Opinião

Interpretação ao artigo 5º da Convenção Interamericana contra o Racismo

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12 de junho de 2024, 20h58

Em artigo recentemente publicado na Folha de S.Paulo [1], a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente defende o argumento de que a extinção de cotas raciais seria uma atitude inconstitucional. Tal argumento merece ser objeto de uma análise mais aprofundada.

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Em uma apertada síntese, o argumento de Prudente é o seguinte: pretos e pardos sofrem diversas barreiras para ter acesso ao ensino superior no Brasil em igualdade com os brancos. Deste pressuposto, fático, segundo Prudente, decorre a necessidade de ações afirmativas que funcionem como reparação das barreiras históricas, com vistas à participação “do direito ao conhecimento, combatendo disparidades socioeconômicas”[2].

Até aqui, nada de novo, é o conhecido argumento em prol das cotas. A novidade é a seguinte: segundo Prudente, como o Brasil assinou, ratificou e promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, nos moldes do artigo 5º, § 3, da CF/1988 (tratados de direitos humanos com status equivalente às emendas constitucionais),[3] a Convenção, no seu artigo 5º [4], contém uma disposição de que os estados-parte se comprometem a adotar políticas especiais e ações afirmativas para “assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos”.

Então, a revogação de políticas de cotas raciais teria se tornado uma atitude inconstitucional.  Na síntese da própria Prudente: “legislações específicas podem ser temporárias, mas a mera e simples extinção de políticas de ações afirmativas é atitude inconstitucional”.

Com efeito, Prudente tem razão. Não parece fazer muito sentido querer discutir a política de cotas raciais sem um pressuposto comum de que o Brasil é um país desigual não só em termos socioeconômicos, mas também em termos de cor e/ou raça. [5]

De outro lado, porém, é importante lembrar que a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância não é o primeiro dispositivo internacional a tratar sobre ações afirmativas. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (Convenção de Nova Iorque), que foi promulgada seguindo os moldes do artigo 5º, § 3º, da CF/1988, também dispõe, em seu artigo 27, 1, h, que os estados promoverão a inclusão de pessoas com deficiência, inclusive, se o caso, por meio de ações afirmativas. [6]

Similarmente, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), em seu artigo 4º, admite a “adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher” [7].

A Cedaw, fato, não foi aprovada segundo o rito do artigo 5º, § 3º, da CF/1988, mas ainda se inclui na hipótese do § 2º do mesmo artigo 5º (não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes dos tratados que o Brasil seja parte) [8] e pode ser considerada norma supralegal, segundo o entendimento firmado no RE 466.343-1/SP.

Dos três casos citados, é evidente que há uma diferença qualitativa entre a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que determina a adoção de medidas com vistas à eliminação da desigualdade es disposições da Cedaw, que apenas explícita que ação afirmativa não é “desigualdade reversa” e a disposição da Convenção de Nova Yokr, que apenas cita a ação afirmativa como meio possível de promoção da inclusão das pessoas com deficiência.

Por mais enfática, entretanto, que tenha sido a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, a disposição do artigo 5º é, evidentemente, que é necessária alguma teleologia para a adoção das políticas especiais e ações afirmativas. Isto é, só faz sentido existirem políticas especiais ou ações afirmativas, nos termos da própria convenção, quando estejam presentes os pressupostos: de um grupo injustamente discriminado; [9] e direitos e garantias a serem gozados em igualdade de condições com as demais pessoas; ou condições desiguais de acesso a oportunidades.

Quando estão dadas as precondições, a Convenção, sim, entende que alguma medida deve ser tomada pelo Estado, mas tal medida é necessária a ação afirmativa? A própria menção às “políticas especiais” e ao fato de as medidas serem “necessárias” parece indicar que a Convenção não pretende, simplesmente, aniquilar a discricionariedade do estado-parte (e, pois, das autoridades do Estado-parte) para moldarem a política que melhor se adeque à situação concreta.

Em outras palavras, o artigo 5º da convenção é, sim, uma ordem para a ação do Estado, mas é também uma baliza e, sobretudo, não parece ser, como quer fazer crer o argumento de Prudente, um aniquilador da discricionariedade legislativa e administrativa na escolha dos meios para se alcançar o fim almejado (igualdade) — até porque, na pluralidade de casos possíveis em que a desigualdade se manifesta, nem sempre a adoção de ações afirmativas será capaz de efetivamente vencer o problema e, mesmo quando a ação afirmativa parece ser a solução adequada, o seu desenho enquanto política pública ainda pode ser variável, como mostram, por exemplo, as regras do Sisu.[10] e [11]

Superação de desigualdade racial

O argumento de Prudente, portanto, além de simplesmente fechar a porta para a discussão a respeito de modelos e políticas alternativas às cotas raciais para se alcançar a igualdade racial com o argumento ex ante de inconstitucionalidade da revogação da política — o que, diga-se de passagem, não é nem um pouco democrático —, ainda, de quebra, rechaça a possibilidade de imaginação de outras políticas institucionais para superação da desigualdade racial que não as cotas raciais — afinal, trata-se, segundo ela, de um mandamento constitucional — a exemplo da proposta de substituição das cotas raciais por cotas sociais [12] (o que, diga-se de passagem, não é lá a maior inovação de todas), contra a qual ela se insurge [13].

