Marco Legal das Garantias e execução do bem alienado fiduciariamente
10 de junho de 2024, 10h12
Contexto
A Lei nº 14.711/23, promulgada em 30 de outubro de 2023 e conhecida como Marco Legal das Garantias, solucionou um grande dilema no âmbito da alienação fiduciária.
Antes da alteração legislativa, a Lei nº 9.514/97 previa que a dívida subjacente à garantia se extinguiria após a obtenção, pelo credor fiduciário, do produto do leilão do bem alienado fiduciariamente [1]. Caso o valor da dívida fosse superior ao do bem dado em garantia, essa diferença não poderia ser perseguida pelo credor.
A ideia de exoneração do devedor após o leilão do bem mesmo sem a amortização integral da dívida tem origem na Lei nº 5.741/1971, que estabelecia procedimento especial para a execução judicial do crédito hipotecário habitacional vinculado ao Sistema Financeiro Habitacional [2].
Essa regra foi pensada no contexto econômico específico dos anos 70, em que o devedor, que buscava crédito para aquisição de imóvel para fins residenciais, se via em desvantagem em razão dos altos índices de inflação registrados na época.
Fora da conjuntura inflacionária em que essa regra foi criada, a extinção da dívida ainda se justifica no financiamento imobiliário para habitação ou para a aquisição do próprio imóvel dado em garantia, pois o valor do bem é, em geral, similar ao valor da dívida, considerando a valorização que normalmente ocorre entre os bens imóveis.
Tanto é assim, que o Código Civil de 2002 previu o contrário ao disciplinar a propriedade fiduciária, o penhor e a hipoteca: a garantia real se extingue, mas a obrigação perdura até sua satisfação integral. [3]
Para dar segurança às operações decorrentes de contrato de abertura de crédito e cédula imobiliária rural as Leis nºs 13.476/2017 e 13.986/2020, respectivamente, previram, em exceção à regra da Lei nº 14.711/23, a possibilidade de o credor perseguir o saldo remanescente da dívida por via executiva.
Nas operações não habitacionais em que o valor do bem oferecido em garantia é consideravelmente inferior ao valor do contrato subjacente a insegurança persistia, pois, se aplicado o disposto na Lei nº 14.711/23, o bem poderia ser leiloado por um valor correspondente a uma fração da dívida e ela ainda sim seria extinta.
A exoneração do devedor impedia, por exemplo, a persecução de outras garantias comumente pactuadas nesses contratos, o que aumentava o risco na excussão da garantia e a tornava menos atraente.
Adequação da alienação fiduciária aos demais contratos: esforço conjunto
O caminho para a alteração legislativa da regra prevista na Lei nº 14.711/23 que impossibilitava que o credor perseguisse o saldo remanescente foi pavimentado em conjunto pela doutrina e jurisprudência.
A doutrina apontou a incompatibilidade entre a razão de ser da norma, pensada para um cenário econômico específico e o momento presente, em que exonerar o devedor gera um desequilíbrio e torna a alienação fiduciária menos atrativa aos credores, especialmente nos contratos que não se destinam ao financiamento imobiliário habitacional. [4]
Para resguardar a possibilidade de o credor fiduciário executar o valor integral da dívida, mas sem ampliar as exceções à norma geral vigente à época, o STJ confirmou no REsp nº 1.965.973/SP a viabilidade de uma alternativa ao credor: a de, ao invés de excutir extrajudicialmente a garantia, promover execução judicial [5].
Assim, o credor pode buscar a satisfação integral do crédito por meio da expropriação de outros bens do devedor, ao invés de se contentar com o valor obtido no leilão extrajudicial.
Apesar de ter sido um avanço em termos de segurança, a alternativa confirmada pelo STJ não solucionou totalmente a questão. Ao optar pela execução judicial, o credor tem a certeza de poder perseguir o valor integral da dívida, mas não dispõe do procedimento facilitado para excussão extrajudicial da garantia.
Marco Legal das Garantias
Como anunciado na introdução deste texto, o Marco Legal das Garantias adequou a razão de ser da regra ao momento presente. A regra anterior passou a ser a exceção, limitada ao financiamento de imóveis para fins habitacionais, e a regra geral se adequou à lógica do Código Civil.
A nova lei inclui o artigo 26-A, cujo caput indica expressamente a sua incidência apenas nos contratos de aquisição ou construção de imóvel para a residência do devedor. A regra de exoneração do devedor pelo saldo remanescente da dívida passou a constar no §4º desse artigo [6].
