Modificações no art. 63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação
11 de junho de 2024, 18h33
O Código de Processo Civil foi mais uma vez alterado, dessa vez pela Lei n° 14.879/2024. O alvo foi o artigo 63, que regula a cláusula de eleição de foro. O texto do §1° foi reformulado e um novo §5° foi acrescentado. Aqui, veremos seis pontos relevantes da mudança que merecem maior reflexão da comunidade jurídica.
Antes disso, é importante firmar uma pequena premissa e aportar um dado histórico.
A competência é parcela de poder jurisdicional atribuída a um órgão. É um limite no exercício de um poder. A jurisdição é una e exercida pelo Estado-juiz. A competência representa a parcela deste poder de exercer jurisdição. Conceitua-se competência jurisdicional como sendo a parcela de jurisdição atribuída a um órgão jurisdicional. O estudo da competência é, portanto, uma análise entre atribuição e limitação do poder de exercer a atividade jurisdicional.
Uma das mais relevantes (ainda que bastante questionada) classificações dos critérios de fixação de competência é a que separa a competência absoluta da relativa.
A competência absoluta é atribuída para atender certo interesse público. Exatamente por isso, os vícios de competência a ela relacionados admitem cognição ex officio sem possibilidade de prorrogação. A lição tradicional é de que as partes não podem alterar as regras de competência absoluta. É esta a interpretação que tem sido dada ao artigo 62 do CPC, que associa a competência absoluta à fixação em razão da matéria, da pessoa ou da função.
Por outro lado, a competência relativa é atribuída no interesse das partes. Exatamente por isso, sempre se entendeu que a incompetência relativa não pode ser conhecida de ofício pelo magistrado, exigindo-se, para o seu conhecimento, arguição pelo réu, sob pena de preclusão, caso em que a competência será prorrogada.
Tradicionalmente se entende que as regras de competência relativa podem ser alteradas pela vontade das partes através de diversos meios:
- pelo silêncio do réu, quando há modificação tácita da competência relativa;
- por negócio processual escrito entre as partes, elegendo o “foro contratual”, conforme previsto no artigo 63, caput do CPC, que associa a competência relativa à fixação em razão do valor e do território.
Era assim que se lidávamos com a competência até o advento da Lei n° 14.879/2024. Em verdade, historicamente, sempre foi assim. As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas (que vigoraram no Brasil) previam a eleição de foro. O Regulamento n° 737/1850 (que sistematizou o processo civil no período imperial) também trazia permissão semelhante. Apesar de o CPC/1939 não trazer previsão expressa, conviveu com o artigo 42 do Código Civil de 1916, que autorizava a eleição de foro. A permissão veio no artigo 111 do CPC/1973, mantendo-se no artigo 63 do CPC atual.
Pois bem, esse cenário parece ter mudado em 5 de junho de 2024, com a modificação do §1° do artigo 63 e a introdução de um §5° no mesmo dispositivo. Não foi bom, mas foi. É preciso, como se disse, pensar sobre alguns pontos.
Primeiro: alteração legislativa sem dados
É prática comum no Brasil que as alterações legislativas se realizem com base em suposições, sem apresentação de dados que comprovem as hipóteses. A pressão legislativa para alteração do código veio principalmente do TJ-DF e do TJ-SP, que se viam eleitos pelas partes por razões distintas. Presumidamente, o TJ-DF pela sua “eficiência” e baixo custo de litigância; o TJ-SP, pela super especialização dos juízos empresariais da capital, que muitas vezes eram eleitos para demandas referentes a contratos empresariais de alta complexidade.
O projeto (agora transformado em lei) visava a “evitar o congestionamento” em tribunais com “melhor desempenho”, ainda que essa hipótese não se baseasse em dados. Simbólico, inclusive, que os dirigentes do TJ-DF tenham participado da cerimônia de sanção da lei.
Um juízo de eficiência se baseia em saber como é possível obter os melhores resultados com os menores custos (temporais e financeiros). No caso, a eficiência serviu como “guarda-chuva”. Não se avaliou nem os resultados (bons ou ruins) que a eleição de foro traz para a prestação da jurisdição, nem os impactos (ótimos ou péssimos) que a alteração legislativa pode trazer.
Tremenda bola fora, só por isso.
Segundo: eleição de foro limitada aos foros concorrentes
Com a alteração legislativa, a eleição de foro contratual ficou extremamente limitada: as partes só podem escolher, consensualmente, litigar perante os órgãos com competência territorial que possuam algum elemento de conexão com a causa. Na verdade, especificamente três elementos: domicílio ou residência das partes; local da obrigação, quer dizer, local em que os atos materiais devem se realizar (artigo 53, III, ‘d’, do CPC). Tratam-se, todos, de foros já concorrentemente competentes de acordo com o CPC.
Veja-se, nesse sentido, que muitas vezes a eleição negocial de foro será mais restrita que a própria competência legal. Nos casos do artigo 53 do CPC, há mais hipóteses de foros concorrentes do que os previstos no novel artigo 63.
