Opinião

Tutela da probidade administrativa entre vazios, vieses e voluntarismos (parte 2)

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

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11 de junho de 2024, 7h03

Dando continuidade à análise das alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021 verticalmente sobre a Lei de Improbidade Administrativa, iniciadas no texto anterior, passamos agora a investigar a preferência expressamente consignada pelo legislador no texto de lei para a realização da tutela à probidade.

São os vieses.

A legislação superveniente traz consigo opção por modelo jurídico exclusivo para aplicação da LIA. Não protegendo a integralidade dos valores fundamentais relativos à administração pública para atendimento da coletividade (como visto, no caso da moralidade administrativa e direito fundamental à boa administração pública), impõe, de outro lado, obstáculos para a sindicabilidade dos atos de agentes públicos (políticos, gestores, servidores etc.). A alteração introduzida está assim transcrita:

“Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.

Modelo jurídico exclusivo

De início é de registar que causa perplexidade a adoção de modelo restritivo para adjudicação legal, como se o Direito Administrativo, mesmo em casos específicos de sanção, não “dialogasse” ou não estivesse “coordenado” com outros padrões jurídicos numa sociedade que se diz pluralista, cooperativa e aberta.

A utilização do “direito administrativo sancionador“, que evidentemente guarda todos os méritos, não poderia suprimir, em contrapartida, o “direito administrativo constitucional“, porque as necessárias persecuções quanto ao trato da “coisa pública” e “preservação do interesse público” se ligam às questões administrativas e aos preceitos constitucionalmente estabelecidos [1].

Reprodução

Não cabe à LIA estar resumida nesse “monopólio” de “modelo jurídico“, mesmo porque ela configura “microssistema transversal administrativo” que correlaciona com diversos segmentos: 1 – esfera internacional (Convenção de Mérida, por exemplo); 2 – economia (já que atua sobre contratos); 3 – política, cidadania e democracia; 4 – sociedade; 5 – ciência e tecnologia etc. Diga-se: transversal, já que reflete efeitos e deveres para além do sistema jurídico; microssistema, pois em coordenação com demais ramos do direito.

Não fosse isso, a Lei de Improbidade não desfruta apenas de natureza jurídica de Direito Administrativo, já que traz consigo dispositivos de projeção civil (reparação de danos), sanção constitucional (suspensão de direitos políticos), sanção difusa (multa civil = dano moral coletivo); sanção tributária (proibição de receber benefícios ou incentivos fiscais) e sanção administrativa (perda da função). Insista-se, microssistema transversal que deve buscar harmonia entre as (1) garantias individuais dos agentes públicos em eventual persecução e (2) os direitos da coletividade.

Nos parece que a “adesão inquestionável ao direito administrativo sancionador”, como modelo exclusivo para aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, fere valores fundamentais estabelecidos na Constituição, dificultando a averiguação de fatos passíveis de sanções, definhando a carga de tutela da extrapatrimonialidade e patrimonialidade do acervo público. Nessas circunstâncias, há afronta ao princípio da proporcionalidade, com nítida perspectiva de retrocesso.

A conduta proba, enquanto eixo axiomático na cúspide do sistema, é tão presente que constitui causa de inelegibilidade, com suspensão de direitos políticos, cujo assento está incluso na estrutura dos direitos fundamentais (CF, artigo 15, inciso V). De outra leva, é tema de relevância a justificar a admissão de recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça, conforme a Emenda 125/22. Tudo isso, trespassa os direitos dos agentes públicos, porque igualmente é de interesse dos direitos dos administrados (dentre eles, os eleitores).

Interesses públicos à deriva

Diga-se que na relação jurídica administrativa deveria radicar a igualdade entre os sujeitos: a administração e gestores (de um lado) e os administrados (de outro lado) [2].  A LIA tem dentre suas funções servir como garantia para que essa igualdade seja sempre respeitada, caso contrário o arbítrio, a violência e o descaso voltam como políticas de exclusão social e antidemocráticas. Eis o papel pedagógico da lei.

Na medida em que a legislação “opta” por determinado “modelo jurídico”, ela está “discriminando” as demais possibilidades, inclusive de interpretação por parte dos operadores. Submete, via de consequência, a análise tão somente aos direitos de defesa dos gestores, considerando os “princípios do direito administrativo sancionador“, atrelados às mesmas características do Direito Penal, ficando à deriva os interesses públicos fundamentais, aos quais a administração pública está vinculada.

