Opinião

(In)constitucionalidade da restrição do direito à saída temporária

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12 de junho de 2024, 18h12

A Lei 14.843/2024 alterou a Lei nº 7.210 (LEP), de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre diversos temas, entre eles a restrição ao benefício da saída temporária, o que tem despertado uma série de debates e discussões.lei

Inicialmente, é necessário destacar que a nova legislação e o fenômeno jurídico por ela produzido podem também ser analisados nos campos da zetética (sociologia, psicologia, criminologia etc.). [1]

No entanto, neste breve ensaio, serão abordados alguns argumentos (dogmáticos) controversos em relação à inconstitucionalidade da lei, os quais podem ser sintetizados em quatro vertentes [2]:

  1. O novo diploma fere o princípio da individualização da pena;
  2. Houve violação ao princípio da vedação ao retrocesso, uma vez que o legislador limitou a concessão do benefício;
  3. A dignidade da pessoa humana do sentenciado está sendo prejudicada, na medida em que seus direitos não são considerados e respeitados;
  4. A alteração prejudica a ressocialização do condenado, já que, ao não permitir a saída, sua capacidade de inserção no contexto social está prejudicada.

No futuro, outras razões poderão ser debatidas, mas até o presente momento, entendemos que estes fundamentos não são suficientes para considerar a lei inconstitucional.

Este ensaio pretende refutar de maneira sintética essas linhas argumentativas.

Princípio da individualização da pena

A individualização da pena é um princípio fundamental do direito penal, que visa assegurar que a pena aplicada a um condenado seja proporcional e justa, levando em consideração tanto as circunstâncias específicas do delito quanto as características pessoais do infrator.

Este princípio está previsto na Constituição (artigo 5º, inciso XLVI) e é detalhado na legislação infraconstitucional.

A individualização da pena ocorre em três fases: legislativa, judicial e executória. A lei em questão alterou a fase executória (benefício penal da saída temporária).

A Constituição, ao versar sobre a individualização da pena, proíbe a padronização da sanção penal, exigindo a adequação da execução penal às necessidades e características do condenado.

Não nos parece que houve uma padronização na alteração legislativa. A lei apenas veda a saída temporária para determinados casos, como crimes hediondos ou com violência ou grave ameaça contra a pessoa [3].

Na situação, o legislador apenas estabeleceu que, para determinados tipos de crimes, não é permitida a saída temporária, justamente por se encontrarem em uma situação jurídica distinta dos condenados por outros delitos.

Em síntese, consideram-se as particularidades de cada crime.

Não há uma estandardização que impeça a individualização da execução penal. O legislador decidiu criar critérios distintos justamente para aqueles que praticarem crimes mais graves.

A Constituição estabelece que apena será cumprida de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII).

Os próprios condenados, de acordo com o artigo 5º da Lei 7.210/1984, serão classificados com base em seus antecedentes e personalidade, visando a orientar a individualização da execução penal.

Além disso, para aqueles que cumprem pena privativa de liberdade em regime fechado, é necessário que se submetam a exame criminológico para obtenção dos elementos necessários para uma classificação adequada (artigo 8).

Assim sendo, a própria Lei de Execução Penal estabelece critérios distintos, considerando a personalidade do indivíduo, o delito cometido e o regime de cumprimento da pena, a fim de evitar a unificação da sanção penal.

Por fim, é importante destacar que os crimes hediondos têm respaldo constitucional, de modo que a própria Constituição lhes confere tratamento jurídico distinto (artigo 5º, inciso XLIII).

Sendo assim, não há lesão ao princípio da individualização da pena.

Vedação ao retrocesso e dignidade humana

Em razão da uma conexão entre vedação ao retrocesso e dignidade humana, iremos abordar estes tópicos de forma conjunta.

Não vislumbramos lesão ao princípio da vedação ao retrocesso. A retirada completa da “saída temporária” do ordenamento jurídico poderia ser considerada um retrocesso, porém, isso não ocorreu.

A lei apenas restringe, em hipótese constitucionalmente justificável, a saída temporária para certos delitos, mantendo o benefício em outros casos.

