de adiantamento de numerário e financiamento como operação de entrega de recursos realizada com destinação específica, vinculada à comprovação da aplicação desses recursos.

É interessante destacar que a Lei nº 4.595/1964, que trata das instituições monetárias, bancárias e creditícias, em seu artigo 17 considera como instituição financeira, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.

Essa definição pode ser resumida para levar à conclusão de que a atividade principal das instituições financeiras é, estritamente, de intermediação do dinheiro: captar ou utilizar recursos próprios para mutuá-los no mercado, com remuneração (juros).

Os mútuos que não têm natureza econômica, não remunerados, não são praticados pelas instituições financeiras e tampouco interessam ao direito tributário, pois se colocam fora da economia (artigos 586 a 592, do Código Civil). Ainda que o mútuo transfira a propriedade dos recursos, por força da natureza do dinheiro (bem fungível) e da lei (artigo 587, do Código Civil), existe uma contrapartida que é a obrigação de devolvê-los por parte do mutuário, além de um direito a recebê-los de volta, por parte do credor.

A atividade bancária, pela forma como se desenvolve, é remunerada pelo chamado “spread” diferença entre o que se empresta e o que se recebe de volta. A atividade de custódia ou intermediação (aproximação de partes) é remunerada por taxas, tarifas e comissões e não se confunde, em nenhum momento, com o spread, ganho financeiro da instituição.

De forma resumida, até a Emenda Constitucional nº 132, a atividade econômica das entidades financeiras vinha sofrendo as seguintes incidências: (1) sobre o lucro: Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro, ambos calculados a partir do lucro líquido, apurado conforme as normas contábeis do BC; (2) sobre a receita operacional deduzida dos custos de captação: Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), no regime  cumulativo (Lei nº 9.718/98); (3) sobre a prestação de serviços: Imposto sobre Serviços conforme a Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2000.

A nova tributação que se está instituindo incide sobre os serviços financeiros assim entendidos como operações de crédito e elimina, a partir de 2027, as contribuições para o PIS e a Cofins, bem como o ISS. Cabem algumas anotações sobre o tema.

Tema 372

Quando introduzida a Lei nº 9.718/1998, que passou a tributar pelas contribuições para o PIS e a Cofins, o faturamento das pessoas jurídicas, assim entendido como a receita bruta (artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/1977), as instituições financeiras levaram o tema ao Poder Judiciário sob o argumento de que receitas financeiras não integrariam a base de cálculo dessas contribuições, devendo elas incidirem apenas sobre o fruto de serviços financeiros desenvolvidos, logo sobre taxas, tarifas e comissões.

A decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal na sessão virtual finalizada em 12/6/2023, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 609.096, com repercussão geral reconhecida (Tema 372) restando pacificada a tese no sentido de que “as receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das instituições financeiras integram a base de cálculo PIS/Cofins cobrado em face daquelas ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvadas as exclusões e deduções legalmente prescritas”.

O PIS e a Cofins sempre foram tributos controvertidos, por suas características regressivas, incidindo sobre receitas, afastando a não cumulatividade, na hipótese do regime cumulativo e, por fim, tendo a sua própria constitucionalidade discutida sob diversos ângulos e por um longo tempo. No caso específico das instituições financeiras, o PIS e a Cofins ao tomarem como base de cálculo a receita operacional deduzida dos correspondentes custos e despesas, tributam, na realidade, o lucro bruto, o que torna essa incidência ainda mais curiosa, assemelhando-a a um tributo sobre o lucro, a exemplo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro.

Para fins de ISS, a base de cálculo sempre foi o preço dos serviços contemplado na Lista de Serviços da Lei Complementar nº 116/2003, no caso o item 15, sob a designação de “Serviços relacionados ao setor bancário ou financeiro”. O preço desses serviços corresponde a taxas, comissões e tarifas vinculadas à atividade de intermediação bancária.

Distorção

O grande objetivo do PLP 68/2024 é tributar o consumo, mas o que é o consumo para fins de serviços financeiros? Consumo, de forma geral, é o ato de gastar/destruir algo. O que se consome para fins tributários? Riqueza ou utilidade? Riqueza é algo que acresce, do ponto de vista patrimonial, e assim integrada ao patrimônio de alguém se presta a gerar novas riquezas ou ser consumida/fruída na aquisição de utilidades. Quem consome serviços financeiros está apenas adquirindo utilidades ofertadas pelo sistema financeiro, como intermediação em negócios, administração e custódia de bens, dentre outros.

