Direto do Carf

Dedutibilidade de multas administrativas/regulatórias na apuração do IRPJ e da CSLL

Autor

  • é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

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12 de junho de 2024, 8h00

De longa data a Receita Federal rotula que as multas por infrações não tributárias recebem tratamento de despesas indedutíveis para fins de tributação do imposto de renda (cf. do artigo 6º do Parecer Normativo CST nº 61, de 24/10/1979).

Todavia, nossa atual sociedade de risco, tal resposta pode eventualmente mostrar-se desconectada com a realidade de uma grande gama de questões específicas enfrentadas pelos contribuintes em seu dia a dia empresarial, incorrendo em ilícitos administrativos sancionados por tais multas.

De outro lado, princípios constitucionais e um ideal de justiça, no sentido de desencentivar por todos os meios (inclusive o tributário) atos contrários à lei, aumentam o calor do debate, seja com relação à resposta ao problema em si, seja com relação aos fundamentos para o alcance da resposta.

Na coluna de hoje, apresentaremos a jurisprudência administrativa e judicial justamente sobre a possibilidade de dedução de gastos com multas não tributárias (administrativas ou regulatórias) da base de cálculo do IRPJ e da CSLL .

Trata-se de tema que, dentro do citado contexto de “desconexão”, toca os fundamentos mais basilares da tributação da renda, [1] alcançando inclusive discussões do ponto de vista da interpretação constitucional do sistema jurídico tributário. [2] Assim é que, no presente artigo, ateremo-nos à controvérsia percebida em nossos tribunais, a qual requer constante atenção por parte dos operadores do direito.

Regra geral de dedutibilidade de despesas necessárias

A regra geral sobre dedutibilidade de despesas, para fins de apuração do quantum devido a título de IRPJ e CSLL pelas pessoas jurídicas está estabelecida pelo atual Regulamento do Imposto de Renda — RIR/18, em seu artigo 311), [3] cujo fundamento legal é o artigo 47 da Lei nº 4.506/1964.

Como é consabido por aqueles que trabalham com a tributação da renda das pessoas jurídicas, somente as despesas necessárias, normais e usuais aos negócios empresariais é que serão dedutíveis da base tributável do IRPJ e da CSLL.

O termo “necessárias”, que qualifica as despesas passíveis de dedução, foi explorado pelo Parecer Normativo CST nº 32/1981 no sentido de que são necessárias as despesas essenciais a qualquer transação ou operação exigida pela exploração das atividades, principais ou acessórias, que sejam vinculadas com as fontes produtoras de rendimentos.

Deve-se de pronto ser afastada a tentativa (ou tentação) de interpretar o termo “necessárias” pelo senso comum, trazendo, inexoravelmente, um ponto de vista subjetivo a respeito desse conceito. Afinal, para cada indivíduo, em seu íntimo, haverá uma acepção sobre a necessidade ou não de determinada coisa. [4]

Estamos aqui diante de conceito que não pode ser retirado do contexto jurídico em que se insere, o qual lhe traz contornos objetivos, adjudicando-lhe, assim, conformidade com toda a sistemática de apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e, por consequência, trazendo segurança jurídica a todos os envolvidos na relação jurídico tributária.

Spacca

Os contornos objetivos para ser aferida a necessidade da despesa constam do próprio texto do artigo 47 da Lei n. 4.506/64, quais sejam: i) necessidade para a atividade da empresa e manutenção da fonte produtora; ou ii) necessidade para que se realize transações ou operações exigidas para dar seguimento às próprias atividades da empresa; ou iii) usualidade ou normalidade da despesa no tipo de transações, operações ou atividades empresariais. [5]

A leitura desses critérios legais, como já dito, deve ser feita no contexto estrutural do IRPJ, no qual, como é consabido, é da essência da apuração a dedução de custos e despesas para que se produza o acréscimo patrimonial (cf. artigo 43 do Código Tributário Nacional), atendendo, desse modo, o princípio da universalidade.

