Contas à Vista

Reduzir ou adiar despesas obrigatórias amplia risco da sua judicialização

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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11 de junho de 2024, 8h00

O Anexo de Riscos Fiscais é um dos eixos normativos mais estratégicos das finanças públicas brasileiras. Muito embora seja menos conhecido, sua importância é equivalente à do Anexo de Metas Fiscais. Ambos acompanham a lei de diretrizes orçamentárias, na forma dos §§2º e 3º do artigo 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Enquanto as metas fiscais projetam o futuro desejado, os riscos correspondem às hipóteses que podem lhes comprometer o alcance. Riscos fiscais importam porque trazem consigo a avaliação de cenários futuros capazes de afetar a trajetória das contas públicas, seja pelo prisma da frustração de receitas, seja pelo surgimento eventual de despesas incontornáveis, também denominadas passivos contingentes.

Eis a razão pela qual, ao longo do tempo, é ingênuo fixar metas sem monitorar os riscos capazes de minar sua consecução. Mas não basta arrolar riscos, já que é preciso também antever providências que deveriam ser tomadas caso eles se concretizem.

Casa sobre areia

É falha, portanto, a estratégia de ajuste fiscal que se ocupa apenas de equalizar receitas e despesas públicas no curto prazo, maximizando o elenco de riscos nos médio e longo prazos. Sua consistência equivale a uma casa construída sobre terreno arenoso ou pantanoso. Sendo a base movediça, toda a construção mais cedo ou mais tarde tende a desmoronar.

Algo semelhante se sucede com a pretensão de reduzir ou adiar o custeio de direitos fundamentais amparados por despesas obrigatórias, a pretexto de ajuste fiscal, porque a tendência é que a exigibilidade de tais direitos seja disputada judicialmente. A expansão dos precatórios ao longo das últimas décadas é uma expressão incontroversa desse trade-off. A estimativa para 2025 é de que o volume de precatórios no âmbito do Orçamento Geral da União alcance a casa de R$ 100 bilhões.

Vale lembrar, a esse respeito, a demanda revelada pelo artigo 6º da Emenda Constitucional nº 114/2021, de que houvesse o “exame analítico dos atos, dos fatos e das políticas públicas com maior potencial gerador de precatórios e de sentenças judiciais contrárias à Fazenda Pública da União”. Ali foi reconhecida clara e enfaticamente a necessidade tanto de “identificar medidas legislativas a serem adotadas com vistas a trazer maior segurança jurídica no âmbito federal”, quanto de analisar “os mecanismos de aferição de risco fiscal e de prognóstico de efetivo pagamento de valores decorrentes de decisão judicial, segregando esses pagamentos por tipo de risco e priorizando os temas que possuam maior impacto financeiro”.

Divergência

O tema subsiste como relevante e oportuno, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha acatado, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7.047 e 7.064, a tese dos respectivos autores de que o citado artigo 6º da EC 114/2021 violaria o princípio da separação de Poderes, “na medida em que autoriza[ria] o Legislativo a invadir função constitucional típica do Poder Judiciário, eis que lhe compete a palavra final no que tange à expedição o precatório”.

Spacca

É interessante, a esse respeito, a divergência entre os votos do ministro Alexandre de Moraes e do ministro Gilmar Mendes. Para o primeiro,

“O funcionamento de um órgão legislativo com tal competência resultaria em interferência na governança dos demais Poderes sobre o núcleo de suas funções, como gerir e monitorar riscos fiscais (Executivo) e apreciar lesões a direitos individuais, constituindo título executivo a quem de direito (Judiciário). Assim, sem prejuízo das competências normais do Poder Legislativo, tenho que essa inovação destoa do equilíbrio estabelecido pelo texto constitucional entre os Poderes de Estado (art. 2º, CF).”

Gilmar Mendes, por sua vez, fez questão de registrar suas “reservas quanto à suposta inconstitucionalidade da Comissão Mista do art. 6º da EC 114/2021 […] [porque] não considero este julgamento como precedente que impeça a criação de uma comissão externa de análise quanto à classificação dos precatórios para fins orçamentário-fiscais (riscos fiscais).

Sintoma de algo mais profundo

Ainda que o debate dos riscos fiscais relacionados aos precatórios tenha sido adiado pelo modo como a matéria foi decidida no âmbito das ADIs 7.047 e 7.064, é preciso reconhecer que direitos não deixam de ser exigíveis judicialmente por força da restrição orçamentário-financeira ao seu custeio intertemporal.

