Opinião

O que esperar do projeto de lei sobre arbitragem tributária e aduaneira

Autor

  • Carlos Henrique Machado

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor de Direito Tributário na Faculdade Cesusc sócio e coordenador do Núcleo de Educação Corporativa no escritório Marchiori Sachet Barro e Dias Advogados.

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11 de junho de 2024, 13h20

A comissão temporária para exame de projetos de reforma dos processos administrativo e tributário nacional aprovou, no dia 5 de junho, o Parecer (SF) nº 1, de 2024, sob a relatoria do senador Efraim Filho, examinando o Projeto de Lei n° 2.486, de 2022, que dispõe sobre a arbitragem em matéria tributária e aduaneira.

Rafa Neddemeyer/Agência Brasil

A arbitragem em matéria tributária tem sido objeto de importantes estudos e reivindicações há algum tempo no Brasil [1], frequentemente com inspiração no modelo jurídico de Portugal, instituído pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária) [2]. Contudo, enquanto o modelo lusitano adota uma sistemática de arbitragem com pretensões mais restritivas (declaração de ilegalidade) [3], entre nós a iniciativa caminha numa perspectiva muito mais abrangente (prevenção e resolução do contencioso administrativo e judicial) [4].

Questões perturbadoras

Possivelmente com receio de enfrentar críticas e posicionamentos refratários ao modelo arbitral tributário, a proposição legislativa acaba patinando em algumas obviedades, a exemplo de impossibilitar que a arbitragem tenha como objeto os créditos sobre cuja certeza, liquidez e exigibilidade já tenha havido decisão judicial com resolução de mérito transitada em julgado [5].

Mantendo aqui uma análise limitada somente às disposições preliminares do PL 2.486/2022, as questões perturbadoras vão muito além. O texto aprovado estabelece que fica vedada a arbitragem tributária e aduaneira em relação a créditos para os quais haja ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo sujeito passivo.

Tal disposição é sensível e já nasce disputável, uma vez que existe importante jurisprudência no sentido de reconhecer que a confissão da dívida não inibe o questionamento judicial da obrigação tributária [6]. Ainda, em sentido convergente, tem decidido o Tribunal da Cidadania que os parcelamentos e as transações celebrados após o transcurso do prazo prescricional não restabelecem a exigibilidade do crédito tributário [7].

A celeuma resta agravada pela disposição de que o árbitro é juiz de fato e de direito, inclusive para os fins estabelecidos nos artigos 151, V, e 156, X, do Código Tributário Nacional, ficando a sentença arbitral insuscetível de recurso ou de homologação pelo Poder Judiciário. Ou seja, ao mesmo tempo em que se amplia o espectro de alcance da arbitragem em matéria tributária e aduaneira, restringe-se a atuação jurisdicional do árbitro, malgrado a sua condição textual de “juiz de fato e de direito”.

Em paralelo, o projeto de lei remete ainda para uma aplicação subsidiária à arbitragem em matéria tributária e aduaneira da disciplina geral da arbitragem (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 [8]), o que soa como uma tentativa de aproximar modelos que tem pressupostos muito distintos.

Iniciativa ousada

Sem maiores aprofundamentos, por ora, a arbitragem, enquanto instituto geral, revela-se um processo submetido a julgamento privado, que visa uma justiça alternativa àquela administrada pelo Poder Judiciário (juiz estatal) [9], autorizando-se que pessoas capazes de contratar possam valer-se da arbitragem para dirimir os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis [10].

Percebe-se, pois, que o elastecimento amplo do campo arbitrável em matéria tributária e aduaneira é iniciativa ousada, desafiadora e controversa, sobretudo quando se cogita a admissibilidade da arbitragem para a prevenção de controvérsias, inclusive no âmbito do contencioso administrativo. Nesses casos, mesmo que se ignore que a preventividade não constitui o escopo de essência do instituto da arbitragem, acaba-se submetendo a própria constituição do crédito tributário a terceiro sujeito, estranho à relação obrigacional.

É sabido, todavia, que o lançamento do tributo é uma atividade privativa da autoridade administrativa [11], ainda quando essa tarefa permaneça reduzida à mera homologação [12]. Ademais, eventual intervenção de terceiros no forjamento constitutivo do crédito tributário sugere um avanço normativo impróprio em matéria reservada à lei complementar [13], remanescendo fundada claudicância, até, em relação à constitucionalidade do projeto.

Enfim, são apenas algumas impressões iniciais que já anunciam um fervoroso debate pela frente.

 


[1] MACHADO, C. H. Modelo multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

[2] Disponível em: https://www.caad.org.pt/files/documentos/CAAD_AT-RJAT-DL_10-2011.pdf.

[3] Artigo 2.º Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

  1. a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;

[4] Art. 1º. Esta Lei dispõe, com fundamento no art. 22, I, da Constituição Federal, sobre a utilização da arbitragem envolvendo matéria tributária e aduaneira, com vistas a promover a solução de controvérsias e a prevenção e a resolução do contencioso administrativo e judicial.

[5] CF/88, art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

[6] Tese Firmada no Tema nº 375 do STJ: A confissão da dívida não inibe o questionamento judicial da obrigação tributária, no que se refere aos seus aspectos jurídicos. Quanto aos aspectos fáticos sobre os quais incide a norma tributária, a regra é que não se pode rever judicialmente a confissão de dívida efetuada com o escopo de obter parcelamento de débitos tributários. No entanto, como na situação presente, a matéria de fato constante de confissão de dívida pode ser invalidada quando ocorre defeito causador de nulidade do ato jurídico (v.g. erro, dolo, simulação e fraude).

[7] PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO RECONHECIDA. DECURSO DE MAIS DE 5 ANOS ENTRE A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO E O AJUIZAMENTO DA EXECUÇÃO. PARCELAMENTO POSTERIOR. RESTAURAÇÃO DA EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 267, V DO CPC/1973. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 211/STJ. AGRAVO INTERNO DO ESTADO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O art. 267 do CPC/1973 carece do necessário prequestionamento, requisito indispensável ao acesso às instâncias excepcionais. Incide, no caso, a Súmula 211/STJ, segundo a qual inadmissível Recurso Especial quanto à questão que, a despeito da oposição de Embargos Declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo. 2. O acórdão recorrido está em conformidade com a jurisprudência do STJ, que já orientou que o parcelamento postulado depois de transcorrido o prazo prescricional não restabelece a exigibilidade do crédito tributário. Isso por que (a) não é possível interromper a prescrição de crédito tributário já prescrito; e (b) a prescrição tributária não está sujeita à renúncia, uma vez que ela não é causa de extinção apenas do direito de ação, mas, sim, do próprio direito ao crédito tributário (art. 156, V do CTN). 3. Agravo Interno do Estado a que se nega provimento (STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1156016 / SE. Data: 01/06/2020).

[8] Lei nº 9.307, de 1996, que dispõe sobre a arbitragem. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm.

[9] FAZZALARI, E. L’arbitrato. Torino: UTET, 1997. p. 03.

[10] Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (Lei nº 9.307, de 1996).

[11] Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

[12] Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

[13] Art. 146, inciso III, b, da CF/88.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito pela UFSC, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, professor de Direito Tributário na Faculdade Cesusc, advogado e coordenador do Núcleo de Educação Jurídica do escritório Marchiori, Sachet, Barros e Dias Sociedade de Advogados.

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