Assim, o artigo 47 da Lei n° 4.506/64 conceitua as despesas dedutíveis como aquelas que decorram das atividades empresariais e que sejam normais, usuais e necessárias, cabendo ao Fisco verificar, no caso concreto, a natureza do gasto em questão. Ou seja, o dispositivo não apresenta uma lista fechada das despesas consideradas necessárias para fins de dedução da base de cálculo do IRPJ, mas, ao contrário, apenas apresenta um conceito para classificação de tais despesas por parte do intérprete.

Daí aparece a questão enfrentada no contencioso administrativo e judicial:  as despesas incorridas pelas sociedades empresárias, com o pagamento multas não tributárias (como multas ambientais; multas aplicadas no sistema financeiro; ou por qualquer agência reguladora, por exemplo), decorrentes da materialização de um risco que é inerente à própria atividade empresarial, podem ser consideradas necessárias para fins de dedutibilidade do lucro real e da base de cálculo da CSLL, de acordo com os conceitos trazidos pelo artigo 47 da Lei nº 4.506/64?

Jurisprudência sobre o tema no Carf

O tema ora em apreço ganhou novos debates no âmbito administrativo com a decisão proferida pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) no Acórdão nº 9101-006.652, publicado em 20 de setembro de 2023. Nesse julgamento, a maioria dos membros do Colegiado concluiu pela dedutibilidade de multa não tributária, em sentido oposto à jurisprudência do Carf dominante sobre o tema.

No caso concreto, o contribuinte — empresa do mercado industrial de açúcar, etanol e bioeletricidade — foi autuado pela Receita, para pagamento de montantes a título de IRPJ e CSLL decorrentes de diversas glosas procedidas pela autoridade fiscal. Dentre elas, constava glosa decorrente da dedução considerada indevida de despesas com multas de natureza não tributária, mais especificamente sanção administrativa por infrações de natureza ambiental, cominadas pelo IMA (Instituto Mineiro de Agropecuária).

Após apresentação da Impugnação, esta foi julgada improcedente, mantendo-se integralmente o crédito tributário exigido. O contribuinte, então, apresentou recurso voluntário que foi parcialmente provido (Acórdão nº 1401-002.031) para excluir do lançamento diversas glosas, em especial aquela referente as multas ambientais. Irresignada, então, a Procuradoria da Fazenda Nacional apresentou Recurso Especial, o qual foi admitido pela CSRF apenas para a matéria “dedutibilidade de multas de natureza não tributária”.

Há, de fato, dissenso jurisprudencial acerca do tema, de modo que bem andou a CSRF ao reconhecê-lo, para assim pacificá-lo, nos termos do artigo 118 do Ricarf (Regimento Interno do Carf). E sobre a admissibilidade do recurso especial, merece realce um aspecto: constou do juízo preliminar de conhecimento que não é relevante o órgão regulador que aplicou a multa administrativa (Bacen — Banco Central do Brasil; Aneel — Agência Nacional de Energia Elétrica; IMA — Instituto do Meio Ambiente, etc), uma vez que a questão controvertida diz respeito ao antagonismo entre a multa de natureza tributária x não tributária, para fins da legislação do Imposto de Renda.

Avançando agora com relação ao mérito do caso apreciado pela CSRF no Acórdão n. 9101-006.652: o entendimento firmado em diversos precedentes das turmas ordinárias do Carf funda-se no argumento de que a dedução das multas administrativas das bases de cálculo dos tributos resultaria “benefício” ao contribuinte, já que a empresa repassaria para a Administração Pública, e consequentemente, para a sociedade brasileira, parte dos custos pela sua infração, o que ofenderia o sistema jurídico vigente.

Parece possível afirmar que, na realidade, esse é o grande argumento sustentador do entendimento majoritário do Carf: não se pode dar à prática de ilícitos, sancionados por meio de multas administrativas, interpretação que caiba no contexto da “necessidade” das funções empresarias, sob pena de legitimar ou, em última instância, promover a prática de danos ambientais ou regulatórios.

