Opinião

Legitimidade eleitoral x nepotismo: preservação de direitos fundamentais e combate à corrupção

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12 de junho de 2024, 11h27

Nos últimos dias, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1.089/DF, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, vindo a firmar, por 7 votos a 4, a tese de que as inelegibilidades tratadas no artigo 14, §7º, da Constituição não alcançam as eleições para presidência de câmaras municipais, assembleias legislativas, câmara distrital, Câmara dos Deputados ou Senado. Em outros termos, políticos que tenham alguma relação familiar entre si podem ocupar, concomitantemente, as chefias do Poder Legislativo e Executivo no mesmo estado ou município ou na esfera federal ¹.

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Nepotismo

As posições contrapostas foram capitaneadas pela ministra Cármen Lúcia e pelo ministro Flávio Dino, ambos com votos muito bem construídos e alicerçados. De um lado, a relatora votou pela improcedência da ação proposta, com fundamento no princípio da separação de poderes — artigo 2º da Carta Magna —, na medida em que, ao dar interpretação extensiva à norma limitadora de direitos fundamentais políticos — artigo 14 da CRFB/88 —, o Supremo Tribunal Federal estaria agindo como “poder constituinte reformador”, ferindo a independência do Poder Legislativo.

Em complemento, os ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes, acompanhando a relatora, justificaram seus votos no princípio democrático — artigo 1º da Carta da República —, argumentando que os parlamentares são eleitos pelo povo para ocupar seus mandatos e, em segundo plano, por seus pares para presidência das respectivas casas ou câmaras legislativas, de modo que estender a interpretação do artigo 14, §7º para as eleições intra corporis seria restringir direito fundamental dos eleitores e dos parlamentares, criando hipótese de inelegibilidade não prevista pela Constituição ².

Do outro lado, inaugurando a divergência, o ministro Flávio Dino defendeu a procedência do pedido, a partir de forte análise empírica do cenário político brasileiro atual e ao longo da história, aduzindo que posição contrária poderia abrir caminho para o fortalecimento de poderes familiares e oligarquias políticas, especialmente, nos estados e municípios, de modo que considerou o nepotismo como forma de corrupção.

Além disso, o ministro, juntamente, com o ministro Edson Fachin, fundamentou seu posicionamento nos princípios constitucionais, especialmente, no princípio republicano e da independência entre os poderes — artigos 1º e 2º da CRFB/88 —, observando que, em caso de possibilidade de relação de parentesco entre os chefes do Legislativo e do Executivo, os rumos de um município ou de um estado poderiam vir a ser decididos “dentro de quatro paredes” — no caso de uma relação de casamento, por exemplo — e a independência institucional poderia ser comprometida, havendo concomitância entre poder controlado e poder controlador.

Assim, o debate se concentrou no conflito de valores constitucionais e de formas de interpretação: de um lado, os direitos fundamentais políticos e a legitimidade eleitoral do parlamentar e, de outro, o republicanismo e a independência institucional. Nesse sentido, em resumo, passou-se à ponderação entre os direitos fundamentais ao voto e à candidatura e os princípios do republicanismo e da independência entre poderes, na busca pela solução do conflito normativo sob tensão, sem deixar de observar as premissas constitucionais gerais, nos termos dispostos por Ana Paula de Barcellos ³.

Em adendo, no balanceamento de valores jurídicos, é preciso que um seja limitado — mas não anulado — e o outro seja destacado, de forma que, no caso em foco, os princípios republicano e da independência institucional foram mitigados em favor do direito fundamental de votar e ser votado e da separação de poderes. É importante ainda destacar a diferenciação feita pelo ministro Alexandre de Moraes entre a prática de nepotismo e a situação julgada, na medida em que aquela se refere à existência de relação de parentesco entre quem nomeia e quem é nomeado e esta trata de indivíduos legitimamente eleitos pelo povo, já aprovados no crivo do artigo 14, §7º, de modo que deve ser efetivado o direito inerente ao parlamentar de se candidatar à presidência de sua casa e, se for o caso, ser eleito, em respeito ao princípio democrático insculpido no artigo 1º da Carta Política.

Além disso, houve conflito nas formas de interpretação constitucional: de um lado a restritiva e gramatical, de outro, a extensiva e sistemática. Nesse particular, Guilherme Peña de Moraes aponta a interpretação gramatical como a que incide na literalidade dos enunciados linguísticos do texto constitucional, sendo restritiva quando o intérprete limita o sentido da disposição normativa 4.

Já sobre a interpretação sistemática, o referido autor a descreve como consultiva do caráter intrínseco à ordem constitucional, com a observância das relações de coordenação ou subordinação no ordenamento jurídico, sendo extensiva quando o intérprete elastece o sentido normativo 5.

Precedentes de direitos fundamentais

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Nessa linha, a partir dos conceitos levantados, é possível argumentar que a Suprema Corte brasileira foi coerente com seus precedentes interpretativos de direitos fundamentais, data vênia os argumentos da divergência. É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 13 — a qual trata da vedação ao nepotismo na administração pública 6 —, declarou a inconstitucionalidade da prática do prefeito itinerante (RE nº 637.485/RJ) 7 e a impossibilidade dos substitutos eventuais do presidente da República exercerem esta função interinamente caso ostentem a posição de réus criminais (ADPF nº 402/DF) 8.

Entretanto, em tais casos, ou não havia redação constitucional expressa que obstasse as decisões e a interpretação a partir de princípios — vide artigo 37, caput, e artigo 14, §5º, cujos textos são mais amplos —, ou o dispositivo da Carta Magna possibilitou abertamente tal entendimento, como no caso do artigo 86, §1º, I, o qual traz hipótese clara de afastamento do presidente da República. Por outro lado, o artigo 14, §7º apresenta hipótese limitada às eleições para acesso a mandatos parlamentares, ao se referir expressamente ao “pleito” na forma definida, de modo que, sendo o texto claro, não há grande margem para demais interpretações.