Em relação à dignidade da pessoa humana, não se constata que este princípio esteja sendo violado.

Conforme visto, a saída temporária pode ser deferida para três finalidades: visita à família; frequência a curso; e participação em atividades que contribuam para o retorno ao convívio social.

Estes desígnios permanecem para aqueles que não têm direito à saída temporária, com a diferença de que serão realizadas mediante vigilância direta do Estado.

O sentenciado continuará a receber visita do cônjuge, companheira, parentes e amigos em dias determinados (artigo 41, inciso X da Lei 7.210/1984).

A assistência educacional também deve ser mantida (artigo 11, inciso IV, artigo 17, artigo 41, inciso VII da Lei 7.210/1984).

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Desde 2015, é dever do Estado fornecer o ensino médio, regular ou supletivo, com formação geral ou educação profissional de nível médio, que deve ser implantado nos presídios, em obediência ao preceito constitucional de universalização (artigo 18-A da Lei 7.210/1984).

A execução penal afeta a liberdade do sentenciado (como consequência da prática de uma infração penal), mas os outros direitos estão conservados.

A assistência educacional e o direito de visita estão mantidos, preservando a dignidade do sentenciado (artigo 5º, inciso XLIX da Constituição).

Em síntese, não entendemos que a restrição à saída temporária, em determinados casos, esteja inequivocamente violando o núcleo essencial dos direitos estabelecidos para o apenado.

Ressocialização

O último argumento diz respeito ao prejuízo que a medida pode impor à ressocialização. Sobre esta alegação, é preciso discorrer de forma mais aprofundada.

O artigo 1º da Lei 7.210/1984 deixa expresso que a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Este raciocínio tem sua razão de ser, porém, compreendemos que ele diz respeito mais à eficácia social [4] da norma, do que propriamente à sua inconstitucionalidade.

Analisar a relação entre “reinserção social” e “a proibição à saída temporária”, dependendo do enfoque criminológico adotado na pesquisa, pode levar a resultados drasticamente diferentes.

Por exemplo, se a pesquisa sobre o impacto da restrição à saída temporária partir de uma perspectiva abolicionista penal, a própria prisão pode ser considerada um fator criminógeno.

Consequentemente, com ou sem a concessão da saída temporária, a análise criminológica abolicionista sugere que a prisão é inerentemente prejudicial.

Desta forma, a apreciação desta lei no âmbito do prejuízo à ressocialização deve ser feita, primordialmente, no âmbito zetético, em especial, na criminologia e na psicologia.

Trazer este contexto (zetético) para sustentar a inconstitucionalidade (dogmática) seria prematuro.

Quando o assunto envolve temas complexos e controversos, é encargo do Poder Judiciário agir com deferência às políticas escolhidas pelo Poder Legislativo.

É evidente que, com o passar do tempo, uma norma pode sofrer uma inconstitucionalidade progressiva [5] diante das novas situações fáticas apresentadas.

Contudo, abordar esta questão em uma lei recém-aprovada implicaria, como estamos tentando demonstrar, uma investigação no nível empírico (e de certo modo, epistemológico), que neste momento poderia ser puramente especulativo.

Conforme explica Tércio Sampaio Ferraz Júnior, é manifesto que o jurista deve considerar o direito vigente, os fatores sociais que o influenciam, sua eficácia social, recorrendo à pesquisa zetética. (Introdução ao estudo do Direito: decisão, técnica e dominação. 10ª ed. 2018, p. 57).

Contudo, o princípio básico da dogmática é a incontestabilidade dos pontos de partida, mas isso não significa apenas afirmar e repetir dogmas.

A dogmática depende desse princípio, mas vai além dele, ampliando a liberdade ao lidar com normas. (Ferraz Júnior., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: decisão, técnica e dominação. 10ª ed. 2018, p. 58).

Em outros termos, não descartamos a realidade carcerária brasileira e a necessidade da reinserção social do apenado.

Contudo, a alegação de possível prejuízo à ressocialização, não pode conduzir, à primeira vista, à inconstitucionalidade da norma.

