Opinião

Tutela da probidade administrativa entre vazios, vieses e voluntarismos

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

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10 de junho de 2024, 12h21

Inauguramos aqui o primeiro de três artigos sobre as alterações ocorridas na Lei de Improbidade Administrativa, após a vigência da Lei 14.230/21. Esse primeiro texto tratará do abandono da moralidade administrativa e do direito fundamental à boa administração. [1]

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O segundo, versará sobre a adesão inquestionável ao direito administrativo sancionador em detrimento ao direito administrativo e, o derradeiro, versando sobre críticas à exigência de elemento do injusto, com abandono do elemento normativo “culpa”.

Iniciemos pelos vazios.

A notabilíssima importância da Lei de Improbidade Administrativa decorre da própria efetividade do Estado democrático de Direito. Portanto, a Lei de Improbidade Administrativa deve atender aos parâmetros constitucionais de promoção do bem comum, com vistas à proteção da moralidade administrativa e do direito fundamental à boa administração, para além da tutela única e exclusiva do patrimônio público. Harmonia entre direitos fundamentais dos agentes públicos e os direitos fundamentais da coletividade é o que se espera.

No iter histórico, a Lei 8.429/92 sofreu diversas alterações. Algumas para limitação do respectivo uso, outras no sentido de alargamento das hipóteses de incidência. Todas no sentido de calibração: da punição à proporcionalidade; ou da legitimação de modelos de intervenção entre o sistema jurídico e o sistema político.

Exemplificando as insurgências limitativas, cite-se a modificação à época do artigo 84 do CPP, com a inserção de dois parágrafos, pela Lei 10.068/2002, que fixava o foro por prerrogativa de função junto aos tribunais estaduais para funcionários e autoridades, mais tarde julgada parcialmente inconstitucional no âmbito da ADI 2.797.

Igualmente, as edições das MP 2.038-85/2000 e MP 2.225/45/2001 que estabeleciam juízos prelibatórios para admissão da inicial. Destaque-se que a primeira MP chegou a dispor multa superior a R$ 150 mil no caso de lide temerária pelos autores da ação.

O advento de novos arranjos negociais administrativos inseriu outros tipos de condutas consideradas ímprobas, como no caso da Lei 11.107/14 (lei de consórcios públicos) e a Lei 13.019/14 (lei de parcerias entre as organizações da sociedade civil e administração pública), respectivamente os incisos XIV, XV, XVI, XVII, XVIII do artigo 10. Igualmente a exação derivada do ISSQN pela LC 116/03 acresceu nova conduta considerada passível de improbidade também no artigo 10 da LIA, inciso XXII.

Outras legislações, em virtude da especialidade, retiraram parte do conteúdo da Lei 8.429/92, como no caso da Lei 12.846/13, conhecida Lei Anticorrupção, que inseriu modalidades da improbidade administrativa empresarial. Aqui certo avanço do sistema jurídico, tendo em vista o acompanhamento “menos incorreto” (diga-se) das convenções internacionais de combate à corrupção, lavagem de dinheiro e concorrência desleal, introduzindo no cenário jurídico os ‘programas de integridade’ como forma de prevenção à corrupção e à malversação do patrimônio público.

Entretanto, nenhuma das mencionadas iniciativas acima apontadas “corroeram” tanto as estruturas e funcionalidades da Lei 8.429/92 como essa que se viu pelo advento da Lei 14.230/21. E isso se deve à clara constatação de que as modificações atentam não só contra a legislação alterada, mas indubitavelmente contra os ‘fundamentos constitucionais’ que lhe deram origem. É dizer a Lei 14.230/21, pretextando alterar a Lei 8.429/92, acabou ‘contrariando’ em parte a Constituição.

Permissa venia, a Lei 14.230/21 corporifica clara “desidratação” não somente da necessária promoção de direitos, deveres e bens fundamentais (respectivamente, moralidade administrativa, boa-fé e patrimônio público) relativos à Administração pública, como também impacta o acesso da população (especialmente os mais vulneráveis) às finalidades axiomáticas fixadas na Constituição, com especial relevo aos ‘direitos fundamentais sociais’ e às políticas públicas em diversas searas.

A todos os olhos, as alterações introduzidas pela Lei 14.230/21 mitigaram não só as finalidades jurídicas atinentes à probidade administrativa (ratio legis), mas, sobretudo, a pertencialidade valorativa que a Lei 8.429/92 sempre trouxe ao sistema. Há na dogmática alemã a célebre metáfora de Karl Larenz, sobre os “dentes do leão” (in Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts. Munique: Beck, 1977). O leão representa os deveres, aquilo a ser satisfeito. Já os dentes corporificam a responsabilidade pelo incumprimento dos deveres.