Terceiro: paradoxalmente, ao Judiciário é permitido dispor sobre competência
O terceiro ponto tem relação direta com o segundo e demonstra um paradoxo: enquanto se restringe o direito de as partes elegerem foro, atualmente as possibilidades de gestão de competência pelo próprio Judiciário (inclusive junto com as partes) só se expandem.
Para ficar apenas com dois exemplos: juízo 4.0; cooperação judiciária nacional.
A Resolução n° 385/2021 do CNJ prevê a criação dos núcleos de Justiça 4.0. Em seu artigo 1°, há previsão de que tais núcleos serão especializados em relação a uma mesma matéria e terão competência territorial sobre toda a área do tribunal. É dizer, o próprio tribunal altera regras de competência territorial de acordo com um juízo de eficiência.
O que existe, portanto é um fomento à gestão de competência, especialmente a competência relativa cuja fixação se dá com base no território.
Mais importante, a cooperação judiciária nacional surge como instrumento para a gestão de competência pelos juízos cooperantes. Já tivemos a oportunidade de tratar da disposição de competência via cooperação, [1] e a experiência prática demonstra que o instituto tem sido amplamente utilizado para disposição de competência, inclusive, quando já há prevenção [2].
Por um lado, ampliam-se os instrumentos para gestão da competência, por outro, restringe-se o direito de as partes elegerem o foro.
Quarto: necessidade de cancelar o Enunciado n° 33 da Súmula do STJ e de respeitar o artigo 10 do CPC
O Enunciado n° 33 da Súmula do STJ dispõe: “A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”. Com a alteração legislativa se apresentam apenas duas opções: ou considerar que a fixação de competência pelo critério territorial deixou de ser competência relativa ou que o Enunciado n° 33 foi superado via legislativa [3], impondo-se seu cancelamento.
É que, agora, o §5° do artigo 63 do CPC autoriza a declinação de competência de ofício.
O STJ terá que lidar com essa questão. E com mais uma: não nos parece que declinar da competência de ofício signifique declinar da competência sem ouvir as partes. A nossa ordem jurídica, com base no artigo 10 do CPC, proíbe que as decisões sejam tomadas sem a realização do contraditório, mesmo em questões cognoscíveis de ofício.
Não há justificativa para que o artigo 10 seja afastado nesse caso. O problema é: as partes serão ouvidas para que? Para justificar a escolha do foro sem “elemento de conexão” com a demanda? Essa justificativa é suficiente? Suficiente para fazer prevalecer a escolha ou apenas para afastar o “abuso” na escolha? Será que na prática não assistiremos a uma enxurrada de decisões declinando de competência por eleição de foro como forma de “sanear” os cartórios?
Quinto: direito intertemporal
O que fazer com os processos já em curso cuja competência foi definida em razão de cláusula de eleição de foro? E o que fazer com as cláusulas já vigentes cujos negócios jurídicos ainda não foram objeto de judicialização?
Na primeira hipótese, parece-nos que não é possível reconhecer, em razão da superveniência da lei nova, incompetência do foro eleito. Explico: a competência territorial é relativa. Portanto, eventuais vícios são superados pela preclusão. Não tendo sido reconhecida a abusividade do foro (artigo 63, §3°) e não tendo sido arguida a incompetência relativa em sede de defesa, está prorrogada a competência, não sendo mais possível rediscuti-la.
Sendo assim, considerando a adoção da teoria do isolamento dos atos processuais, a novel alteração legislativa não pode atingir os processos já em curso, quer dizer, já ajuizados. Veja-se, nesse sentido, que a competência é definida no momento do ajuizamento da demanda, não sendo possível falar de incompetência relativa superveniente. Assim, para as demandas já ajuizadas, nada deve ser feito.
A segunda hipótese é mais problemática. Haverá conflito entre duas normas sobre competência. A primeira, anterior, de origem convencional e específica; a segunda legal, de origem legislativa e geral. Não há, dentro dos tradicionais critérios de superação de antinomias, técnicas para justificar a prevalência de uma ou outra.
Em nossa opinião, a segurança jurídica e a previsibilidade justificam o respeito à cláusula de eleição de foro anterior. Perceba-se: não se pode arguir “abusividade” na eleição do foro que não guarde “elemento de conexão” com a causa se esta abusividade e a restrição nos critérios de eleição somente foram previstos depois da convenção.
Eis aí mais um grande problema a ser enfrentado.
Sexto: a abrangência do novo §5°
Há alguns problemas com a redação do §5° do artigo 63. Em primeiro lugar, o adjetivo “aleatório” não é usualmente utilizado em direito. Adota-se, portanto, um conceito novo de foro aleatório. Para o legislador, “aleatório” é o foro sem elemento de conexão com a demanda.
Especificamente, domicílio ou residência das partes ou negócio jurídico. Mas será só isso? “Aleatório” é um conceito ou um tipo? Para além da desconexão com domicílio ou residência ou negócio jurídica, haverá outros casos de juízo aleatório? Parece-me, que não, exatamente porque a aleatoriedade caracteriza abuso, o que demanda interpretação restritiva. De toda sorte, é preciso aguardar como o dispositivo será aplicado.