O leitor mais atento poderia, então, se perguntar: o artigo 1º da LEP não possui força normativa para vincular qualquer alteração legislativa que afete a política criminal de ressocialização?

É evidente que sim!

Não obstante, isto não leva, de forma automática, à conclusão de que qualquer modificação que restrinja determinado benefício, por si só, pode prejudicar a ressocialização.

Ademais, como já afirmamos acima, os direitos à visita e à educação continuam previstos, embora sejam exercidos com a vigilância direta.

Caso esses direitos fossem removidos do ordenamento jurídico, então se poderia argumentar pelo prejuízo à ressocialização, evidenciando a inconstitucionalidade.

Isso decorre da regra de que a sentença penal deve limitar-se a restringir apenas a liberdade do sentenciado, preservando integralmente os demais direitos fundamentais.

A eficácia social de uma norma e seu impacto na ressocialização exigem análise detalhada, e não se pode concluir de imediato que qualquer alteração legislativa que restringe benefícios seja inconstitucional, especialmente quando direitos essenciais continuam assegurados.

Conclusão

Em suma, a análise da (in)constitucionalidade da restrição do direito à saída temporária suscita debates complexos que abrangem diversas áreas do conhecimento jurídico, criminológico e sociológico.

Os argumentos apresentados neste ensaio buscaram analisar os pontos controversos sob uma perspectiva dogmática, considerando princípios fundamentais do ordenamento jurídico, como a individualização da pena, a vedação ao retrocesso, a dignidade da pessoa humana e a ressocialização do condenado.

Observou-se que a restrição à saída temporária não viola diretamente os princípios constitucionais da individualização da pena e da vedação ao retrocesso, uma vez que a lei apenas estabelece critérios distintos para a concessão desse benefício, levando em consideração a natureza dos crimes cometidos.

Em relação à dignidade da pessoa humana, verificou-se que, apesar da restrição, outros direitos fundamentais dos sentenciados, como o direito à visita e à educação, permanecem preservados, garantindo um mínimo de condições dignas durante o cumprimento da pena.

No entanto, a análise da eficácia social da norma e seu impacto na ressocialização demandam uma investigação mais aprofundada, especialmente sob a ótica da criminologia.

Portanto, conclui-se que, diante da análise realizada, a restrição do direito à saída temporária estabelecida pela Lei 14.843/2024 não parece violar diretamente princípios constitucionais fundamentais, sem prejuízo de futuras discussões que possam surgir para enriquecer o debate e aprimorar as políticas penais do país.

 


[1] Este tema será abordado mais adiante.

[2]Parte desses argumentos foi apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski nas razões que fundamentaram o veto presidencial, bem como no link da seguinte reportagem. Fim de saída temporária prejudica a função penal e não reduz criminalidade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-14/fim-de-saida-temporaria-prejudica-a-funcao-penal-e-nao-reduz-criminalidade/?utm_term=Autofeed&utm_medium=Social&utm_source=Twitter#Echobox=1708002001. Acesso em 08/06/2023.

[3] Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos :I – visita à família; II – frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;

III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Parágrafo único. A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução. § 1º A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução. § 2º Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa.

 

[4]  “(…) podemos definir a eficácia jurídica como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente — ou não — desta aplicação” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 13ª edição. Livraria do Advogado: Porto Alegre. 2018, p. 248).

[5] Bernardo Gonçalves Fernandes (Curso de direito constitucional. 9º ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 298) denomina de “lei ainda constitucional”, ou seja, trata-se da “(…) possibilidade do STF declarar a constitucionalidade de uma lei, mas afirmar que a mesma está em vias de se tornar inconstitucional. Ou seja, a lei é constitucional, mas caminha progressivamente para a inconstitucionalidade. Esse tipo de declaração também é chamado de inconstitucionalidade progressiva. Também podemos chamá-la de apelo ao legislador (conforme perspectiva desenvolvida na Alemanha). É o apelo ao legislador porque o STF estará alertando o legislador, ou os Poderes Públicos como um todo, para que tomem uma outra postura para que a lei não se torne inconstitucional”.

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