O que restou da atual configuração da lei de improbidade administrativa? É exatamente isso: deveres sem responsabilização equivalente, vale dizer ‘crio uma obrigação pela metade, um leão sem dentes, um objeto sem sombras possível’. Portanto, o regime atual é muito condescendente com o agente público.

A probidade agora se atraca unicamente com a proteção do patrimônio público e social. A introdução da nova redação do artigo 1º pela Lei 14.230/21 define a tutela da probidade para a exclusiva “finalidade assegurar a integridade do patrimônio público e social”. Noutro giro, o então 4º da Lei 8.429/92 que ratificava os princípios normativos regentes da administração pública foi revogado, sem substituição do texto. Eis a redação revogada:

Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.

Isso demonstra que a “extrapatrimonialidade administrativa”, configurada pelos valores éticos, boa governança, inclusão social, respeito às legítimas expectativas, processos democráticos, já não conta com o respeito dos legisladores, em “tese” vinculados ao “jogo contratual”. Parece que o projeto da pós-modernidade centrado na lei substituída pelo contrato derrubou a concepção de força totalizante das constituições. [2]

Tanto a nova redação dada ao artigo 1º pela Lei 14.230/21, como a supressão total do então artigo 4º da LIA contrariam à exaustão o disposto no artigo 5º, inciso LXXIII (que versa sobre a ação popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural) e o artigo 37, caput (que insere os princípios legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), ambos da CF, colocando em xeque o princípio da moralidade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública.

Cabe asseverar que como no Brasil, ao contrário de outros países (a exemplo de Portugal), não há “Código Administrativo” coube distintamente à Constituição fixar os princípios, regras e responsabilização da Administração pública e seus servidores, através de regime jurídico pormenorizado, o que vincula o legislador na tarefa legítima de propor e aprovar iniciativas legais.

Por isso, os princípios da administração pública não poderiam ser apagados, ignorados e deixados de lado pelo legislador ordinário. Todavia, foi o que aconteceu.

Cheque em branco

A moralidade administrativa, mesmo enquanto termo lexical “aberto” e com “vagueza semântica”, tem idêntica característica de todos os princípios constitucionais normativos: “densidade axiológica”. Isso não quer dizer que seja “cheque em branco” aos órgãos controladores quando da sindicabilidade dos atos administrativos, interceptando indevidamente o mister dos gestores. Não se trata de nem “governo de homens”, nem “governo de juízes”, muito menos “governo de promotores”, mas “governo de leis”.

Por isso, a verificação do atendimento ao princípio da moralidade administrativa requer: a compreensão do caso concreto + a verificação da incidência de outros princípios mais concretos e, caso não haja pertinência, a aplicação do princípio da moralidade administrativa + a incidência de regras + a realidade da gestão e as escolhas possíveis aos gestores (circunstância objetiva) + realidade da população (circunstâncias comunitárias subjetivas). Vale dizer, a moralidade administrativa não surge de conceito pessoal ou da moral, senão dos valores jurídicos à luz do fato sindicado.

No entanto, alteração da LIA pela Lei 14.230/21 suprimiu “todos os dispositivos” que tratavam da moralidade administrativa, o que, sem dúvida, estimulará o retorno de inúmeros abusos, independentemente de prejuízo ao erário.

Para descumprimento da moralidade administrativa, que não importa em danos ao erário, tem-se “velhos” exemplos: prática de “rachadinha”; desvio de finalidade, abuso do poder, nomeação de parentes sem concurso, entre outros. [3]

Igualmente, “novos” exemplos são possíveis: discriminação indevida dos administrados; prática de discurso de ódio; divulgação de notícias falsas; assédios morais, sexuais e econômicos; todos quando praticados por agentes públicos ou agentes políticos que desfrutam das estruturas, funcionalidades e posição de superioridade próprias da administração pública.