Urge, pois, ampliar a reflexão acerca da capacidade federativo-institucional de gerenciamento de serviços públicos universais. A judicialização é sintoma decorrente de mal-estar maior, qual seja, uma paulatina desconstrução fiscal de bens e serviços que deveriam garantir estruturalmente a própria razão de ser da atuação estatal ao longo do tempo. Isso ocorre na medida em que o país não tem debatido, com clareza, a existência de um tamanho indisponível do Estado brasileiro do ponto de vista do arcabouço normativo que rege suas finanças públicas.

Engana-se quem defende ser possível reduzir a carga tributária de forma aparentemente ilimitada e quase completamente dissociada dos compromissos incomprimíveis de gasto atribuídos ao Estado pela Constituição de 1988.

Caso não haja aprimoramento da qualidade da execução orçamentária para torná-la mais aderente ao planejamento setorial das políticas públicas, inibir as receitas tributárias necessariamente implicará escolher entre reduzir quantitativamente o raio da ação estatal, ou majorar o endividamento público. Em qualquer dessas hipóteses, haverá uma frustração do regime constitucional das finanças públicas brasileiras.

O tamanho necessário do Estado

Eis o contexto em que é preciso pautar a estreita conexão instrumental entre as receitas estatais e o rol de despesas não suscetíveis de limitação de empenho ou pagamento, na forma do artigo 9º, §2º da LRF. Tais despesas devem ser mantidas, ainda que a estimativa de arrecadação se revele frustrada ao longo do exercício financeiro e ainda que haja risco de afetação das metas fiscais. O tamanho do Estado em nosso país não pode ser reduzido em patamar aquém desse elenco que agrega as despesas que correspondem às suas inadiáveis e incomprimíveis obrigações constitucionais e legais.

Para assegurar a consecução das despesas não contingenciáveis durante a execução orçamentária, é admissível até mesmo que haja a expansão motivada das operações de crédito, mediante a pertinente autorização legal qualificada da quebra da regra de ouro, se necessário.

Abdicar receitas tributárias, portanto, não é escolha discricionária que estaria limitada tão somente pelo horizonte formal da sustentabilidade da dívida pública dado pela meta de resultado primário. Há correlatamente o limite substantivo do dever de custeio suficiente das despesas não suscetíveis de contingenciamento. Tais despesas são incomprimíveis, porque expressam o tamanho necessário do Estado para cumprir, cabe reiterarmos, suas obrigações constitucionais e legais qualitativamente destinadas à garantia dos direitos fundamentais.

A lei de diretrizes orçamentárias identifica metas e riscos fiscais que apontarão para o horizonte intertemporal de sustentabilidade da dívida pública, tanto quanto arrola as despesas incomprimíveis que perfazem o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro.

Tal diagnóstico é essencial para pautarmos em patamar mais equitativo a reflexão sobre os rumos das nossas finanças públicas. Falta-nos, porém, avançar em relação ao risco majorado de judicialização caso sejam reduzidas as despesas obrigatórias que amparam o custeio de direitos fundamentais, ao ponto de que seja erodida a capacidade estatal de consecução dos serviços públicos essenciais.

Ajustes fiscais são construídos sob terreno movediço quando frustram e/ou adiam indefinidamente a efetividade dos direitos fundamentais. A expansão das demandas judiciais em busca da promessa constitucional de máxima eficácia desses direitos é sintoma cada vez mais destacado desse profundo mal-estar fiscal.

Questão de tempo

Durante as emendas constitucionais que parcelaram o pagamento de precatórios no nível federal (ECs 113 e 114/2021) para abrir falseado espaço no teto de despesas primárias às vésperas do calendário eleitoral, a promessa de um levantamento detido das demandas judiciais e dos riscos fiscais a elas associados foi uma forma de suavizar o próprio absurdo de a União deixar de pagar em dia as dívidas impostas, em caráter definitivo, pelo Poder Judiciário.

Se adiar é uma forma de ajustar, obviamente negar execução constitucionalmente adequada aos direitos fundamentais, frustrando a consecução ordinária das correspondentes políticas públicas, é uma escolha pelo risco fiscal de vê-las mais adiante judicializadas e, ato contínuo, convertidas em precatórios.

Eis o real endividamento que o país tem assumido em relação ao déficit de eficácia dos direitos fundamentais, algo que o Judiciário, sozinho, jamais será capaz de equalizar e oferecer respostas. A litigância fiscal aumentará e tenderá a expor abruptamente o quanto são acumulados riscos fiscais na forma de passivos judicializados: ironicamente, a questão em aberto é apenas quando isso ocorrerá.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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