Como se sabe, o “direito administrativo sancionador” é informado pelos princípios da legalidade estrita; tipicidade; irretroatividade e retroatividade da disposição mais benigna; proporcionalidade; ampla defesa e contraditório; presunção de inocência e necessidade. Portanto, é exigente de filtros “fechados” tão somente voltados para a punibilidade do gestor e demais agentes públicos.

Ao lado disso (à adoção desse modelo exclusivo pela Lei 14.230/21), somaram-se outras diretrizes tanto quanto absenteístas, tais como: não exigência de sindicabilidade dos agentes públicos pela violação dos princípios constitucionais da administração (revogação do artigo 4º); exclusão da exigência de moralidade administrativa e atendimento ao direito fundamental à boa administração (CF, artigo 3º e art. 37); retirada da modalidade culposa de lesão ao erário (revogação do artigo 5º da LIA); imputação tão somente pelo dolo (LIA, artigo 1º, §§§ 1º, 2º e 3º); introdução de “tipos fechados” para violação de princípios que dogmaticamente têm natureza aberta (LIA, artigo 11).

Ondas de recepção

A acolhida do “direito administrativo sancionador” tomou maior fôlego pelas “ondas de recepção” do direito estrangeiro. Com destaque à Espanha, pela Ley 40/2015, que insere o “Regime Jurídico do Setor Público”. Entretanto, mesmo lá, berço de muitos juristas nacionais que naquele país buscaram capacitação, a legislação não despreza nem a “negligência grave” ou a “culpa” [3].

O mesmo ocorre na Alemanha a partir da Lei de Infrações Administrativas (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten – OWiG) ou na França com o Code de Justice Administrative. Portanto, nossa Lei de Improbidade como ficou, sem a modalidade culposa, redunda nada mais que um ‘direito administrativo sancionador à brasileira’ ou em um ‘direito administrativo mínimo’.

Spacca

Já o ‘direito administrativo constitucional’, com nascedouro pelo poder constituinte originário em 1988, modulado pelas diretrizes da ‘unidade sistêmica’, ‘hierarquia’ e ‘complementaridade’ e tendo como características a fundamentação constitucional, a promoção dos direitos fundamentais e a organização administrativa, cuida de princípios normativos ínsitos e constitucionalmente declarados, a saber: bloco da legalidade e constitucionalidade; impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Para continuar com apoio na dogmática espanhola – por razões científicas – vale a reflexão de que…

“En fin, junto a la metodología que nos proporciona el acercamiento a las ciencias sociales desde los postulados del pensamiento abierto, plural, dinámico y complementario, es menester trabajar en el marco constitucional para extraer toda la fuerza, que no es poca, que la norma fundamental encierra en orden a configurar un Derecho Administrativo más democrático en el que el servicio objetivo al interés general ayude a redefinir todas aquellos privilegios y prerrogativas que no se compadecen con la existencia de una auténtica Administración pública cada vez más conscientes de su posición institucional en el sistema democrático” [4].

Vícios constitucionais

Desprezado o modelo constitucional, a adoção do modelo sancionador, via de consequência, tem rotulagem certa, apesar do silêncio no texto legislativo inovador: a arguição de retroatividade dos fatos anteriores justamente tomando como semelhança as diretrizes penais e ao arrepio do artigo 5º, inciso XL da CF, que garante a retroatividade apenas para as leis penais [5].

Do exposto, não apenas o patrimônio público encontra-se sem a necessária tutela adequada, mas valores fundamentais próprios da relação entre administração pública e coletividade, o que enseja a clara verificação de dois vícios constitucionais na superveniente lei incidental: a proteção deficiente e a vedação ao retrocesso.

A “proteção deficiente” (Untermassverbot) é verificada em diversas passagens da Lei 14.230/21, aqui já citadas, porquanto diminui o âmbito de proteção dos direitos fundamentais inerentes à toda coletividade, sucumbindo princípios do direito administrativo constitucional de forma a não sancionar o agente público que atue contra expressos preceitos ungidos do Estado Democrático de Direito de maneira adequada [6].

Como sancionar o gestor público que, por negligência, deixa os fármacos adquiridos vencerem em estoque sem distribuição para a coletividade que padece de endemia justamente controlada pelos medicamentos não utilizados? [7] Como responsabilizar o agente público que, com equipe de técnicos e cientistas, devendo saber dos riscos climáticos, deixa a população à deriva sem proteção contra danos que atingem, inclusive, os equipamentos públicos? Como imputar os efeitos da deslealdade ao gestor que utiliza os meios digitais para difundir narrativas não cobertas pela realidade?