Para evitar que a interpretação dada pelo STJ no REsp nº 1.965.973/SP se estendesse indevidamente aos contratos de aquisição de imóveis residenciais, esvaziando assim o sentido do §4º, o parágrafo seguinte expressamente previu que nesses casos a extinção da dívida quanto ao saldo remanescente ocorre também quando o credor opta pela execução judicial. [7]
A regra geral para os outros contratos passa a ser a possibilidade de o credor perseguir integralmente a dívida após a excussão judicial ou extrajudicial da garantia quando o produto do leilão do bem dado em garantia for inferior ao valor do débito. [8]
Risco de frustração dos leilões extrajudiciais
Apesar do avanço legislativo, o credor fiduciário ainda enfrenta altos riscos.
No caso de serem frustrados os dois leilões extrajudiciais para venda do bem dado em garantia, o artigo 27, §5º-A, da Lei nº 9.514/97, recentemente alterada pelo Marco Legal das Garantias, faz menção ao §4º do artigo anterior (relativo aos contratos de aquisição de imóveis residenciais).
Ou seja, mesmo nos contratos que não têm como finalidade a aquisição ou construção de imóveis para fins de habitação, a lei dá a entender que a frustração dos leilões extrajudiciais enseja livre disponibilidade do bem ao credor fiduciário e a exoneração do devedor quanto ao restante da dívida.
Nos casos em que a dívida é garantida de diversas formas e existindo alienação fiduciária de um bem de valor consideravelmente inferior ao do montante total devido, a excussão extrajudicial ainda apresenta altos riscos ao credor, que não compensam a celeridade ou menor onerosidade da via em comparação à execução judicial.
Isso porque na execução judicial, o lance mínimo para os leilões tem como referencial o valor do bem leiloado. Na excussão extrajudicial, por sua vez, o lance mínimo para o segundo leilão deve obedecer ao valor integral da dívida, o que diminui consideravelmente as chances de que a alienação se aperfeiçoe se o valor da dívida é superior ao valor do bem.
Ao credor não é atraente correr o risco de ter que se contentar com um bem de baixa liquidez e, ainda, de valor inferior ao da operação contratada.
Portanto, apesar do progresso legislativo ao se permitir a execução integral da dívida garantida por alienação fiduciária no caso de o produto do leilão ser de valor inferior ao do débito, o risco de frustração de ambos os leilões previstos na Lei nº 14.711/23 faz com que a alternativa de execução judicial do bem, confirmada pelo STJ, ainda seja mais atraente ao credor fiduciário em muitos casos.
* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.
(…) § 5º Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º.
[2] Art . 7º Não havendo licitante na praça pública, o Juiz adjudicará, dentro de quarenta e oito horas, ao exeqüente o imóvel hipotecado, ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida.
[3]Art. 1.366. Quando, vendida a coisa, o produto não bastar para o pagamento da dívida e das despesas de cobrança, continuará o devedor obrigado pelo restante.
Art. 1.430. Quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo restante.
[4] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário, 7a ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021, págs. 222-223
[5] REsp n. 1.965.973/SP, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 15/2/2022, DJe de 22/2/2022
[6] Art. 26-A. Os procedimentos de cobrança, purgação de mora, consolidação da propriedade fiduciária e leilão decorrentes de financiamentos para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, exceto as operações do sistema de consórcio de que trata a Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008, estão sujeitos às normas especiais estabelecidas neste artigo.
(…) § 4º Se no segundo leilão não houver lance que atenda ao referencial mínimo para arrematação estabelecido no § 3º deste artigo, a dívida será considerada extinta, com recíproca quitação, hipótese em que o credor ficará investido da livre disponibilidade.
[7] Art. 26-A. (…) § 5º A extinção da dívida no excedente ao referencial mínimo para arrematação configura condição resolutiva inerente à dívida e, por isso, estende-se às hipóteses em que o credor tenha preferido o uso da via judicial para executar a dívida.
[8] Art. 27. (…) § 5º-A Se o produto do leilão não for suficiente para o pagamento integral do montante da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o devedor continuará obrigado pelo pagamento do saldo remanescente, que poderá ser cobrado por meio de ação de execução e, se for o caso, excussão das demais garantias da dívida, ressalvada a hipótese de extinção do saldo devedor remanescente prevista no § 4º do art. 26-A desta Lei.
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