Em matéria de cotas raciais (e, também, sociais), há muito mais o que se fazer do que discutir constitucionalidade ou inconstitucionalidade (tema que parece ter sido superado) da política, ou a respeito de sua constitucionalização e revogação (hipótese que, hoje, parece remota). A título de exemplo, deixo alguns problemas jurídicos e de desenho da política que me parecem mais interessantes:

  1. Bancas de heteroidentificação. No começo deste ano, a Universidade de São Paulo protagonizou vários casos em que as chamadas bancas de heteroidentificação (que basicamente julgam a veracidade ou não da autodeclaração racial do candidato. Ou seja, julgam o fenótipo do candidato) foram questionadas por impedir a matrícula de candidatos que não foram considerados como pardos. [14] Se a políticas de cotas raciais vai ser mantida, é necessário enfrentar o desafio de como conciliar a autodeclaração e autopercepção dos candidatos com a prevenção de fraudes no sistema e, especialmente, de como lidar, neste modelo, com a figura do pardo (que é, por definição, miscigenada).
  2. Efetividade. Se o objetivo da política de cotas raciais é garantir que grupos historicamente marginalizados possam fruir de direitos e garantias fundamentais como o acesso ao serviço público de forma isonômica e imparcial ou ao ensino superior, então a simples adoção da política de cotas, por si só, já é apta a atingir tais objetivos. Porém, obviamente, a política de cotas se justifica também com o escopo mais amplo e de mais longo prazo de superar a desigualdade racial no Brasil. Se isto é verdade, é importante que os defensores das cotas raciais apresentem alguma métrica ou alguma evidencia que indique a efetividade das cotas raciais nesta direção. Uma abordagem possível e que geraria um argumento forte para os opositores dessa política, contrario sensu, seria mostrar como a política de cotas não se traduz em redução da desigualdade socioeconômica existente entre os grupos hegemônicos e os grupos marginalizados da sociedade.
  3. Fim das cotas. Praticamente todos os instrumentos normativos a respeito de ações afirmativas preceituam que eles devem ser temporários, mas nenhum deles dá um critério claro de quando a política deve ser considerada extinta. Pensar em um limite razoável para a extinção da política de cotas raciais é algo que concerne aos dois lados do debate (quem é contra e quem é a favor). A título de exemplo, note-se que a Resolução nº 525/2023 do CNJ já estipulou, em seu artigo 1º-A, os limites de incidência da política, quais sejam, até o atingimento da composição feminina de 40% a 60% das vagas nos tribunais de 2º grau. [15] Qual o limite razoável para cessar a incidência de reserva de vagas no serviço público? E nas universidades? Tais questões estão largamente sem resposta e sem discussão.

[1] PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus, Extinção de políticas de ações afirmativas é atitude inconstitucional, Folha de São Paulo, 2024.

[2] Ibid.

[3] “Art. 5º […] § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

[4] “Os Estados Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos. Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo”.

[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, 2. ed. [s.l.]: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022.

[6] “1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Esse direito abrange o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e promoverão a realização do direito ao trabalho, inclusive daqueles que tiverem adquirido uma deficiência no emprego, adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação, com o fim de, entre outros: […] h) Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas”

[7] Na íntegra: “1. A adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.”

[8] “§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

[9] Ninguém diria que os criminosos estão sendo injustamente discriminados por serem presos, por exemplo (isto é, que há uma fruição desigual injusta do direito à liberdade). Mas quase qualquer um diria que alguém que não tem acesso à escola ou à saúde por ser pobre ou negro está sendo discriminado e que tal forma de discriminação é injusta. Um argumento deste tipo pode ser encontrado com mais detalhes em ELY, John Hart, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, Cambridge, Massachusetts; London: Harvard University Press, 1980.

[10] Ver, à título de exemplo: Portal Único de Acesso ao Ensino Superior, disponível em: <https://acessounico.mec.gov.br/sisu/duvidas>. acesso em: 9 jun. 2024.

[11] É importante notar que a posição que estou defendendo não está em dissonância com o que se decidiu no Brasil a respeito de cotas e políticas públicas nos últimos anos, tampouco impede uma eventual intervenção do Poder Judiciário em caso de omissão do Poder Público. Vide, nesse sentido: ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26-04-2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205  DIVULG 17-10-2014  PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009; ADC 41, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08-06-2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180  DIVULG 16-08-2017  PUBLIC 17-08-2017; RE 684612, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n  DIVULG 04-08-2023  PUBLIC 07-08-2023.

[12] FOLHA DE SÃO PAULO, Cotas sociais, não raciais, Folha de São Paulo, 2024.

[13] PRUDENTE, Extinção de políticas de ações afirmativas é atitude inconstitucional.

[14] PALHARES, Isabela, Aluno processa USP após perder vaga em direito por não ser considerado pardo, Folha de São Paulo, 2024; PALHARES, Isabela, USP cancela matrícula de cotista de medicina por negar que ele seja pardo, Folha de São Paulo, 2024.

[15] “Art. 1º-A No acesso aos tribunais de 2º grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal.”

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