Essas perplexidades, dentre outras, tão comuns e ordinárias no dia a dia, estão longe do sistema de responsabilização pela LIA.

Evidente regressividade

Em outro prumo doutrinário, além de estarem a descoberto os mencionados direitos fundamentais da coletividade, se vivencia em carne e osso o desprezo ao “efeito cliquet“. Isso equivale dizer que enquanto deveríamos avançar em matérias de “direitos humanos“, melhorando a qualidade da atuação dos gestores e agentes públicos para a coletividade (sem prejuízo da tipicidade das condutas e a ampla defesa e contraditório), reforçando a gestão responsável e ética das coisas públicas, estamos nessa escala em franca regressividade.

A proibição do retrocesso não está descrita textualmente na Constituição, mas ela pode ser colhida a partir da ‘interpretação constitucionalmente orientada” ou ainda sob os lampejos do “constitucionalismo das necessidades[8], cuidando-se exatamente acolhimento de novos direitos, novas vulnerabilidades, centralidade da pessoa, biopolítica, todos a ensejar um dever-fazer dos gestores, administradores e controladores.

Sob a base de diversos comandos constitucionais, como o do Estado Democrático de Direito (CF, artigo 1º, caput), da dignidade humana (CF, artigo 1º, III), da máxima efetividade dos direitos fundamentais (CF, art.igo 5º, § 1º), da segurança jurídica (CF, artigo 5º, caput, e artigo 5º, XXXVI) e da cláusula pétrea prevista no artigo 60, § 4º, IV da Constituição é claramente possível o manejo da vedação ao retrocesso.

A lei como posta apagou a cláusula geral de princípios administrativos (artigo 4º) que ratificava o texto constitucional (CF, artigo 37, caput). Tais princípios, direitos e deveres são de natureza fundamental na Constituição. Nem mesmo o “núcleo essencial” de referidos preceitos foram preservados. O legislador, pois, nada conservou. Alterou em clara regressividade [9].

Cabe investigar se a adoção de modelo exclusivo para aplicação da LIA é causa de inconstitucionalidade com possibilidade de revisão pelo controle difuso ou concentrado. Contudo, direito não se interpreta e “nem se aplica por tiras“, ainda mais quando levado a efeito a prudente investigação do caso concreto.

 


[1] García de Enterria, E.; Fernández, T.-R. Curso de Derecho Administrativo. T. 1, 12ª ed., Thomson-Civitas, Madrid, 2004, p. 113. Na advertência: “hoy la Constitución domina la totalidad de la vida jurídica de la sociedad con un influjo efectivo y creciente”.

[2] PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.

[3] La Administración instruirá igual procedimiento a las autoridades y demás personal a su servicio por los daños y perjuicios causados en sus bienes o derechos cuando hubiera concurrido dolo, o culpa o negligencia graves.

[4] MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana. El marco constitucional del derecho administrativo (el derecho administrativo constitucional), in AFDUC 15, 2011, ISSN: 1138-039X, pp. 85-100.

[5] O Tema 1199, derivado da afetação do ARE 843.989/PR pela Excelsa Corte Suprema, não permitiu essa consequência, senão para a modalidade culposa sem trânsito em julgado. Eis a tese nº 3: A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

[6] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 273. Explica: “Há, porém, um outro lado da protecção que, em vez de salientar o excesso, revela a proibição por defeito (Untermassverbot). Existe um defeito de protecção quando as entidades sobre quem recai o dever de protecção (Schutzpflicht) adotam medidas insuficientes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada aos direitos fundamentais”.

[7] Art. 10, § 2º A mera perda patrimonial decorrente da atividade econômica não acarretará improbidade administrativa, salvo se comprovado ato doloso praticado com essa finalidade.

[8] Rodotà, Stefano. Il diritto di avere diritti. Roma/Bari: Laterza, 2012.

[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 453-454. Com apoio em Canotilho: “o núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado pelo legislador encontra-se constitucionalmente garantido contra medidas estatais que, na prática, resultem na anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial, de tal sorte que a liberdade de conformação do legislador e a inerente auto-reversibilidade encontram limitação no núcleo essencial já realizado.”

Autores

  • é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, presidente do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

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