Aliás, a rica jurisprudência neste sentido não poderia ser desprezada. [4][5]

Igualmente o direito fundamental à boa administração pública, que sendo explícito no artigo 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, é implícito na Constituição, através dos princípios administrativos já exortados, assim como considerando dentre os objetivos da República Federativa do Brasil estar consignado a “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Para tanto, referido direito fundamental tem como titular a coletividade e como destinatário o Poder Público, com dupla função: i – imunizar alterações e modificações, por parte do legislador ordinário, que possam suprimir princípios, deveres e responsabilidades inerentes da administração pública e seus representantes em detrimento aos interesses dos cidadãos no que respeita aos temas do Estado Democrático de Direito; ii – padronizar modelos para correta gestão de recursos públicos para efetividade dos demais direitos fundamentais.

Neste ponto, calha lembrar que o direito fundamental à boa administração pública integra o princípio da segurança jurídica (esfera objetiva) e dá concretude também ao princípio da confiança (esfera subjetiva), enfim a ‘legítima expectativa que a sociedade deposita quanto ao cumprimento dos cânones constitucionais’. Não à toa que o Supremo Tribunal Federal assim já se posicionou a respeito do princípio da confiança quando do episódio das vacinas para a Covid-19.[6] Também é o que se deduz também da doutrina qualificada. [7]

Vale lembrar que a ação popular nem de longe auxilia no controle da moralidade administrativa e direito fundamental à boa administração, porque desprovidas de sanções adequadas razoáveis e proporcionais aos eventuais danos extrapatrimoniais causados pelos agentes públicos, especialmente gestores.

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[1] Todos os temas representam não só o dia a dia dos Ministérios Públicos, mas também a mundivisão da realidade social, na tensão entre problemas (pelos fatos) e possíveis soluções (pelo direito). Missão inglória, mas de exigência pela deverosidade imputada pela Constituição Federal.

[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. Rever ou romper com a Constituição Dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. In: Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 111 – 124. Reflete: “No fim de contas, o projecto emancipatório das constituições vai continuar num contexto outro e através de instrumentos regulativos diferentes. A lei dirigente cede o lugar ao contrato, o espaço nacional alarga-se à transnacionalização e globalização, mas o ânimo de mudanças aí está de novo nos “quatro contratos globais”.

[3]MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. Ed. Saraiva 4ª ed. pág. 45. Anota: “A constitucionalização explícita da moralidade administrativa operada no art. 37 existe para proteção dos valores patrimoniais e morais da Administração Pública. A ofensa ao princípio, tênue ou grave, sujeita o ato contaminado à anulação administrativa ou judicial, e pode conduzir ao sancionamento específico da improbidade administrativa, havendo ou não prejuízo patrimonial do erário. Essa dimensão é infinitamente superior à concepção restrita da defesa dos valores patrimoniais da Administração Pública”.

[4] BRASIL. TJSP. Apelação cível 1034150-46.2017.8.26.0114. Com a ementa: Apelação Cível Ação de Responsabilidade Civil por Ato de Improbidade Administrativa Apuração de atos de violência e tortura em Delegacia Civil contra pessoas presas em flagrante Agente de Telecomunicações da Polícia Civil da 2ª Delegacia Seccional de Polícia de Campinas.

[5]BRASIL. TJMG. Apelação cível 1.0534.05.001523-7/002. Com a ementa: Apelação cível. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Assédio de vereador à adolescente contratada temporariamente. Condenação penal. Conduta ímproba.

[6] BRASIL. STF – Referendo na MC na ACO 3.518 – Tribunal Pleno – j. 15/9/2021 – julgado por Enrique Ricardo Lewandowski – DJe 17/12/2021. No destaque: “Eventual omissão do Governo Federal nesse sentido que poderá frustrar a legítima confiança que o Estado de São Paulo depositou no planejamento sanitário anteriormente estabelecido, como também a daqueles que esperam a tempestiva complementação da imunização à qual fazem jus”.

[7] TORRES, Heleno Taveira. in Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema Constitucional Tributário: São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 221-222. Defende: “O princípio da proteção da confiança legítima é consequência dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da eficiência e da moralidade administrativa, manifestos pela obrigatoriedade da Administração pública de agir com previsibilidade na relação com os particulares. O respeito ao princípio da confiança legítima, por conseguinte, integra-se ao princípio da boa Administração pública, que se define a partir de uma atividade desenvolvida segundo critérios fundados em transparência, motivação, imparcialidade e probidade, ou seja, orientada à efetividade dos direitos fundamentais, em coerência com o estado de confiança relativo aos seus atos, comissivos ou omissivos. Por todos esses motivos, fala-se hoje em um verdadeiro direito fundamental à boa administração pública, a integrar o conteúdo do princípio da segurança jurídica”.

Autores

  • é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, presidente do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

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