Ademais, é válido recordar, por exemplo, os casos da equiparação do prazo da licença-adotante ao da licença-gestante (artigo 7º, XVIII), julgado no RE nº 778.889/PE 9; do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar (artigo 226, §3º), julgado na ADPF nº 132/RJ 10; e a abrangência dos dados registrados pela inviolabilidade das comunicações (artigo 5º, XII), julgado no HC nº 168.052/SP 11.

Os três casos envolvem o reconhecimento de mutação constitucional pelo Tribunal e, consequentemente, a alteração do sentido dos dispositivos a eles relacionados 12, sendo que, em todos, a interpretação extensiva e sistemática da norma foi para expansão dos direitos fundamentais, em conformidade com o princípio da vedação ao retrocesso.

Assim, excetuados alguns julgamentos pontuais, recentemente, o STF tem se assentado na preservação ou, se possível, na ampliação dos direitos fundamentais, entendendo pela prevalência destes na ponderação jurídica envolvendo outros princípios constitucionais, mantendo-se firme no ideal jurídico da impossibilidade de interpretação extensiva à norma restritiva de direitos.

Nesse contexto, cabe ainda abordar a noção de um “direito fundamental anticorrupção”. Ainda que o termo não tenha sido propriamente levantado no debate do Supremo, a construção feita pela divergência a respeito da função do STF de encaminhar uma mensagem contra a corrupção e a concentração de poder pode, por vezes, posicionar tal prática ímproba como um elemento cujo enfrentamento justifica, de pronto, o afastamento ou mitigação de eventuais garantias ou direitos que se mostrem “empecilhos” para sua efetivação.

Nesse sentido, Valerio Mazzuoli e Landolfo Andrade argumentam que, enquanto a vida em um ambiente livre de corrupção não for reconhecida como um direito humano, o estado de governança que se deseja alcançar internacionalmente será uma mera ilusão, na medida em que a corrupção tem magnitude para desencadear consequências negativas no sistema democrático, no Estado de Direito e nos direitos humanos em geral 13.

Todavia, respeitadas as razões levantadas pelos autores, um direito humano anticorrupção seria como um direito humano antirroubo ou antifurto, por exemplo, quando, na realidade todos são antíteses de crimes específicos incluídas no direito à segurança, à integridade física e à vida, devendo estes serem protegidos e efetivados na sociedade.

Nessa linha, a elevação específica do combate à corrupção a direito humano, apesar de ter benefícios (como um enfrentamento mais potente a tal ilícito, por exemplo), pode, na mesma medida, tornar-se fundamento automático para afastamento de direitos fundamentais, mesmo quando não há indícios de prática ímproba, como no caso da ADPF nº 1.089/DF.

Desse modo, ainda que a noção de direito humano anticorrupção não tenha sido ventilada no julgamento aqui tratado, o uso do histórico de corruptela no Brasil e da necessidade de enfrentamento desta como um dos fundamentos de limitação dos direitos fundamentais esboça semelhanças com tal tese.

Com efeito, a corrupção e o abuso de poder devem ser encarados como problemáticas reais e enfrentadas devidamente, analisando-se cada caso concreto à luz da Constituição e da legislação complementar, como realçado por diversos dos ministros no plenário, mas não pode ser justificativa para aplicar restrição de direitos não prevista pela Carta Magna e transformar a Corte em “poder constituinte reformador”, como pontuado pela ministra Cármen Lúcia.

Por fim, cabe destacar uma ideia a ser depreendida deste julgamento: o fato de uma estrutura não ser estimada ou preferida pela sociedade não significa necessariamente que ela seja inconstitucional. Tal noção, a princípio, parece evidente, mas, ao ser confrontada com situações como esta — onde, aparentemente, há um problema moral na ocupação simultânea da chefia de dois poderes pela mesma família —, pode ser desafiada.

Assim, mesmo em face de circunstâncias moralmente difíceis, deve-se atentar para a norma constitucional e, se for verificado que tais conjunturas estão prejudicando a sociedade, o julgador pode e deve fazer uso do “apelo ao legislador”, numa paráfrase da técnica de controle de constitucionalidade, de modo a sugerir ao Poder Legislativo a modificação do cenário — como, de fato, ocorreu no caso —, mantendo-se a harmonia e a independência entre os Poderes.

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Referências

Parentes podem ocupar chefia do Legislativo e do Executivo simultaneamente, decide STF. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 05 jun. 2024. Disponível em: <Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)>. Acesso em: 06 jun. 2024.

Ibidem.

BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 32, 33 e 38.

MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 163 e 164.

Ibidem, p. 163.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 13. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 29 ago. 2008. Disponível em: <Pesquisa de jurisprudência – STF>. Acesso em: 07 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário nº 637.485. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 21 maio 2013. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=141127767&ext=.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 402. Relator: Ministro Marco Aurélio. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 29 ago. 2018. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=315124511&ext=.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário nº 778.889. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 01 ago. 2016. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=309917262&ext=.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132. Relator: Ministro Ayres Britto. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 14 out. 2011. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 07 jun. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 162.052. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 02 dez. 2020. Disponível em: .<https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15345143997&ext=.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2024.

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. 1. ed. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 9 e 10.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; ANDRADE, Landolfo. Incorporação das convenções de combate à corrupção no direito brasileiro e a Lei de Improbidade Administrativa. [s.d,]. 19 f. [s.l.].

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