Outro ponto: tem-se debatido (nos diversos aplicativos de troca de mensagens) se o §5° se aplica ao foro eleito negocialmente ou apenas à escolha unilateral, pelo autor, de foro aleatório, o que restringiria a “abusividade” apenas a esta segunda hipótese.
Bem vistas as coisas, o ajuizamento de demandas em juízo aleatório — quer dizer, sem elementos de conexão — pode se dar nas duas hipóteses. Naturalmente, o autor pode propor a demanda em foro territorialmente distinto daquele previsto nas regras codificadas de competência. Caso o réu não aponte a incompetência relativa, a competência é prorrogada.
Da mesma forma, as partes podem eleger o foro e, caso uma delas proponha ação relativa ao contrato, escolherá o foro consensualmente eleito. Em ambos os casos, o foro escolhido (unilateral ou bilateralmente) poderá se adequar ao conceito de foro aleatório previsto no §5° do artigo 63.
Por isso, parece-nos que o §5° se aplica a qualquer escolha de Juízo aleatório, realizada unilateral ou bilateralmente.
Por último, o dispositivo prevê que a propositura da demanda em Juízo aleatório caracteriza prática abusiva. Abuso de quem? Em face de quem?
Imaginemos que o autor escolha unilateralmente o Juízo. A prática abusiva se daria em face do Judiciário ou da parte contrária. A parte contrária, todavia, sequer teria a oportunidade de se manifestar, pois a incompetência seria reconhecida de ofício.
O réu não viria aos autos e a escolha do autor seria considerada abusiva sem sequer dar a oportunidade de o réu concordar com a escolha. Só nos resta imaginar que o abuso caracterizaria contemp of court, portanto, ilícito punitivo. Os ilícitos punitivos precisam de previsão quanto à punição e seus parâmetros.
Não há, no CPC, quaisquer elementos que sirvam para justificar a aplicação de multa. Se a multa for aplicada, será destinada a qual dos tribunais (se forem distintos), aquele em que a demanda foi proposta ou o competente de acordo com as regras codificadas?
Por outro lado, a escolha do Juízo aleatório pode se dar com base em negócio jurídico. Autor e réu, partes no negócio, elegem consensualmente o Juízo aleatório. Não se pode imputar ao autor nenhum tipo de punição pelo simples fato de ser aquele que propõe a demanda no foro convencionalmente eleito.
Nesse caso, se há abuso, é de responsabilidade do autor e do réu, que (mais uma vez) sequer vem aos autos. Um determinado sujeito, então, poderá sofrer consequências pela eleição negocial de foro sem sequer ter vindo ao processo? Ou será chamado para “justificar” a escolha do foro e, portanto, tentar afastar a abusividade na escolha?
Os problemas são muitos e de diversas ordens, desde a origem da iniciativa legislativa, até a aplicação futura dos novos dispositivos. O que vai ocorrer dependerá da boa vontade dos operadores. Cenas dos próximos capítulos.
[1] AVELINO, Murilo Teixeira. Disposição de competência por ato concertado entre juízes cooperantes. DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo (coords). Grandes Temas do Novo CPC – v. 16 – Cooperação Judiciária Nacional. Salvador: Juspodivm, 2021.
[2] Por exemplo, atos em cooperação que tratam de gestão de competência: i) Ato conjunto n° 002/2021 – SSJ/FSA, firmado entre as unidades jurisdicionais da Subseção Judiciária de Feira de Santana, cujo objeto é a gestão de demandas envolvendo vícios construtivos em imóveis do Programa Minha Casa Minha Voda – faixa 1; ii) Termo de cooperação firmado entre o TJMG e o TJPB, cujo objeto é a centralização e a coordenação de competências em ações coletivas no caso 123 Milhas; iii) Ato Concertado n° 01/2023 firmado entre os juízos da 2° e 3° Varas Cíveis e Empresariais da Comarca de Altamira/PA, cujo objeto é a distribuição e reunião de processos envolvendo a mesma unidade familiar; iv) Ato concertado n° 02/2023 firmado entre as Varas Cíveis da Comarca de Belo Horizonte, cujo objeto é a centralização de demandas envolvendo a repactuação de dívidas nos termos da lei n° 8.078/1990; v) Termo de cooperação judiciária firmado entre a 4°, 5° e 7ª Varas Mistas da Comarca de Sousa/PB, cujo objeto é centralizar processos repetitivos questionando a legalidade e regularidade de parcelas de tarifas, seguros, previdência privada e congêneres em constas bancárias, por instituições financeiras; vi) Ato Concertado n° 1/2021 firmado entre os juízos da 1ª e 2ª Varas de Família do Fórum Regional da Barra da Tijuca, cujo objeto é a distribuição e reunião de processos envolvendo a mesma unidade familiar.
[3] Mesmo antes, já havia manifestações pelo reconhecimento de ofício de incompetência territorial. Por exemplo, o processo n° 1095614-06.2023.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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