Nesse sentido, citamos os Acórdãos nº 1803-001.784, de 2013 9101­003.876 e 9101-002.196, de 2018 e 1201-003.588, de 2020. Inclusive, o mesmo entendimento desfavorável aos contribuintes foi aplicado no recentíssimo Acórdão nº 1402-006.778, concluindo que as multas regulatórias (no caso concreto, relacionadas ao cumprimento do TTAC (Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta), com o fim de reparar e indenizar os impactos nos âmbitos socioambiental e socioeconômicos, decorrentes do rompimento da barragem do Fundão) não se enquadram no conceito de despesa operacional dedutível para fins de IRPJ e CSLL.

Pois bem. No citado Acórdão 9101-006.652 proferido pela 1ª Turma da CSRF, o relator do caso, Conselheiro Luiz Tadeu Matosinho Machado, votou pela impossibilidade da dedução das multas não tributárias, na toada da jurisprudência dominante sobre o tema no Carf. O conselheiro relator, seguindo a linha do artigo 6º do Parecer Normativo CST nº 61, de 24/10/1979, destacou que admitir a dedução de multas cuja origem é a sanção por ilícitos administrativos significaria reduzir o pagamento do IRPJ/CSLL, sendo o equivalente que dividir os custos da infração com a sociedade, o que não pode ocorrer, uma vez que a pena não pode passar da pessoa do infrator.

Além disso, o conselheiro relator rechaçou o argumento de que a multa deduzida possui natureza compensatória, o que autorizaria sua dedutibilidade, conforme disposição do § 5º do artigo 41, Lei nº 8.981/95 e do artigo 344, § 5º do RIR/99. Ainda, para o relator, a possibilidade deste tipo de compensação ser dedutível da base de cálculo dos tributos sobre a renda, em se tratando de multas ambientais, somente existiria nos casos em que as empresas realmente firmam acordos compensação de danos ambientais causados.

No entanto, foi aberta divergência e a maioria dos membros do Colegiado entendeu pela dedutibilidade da multa não tributária. O voto vencedor, da lavra do Conselheiro Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, sustentara que, na prática empresarial, é inerente lidar com o imprevisto, inclusive no contexto dos deveres legais.

Dessa forma, para conduzir atividades econômicas, é essencial enfrentar um amplo campo de incertezas e aceitar suas ramificações. Inclusive, foi asseverado pelo Conselheiro que em muitos setores econômicos, é praticamente impossível conduzir um empreendimento sem enfrentar multas impostas por órgãos da Administração Pública.

Assim é que o risco é uma parte inescapável dos negócios, e suas consequências, inclusive as de natureza monetária punitiva, devem ser assumidas pela empresa. Além disso, constou do voto vencedor do Acórdão 9101-006.652, que das multas aplicadas pela Administração Pública relacionadas à atividade empresarial, apenas aquelas decorrentes do não cumprimento das obrigações tributárias principais não são dedutíveis devido a uma disposição legal expressa (§ 5º, artigo 41, Lei nº 8.981/95). A contrario sensu, as multas não tributárias, devem ser consideradas dedutíveis, uma vez que cumpram os demais requisitos estabelecidos pela legislação.

Além disso, o voto vencedor discorre sobre o princípio da pecunia non olet, que fundamenta a tributação dos lucros de atividades ilícitas. [6] Recorda-se que esse conhecido princípio da tributação tem uma abordagem de neutralidade e, portanto, se aplica não apenas aos elementos positivos, mas também aos negativos que compõem o conceito de renda, garantindo que as características do evento não sejam distorcidas, e, por conseguinte, que seja mantida a integridade da tributação sobre a dimensão econômica que se visa tributar: a renda (e não o mero ato de consumo).

Jurisprudência sobre o tema no âmbito judicial

No âmbito judicial, a posição também é majoritariamente pela impossibilidade de dedução dos valores pagos a título de multa não tributária/administrativa, tendo em vista que, segundo o entendimento dos Tribunais Regionais Federais, tais valores não podem ser considerados gastos necessários ao desenvolvimento da atividade social da empresa. [7]

Conclusões possíveis e impossíveis

Conforme foi possível depreender das recentes decisões proferidas pelo Carf a respeito da dedutibilidade de despesas com multas não tributárias para fins de apuração do IRPJ e da CSLL, há uma nova vertente interpretativa ganhando corpo a respeito do tema.

