Opinião

Portaria MEC 528/2024: investida contra educação a distância

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11 de junho de 2024, 6h35

O Ministério da Educação (MEC) baixou no último dia 6 portaria que fixa prazo para criação de novos referenciais de qualidade e marco regulatório para oferta de cursos de graduação na modalidade a distância, bem como procedimentos, em caráter transitório, para processos regulatórios de instituições de ensino superior e cursos de graduação na modalidade a distância.

Marcos Oliveira/Agência Senado

É o que lemos na ementa da portaria. O estudo da legística (investigação sobre a qualidade das normas) nos ensina que ementas muitas vezes não condensam exatamente o conteúdo das disposições normativas. Muitas vezes, essas falam muito mais do que aquelas. É o que se tem nessa portaria, que parece anunciar um réquiem para o ensino a distância.

A EaD é criticada por muitos, e é elogiada por tantos outros. É necessário um meio termo, que também atenda à realidade tecnológica que nos cerca.

Ao que consta, a portaria alcança todos os cursos de EaD. Há uma disposição de modulação, no sentido de que processos em trâmite no sistema e-MEC, com avaliação in loco do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), seguiriam o trâmite da legislação anterior. É preciso separar o joio do trigo.

Suspensões e ilegalidades

A portaria dispõe sobre a suspensão de novos cursos e sobre aumento de vagas. Fixou-se que estão suspensos até 10 de março de 2025 a criação de novos cursos de EaD, o aumento de vagas e a criação de polos de ensino, para todas as instituições do Sistema Federal de Ensino, incluindo universidades e centros universitários. Como fica a autonomia universitária? Além disso, a suspensão não se aplica aos cursos de instituições públicas vinculados a políticas e programas governamentais.

Também estão sobrestados os cursos de Direito, Medicina, Odontologia, Psicologia e Enfermagem, inclusive em universidades e centros universitários (que são os cursos mencionados no artigo 41 do Decreto nº 9.235/2017).

A portaria suscita inconstitucionalidades e ilegalidades que anunciam batalha judicial vindoura. A portaria tem efeitos econômicos; é esse seu ponto central. No entanto, há uma necessidade de tradução de temas econômicos para a linguagem jurídica, a linguagem que o Judiciário adota para racionalizar suas decisões. Nesse sentido, há pontos que devem ser enfatizados, e que serão debatidos certamente em juízo, como se pretende adiantar nessa intervenção.

Spacca

Há sérios indícios de violação ao princípio da segurança jurídica. A portaria afeta diretamente investimentos, expectativas, planejamento, qualificando fragilidade regulatória e baixíssima sensibilidade para com o setor, que atende a demandas de direitos fundamentais, centrados na educação.

Parece também que a portaria viola o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. Isto é, afeta situações jurídicas já consolidadas com base em enquadramento jurídico perfeito e indiscutível.

Tem-se também a impressão de que a portaria viola o princípio da legalidade. A portaria fixa restrições que dependem de lei, e não de ato normativo de regulamentação. Qualquer mudança significativa na regulamentação da educação a distância depende de legislação em sentido estrito, respeitando princípios constitucionais e garantindo a participação democrática no processo decisório.

A portaria parece ter afrontado a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), especialmente no que se refere ao artigo 80 (o poder público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino à distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada). Quem acompanhamos medidas regulatórias em educação percebemos suposta violação do princípio da igualdade.

Discriminação

No entanto, a suspensão de novos cursos e aumento de vagas não se aplica aos cursos de instituições públicas vinculados a políticas e programas de governo, o que resulta em discriminação com instituições (mesmo públicas) não ligadas diretamente a ações governamentais. Do ponto de vista das entidades privadas, mais uma vez, há favorecimento de instituições públicas de educação, que são subsidiadas por recursos oriundos de tributos recolhidos por instituições privadas. Não se tem dúvida de que é o tributo recolhido da instituição privada de educação que fomenta a instituição pública.

De um modo mais amplo, pode-se também cogitar de limitação ao direito à educação (artigo 205 da Constituição). A portaria parece ameaçar a democratização e a interiorização do ensino resultantes da educação à distância.

Como dito acima, há preocupações para com a autonomia universitária (artigo 207 da Constituição). A portaria parece suscitar interferência indevida do executivo na autonomia universitária com restrições que afetam gestão, planejamento, expansão e organização de cursos e programas.

Percebe-se também uma inquietante ameaça ao princípio da eficiência (artigo 37 da Constituição). A portaria fixa moratórias e sobrestamentos que atrasam processos regulatórios em setor central da necessária inclusão educacional, fulminando o princípio da eficiência, que a Constituição adotou, por intermédio da Emenda Bresser.

Competências extrapoladas, incertezas multiplicadas

Do ponto de vista estritamente regulatório percebe-se alguma extrapolação de competências do Executivo. A portaria parece ameaçar a separação dos poderes (artigo 2º da Constituição), avançando em matéria de competência do Legislativo. Trata-se de matéria comum entre os legislativos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Há regras novas, e não meramente de regulação, o que exige lei em sentido estrito.

Há também problemas de debilidade de qualidade regulatória. Vislumbra-se sobrecarga administrativa (para o MEC) e aumento dos custos de aquiescência (para as instituições de ensino). Há também indícios de externalidade negativa na expansão do modelo de EaD, especialmente em relação a regiões onde a educação presencial é menos acessível.

Fomenta-se a insegurança e multiplicam-se incertezas, tanto para as instituições de ensino quanto para os alunos. A dependência para com a revisão de referenciais de qualidade afeta diretamente o planejamento institucional, com resultados também diretos nas opções dos interessados em educação à distância.

As diretrizes gerais são indefinidas e pouco claras. Há dependência para com políticas e programas governamentais, que seriam utilizadas para a qualificação dos quadros de exceção. Teme-se atraso em processos de inovação, que exigem respostas tecnológicas imediatas.

Alguns pontos ainda demandam esclarecimento: a extensão da validade de editais que antecedem a portaria; os editais anteriores, para perda de validade, exigiriam revogação formal. Não há na portaria disposição clara sobre a retroatividade. De igual modo, parece nebulosa a questão do regime de transferências de alunos e não há clareza sobre a ocupação de vagas remanescentes.

Conclusão

Tem-se a impressão de que a portaria do MEC, ao fixar novas diretrizes e suspensões para a educação a distância, suscita questões constitucionais, legais e econômicas que não podem ser ignoradas. Ao impor moratórias e restrições significativas, a portaria desafia princípios fundamentais como a autonomia universitária e a segurança jurídica, e ainda pode estar extrapolando as competências do Executivo.

A complexidade da EaD, em um ambiente no qual há vários desafios tecnológicos, exige abordagem equilibrada que respeite o marco regulatório vigente, promova a inovação tecnológica e assegure a igualdade de oportunidades educacionais.

Assim, a batalha judicial que se anuncia definirá limites da intervenção estatal na educação superior e problematizará mudanças regulatórias futuras, que se espera que sejam implementadas de forma transparente e democrática, respeitando-se tanto a lei quanto as necessidades educacionais do país, tendo-se os direitos fundamentais como pano de fundo.

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