Esse conceito é utilizado em todos os países que adotaram o IVA, Imposto de Valor Agregado, como é o caso da União Europeia, onde o que se tributa são taxas, tarifas e comissões pagas por aqueles que se valem dos serviços prestados por essas instituições. A receita financeira originada por negócios de mútuo e similares não é objeto de tributação pelo IVA, estando tal desoneração expressamente prevista em lei. Por essa razão, adotar conceitos e orientação jurisprudencial do PIS, da Cofins e do ISS, no Brasil, pode não ser prudente quando se fala de tributo sobre o consumo.

De acordo com o artigo 174, do PLP 68/2024, o IBS e a CBS, incidem, de forma geral, sobre as receitas de serviços financeiros, “excluídas as reversões de provisões e as recuperações de créditos baixados como prejuízo”. Ora, se a receita gerada pela atividade financeira decorre da atividade de intermediação, não faz sentido considerar base de cálculo a receita financeira, o spread, originado de aplicações de recursos integrados ao patrimônio do banco, como no caso do PIS e da Cofins. Na realidade se está a importar a base de cálculo do PIS e da Cofins veiculada pela Lei nº 9.718/1998, como já comentado, trazendo imensa distorção nos critérios do IBS e da CBS.

É de pasmar que a Exposição de Motivos do PLP 68/2024, ao tratar do Capítulo II da Lei, esclareça em seu item 129 que os “(…)  países que adotam o IVA geralmente isentam os serviços financeiros, principalmente aqueles remunerados por margem (spread) (…)  Países com modelos de IVA mais modernos, como Canadá, África do Sul e Cingapura, passaram a tributar os serviços financeiros remunerados por tarifa ou comissão, mantendo a isenção para outras atividades. 130. A isenção total ou parcial dos serviços financeiros trouxe inúmeras distorções econômicas nos países, tais como cumulatividade (acúmulo de créditos não recuperáveis), incentivo à integração vertical (em detrimento da contratação de prestadores de serviços externos) e elevados custos administrativos, judiciais e de conformidade. (…) 131.O Brasil será pioneiro ao tributar os serviços financeiros remunerados por margem pelo IBS e pela CBS. que impliquem captação, repasse, intermediação, gestão ou administração de recursos”. De tudo isso, o que se infere é que o Brasil adotará um IVA que é diverso daquele adotado nos outros países, desprezando experiências anteriores, pois IBS/CBS incidirão sobre o lucro bruto das transações financeiras, onerando o spread, objeto, isso sim do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro.

Reflexos preocupam

Tudo isso gera reflexos preocupantes à luz da experiência brasileira, especialmente porque a atuação e desempenho do segmento sempre gera impactos no preço dos juros. O que se tem, portanto, é a manutenção de velhas práticas, “mais do mesmo”, podendo o  PIS e a Cofins adquirir uma sobrevida não esperada após o ano de 2027, ainda que revogados! Seria por isso que a lei esclarece que os serviços financeiros estarão submetidos a um tratamento diverso na cobrança, quer por sua base de cálculo quer por sua alíquota? Depreende-se que o principal objetivo, de curto prazo, é arrecadar e não reformar o sistema tributário, como tanto se propalou.

É interessante destacar que o Brasil utiliza o modelo e a experiência de IVA de outros países, no que lhe interessa, sendo certo que para instituições financeiras essa experiência é destituída de importância.

Em conclusão, nossa reforma tributária deve guardar coerência com o modelo eleito. O PLP 68/2024 se anuncia como gerador de futuros questionamentos, na medida em que repete, sem pudor, a incidência do PIS e da Cofins sobre o lucro bruto, fruto da remuneração das entidades responsáveis pela concessão de crédito, um dos mais importantes pilares de nossa economia.

 


[1] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sfn

[2] Veja-se Elidie Palma Bifano,  Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, e sobre Operações Relativas a Títulos e Valores Mobiliários (IOF), in Tratado de Direito Tributário , coord. Ives Gandra da Silva Martins et alt. ,  vol. 1, São Paulo:  Saraiva, 2011, pp. 468-499.

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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