Esse caminho, que se encontrava somente em decisões solitárias nas turmas ordinárias do Carf, foi agora realçado pelo Acórdão 9101-006.652.

Esse julgado parece bem perceber uma infeliz realidade: vivemos em um Estado intervencionista que, para o bem e para o mal, amplamente regula as atividades empresariais (cf. artigo 174 da Constituição),[8] de modo que a usualidade e a normalidade de despesas necessárias com o pagamento de multas administrativas/regulatória em determinadas atividades empresariais é risco próprio e constante do negócio. Pense-se, por exemplo, nas multas de trânsito para um transportador; nas multas aduaneiras para um importador; ou das multas ambientais para concessionárias.

Para além do que foi dito no referido precedente, dois outros pontos, tão primários quanto fundamentais, devem ser relembrados: i) a dedução de despesas diz com a própria sistemática de apuração do IRPJ e da CSLL, que só pode incidir sobre a renda líquida. Não se trata, portanto, de benefício fiscal, de modo que falar em “incentivo” ou “desincentivos” a condutas ilícitas dentro do tema ora abordado parece um tanto quanto perigoso; e ii) não se pode utilizar o tributo como sanção por ato ilícito (artigo 3º do CTN), seja por meio da sua incidência, seja por meio da interpretação dos seus elementos de apuração, no caso, as despesas necessárias para o IRPJ e para a CSLL.

E mais: uma vez que se trata aqui de questão sobre a interpretação da necessidade de determinada despesa para a sociedade empresarial, parece ser válido questionar se seria mesmo o caso de tratar no “mesmo balaio” todas as espécies de multas administrativas, arcadas por todas as diferentes espécies de atuação no setor econômico em que podem incorrer as empresas brasileiras, ainda mais frente a tantos diferentes arranjos e circunstâncias factuais que podem permear o julgamento da matéria, não em 1979, mas em 2024.

__________________

[1] Vide SCHOUERI, L. E.; GALDINO, G. Dedutibilidade de despesas com atividades ilícitas.

In: ADAMY; Pedro Augustin; FERREIRA NETO, Arthur M.. (Org.). Tributação do Ilícito. 1ed. São Paulo: Malheiros, 2018, v. 1, p. 148-212.

[2] KRALJEVIC, Maria Carolina Maldonado. Dedutibilidade de despesas com atos ilícitos: uma análise a partor dos limites e parâmetros constitucionais. In Caderno de Pesquisas Tributárias n. 47  – Dedutibilidade de despesas no regime do lucro real. MARINS, Ives Gandra e PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coords). São Paulo: MP Editora. pp. 427 a 446.

[3] A mesma disposição constada no RIR/99 em seu art. 299.

[4] OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda – Volume II. São Paulo: IBDT, 2020, p. 863.

[5] OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do Imposto de Renda – Volume II. São Paulo: IBDT, 2020, p. 863.

[6] Esse ponto foi, inclusive, objeto de trabalho acadêmico publicado em 2022 pelo Conselheiro: ELIAS, Laura Charallo Grisolia ; MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. A DEDUTIBILIDADE DAS MULTAS NA TRIBUTAÇÃO DA RENDA. In: XI ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI CHILE – SANTIAGO, 2022, Santiago – Chile. DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANCEIRO. Florianópolis: Conpedi,

  1. p. 68-88.

[7] cf. TRF1 (1004000-23.2017.4.01.3700), TRF2 (0013160-30.2017.4.02.5101), TRF3 (0025363-51.2010.4.03.6100) e TRF4 (5002821-50.2018.4.04.7003, 5011436-76.2016.4.04.7107 e 5012390-25.2016.4.04.7107).

[8] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com período na Sciences Po/Paris, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

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