Opinião

PL 39/24 do 'comitê gestor': racionalização do processo administrativo tributário pós-reforma

Autor

  • Saullo Bonner Bennesby

    é advogado sócio-fundador do escritório Bonner Bennesby Advocacia especialista em direito tributário pela PUC-SP e mestrando em direito tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).

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9 de junho de 2024, 9h20

A reforma da tributação sobre o consumo no Brasil resultou na necessidade de reforma do contencioso administrativo tributário para atender ao novo modelo constitucional tributário. Foi enviado pelo governo federal o Projeto de Lei Complementar nº 39/24.

Devemos, inicialmente, fixar uma premissa. A função jurisdicional pode ser exercida por qualquer um dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Quando o Poder Judiciário exerce a jurisdição, estar-se-á falando da jurisdição típica. Nos outros casos estaremos diante da jurisdição atípica.

O processo administrativo tributário volta-se exatamente para esta função atípica, de modo que teceremos algumas considerações sobre o segundo projeto de lei enviado pelo governo federal para o Congresso para regulamentar a reforma tributária, trazendo um breve apanhado histórico sobre o processo administrativo tributário para compreendermos a necessidade de racionalização do contencioso tributário brasileiro no âmbito das administrações.

Com a Constituição de 1988, o Brasil adotou um modelo de repartição das competências para legislar sobre o processo administrativo tributário da mesma forma que foram repartidas as competências para instituir os tributos. Isto significa que os entes federativos (União, estados e municípios) são competentes para legislar sobre o contencioso administrativo tributário bem como seus respectivos tributos.

O texto constitucional derrogou à União a prerrogativa de legislar sobre a unificação do processo administrativo tributário por meio de lei complementar. Infelizmente, esta competência nunca foi exercida. Destaque-se que o Decreto nº 70.235/72, que dispõe sobre o processo administrativo federal, em que pese por vezes aplicável aos processos administrativos tributários estaduais e municipais, não é o veículo introdutor de normas gerais determinado pela Constituição. Sua aplicação se dá por uma construção jurisprudencial em razão das inúmeras vezes em que as legislações municipais e estaduais são silentes.

Ao longo do tempo, cada ente federativo desenvolveu um modelo único de processo administrativo tributário, atentando-se às peculiaridades regionais que um país extenso como o Brasil possui. E, sejamos sinceros, isto resultou em um caos processual que exige do intérprete um conhecimento específico sobre cada órgão, em total contramão à uma racionalidade normativa que um Estado democrático de direito exige em seu núcleo, a segurança jurídica.

Spacca

Nenhuma obra doutrinária foi capaz de sistematizar um estudo unificado e detalhado sobre os mais diversos processos administrativos tributários do Brasil, especialmente se levarmos em consideração que atualmente existem 5.565 municípios, 26 estados e o Distrito Federal, figura sui generis. Seria uma tarefa herculana, quiçá impossível.

Cada um destes modelos processuais administrativos pode ter um sistema operacional completamente diferente, como ocorre em sua maioria. Muitos permanecem com a sistemática de um processo físico, mesmo com as tecnologias que a rede mundial de internet proporcionou. Recordo-me das lições do saudoso e genial Alfredo Augusto Becker,[1] que anunciou há tempos o “carnaval tributário”, aplicável completamente ao processo administrativo tributário: “E se a exposição que o leitor lerá parecer-lhe caótica, recorde-se que eu estou procurando descrever o caos”.

Nova realidade tributária

Com a reforma sobre o consumo iniciada com a EC nº 132/2023, o Brasil tem a oportunidade e a necessidade de rever o modelo processual administrativo tributário para atender a esta nova realidade, colocando-nos em verdadeiro protagonismo mundial. Para os incrédulos, deixo a consideração que nenhum outro país no mundo desenvolveu uma construção doutrinária e jurisprudencial tão sólida quanto o Brasil nos últimos 40 anos. Neste aspecto, somos referência mundial.

A reforma do processo administrativo tributário não é assunto novo, mas nunca esteve tão madura para ser aprovada como atualmente. Ao longo dos tempos diversas propostas legislativas foram apresentadas, onde destacamos, especialmente, as apresentadas no ano de 2022:

PLP 124/2022 – Dispõe sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária;

PLP 125/2022 – Estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres dos contribuintes;

PL 2.481/2022 – Reforma da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo);

PL 2.483/2022 – Dispõe sobre o processo administrativo tributário federal e dá outras providências;

PL 2.484/2022 – Dispõe sobre o processo de consulta quanto à aplicação da legislação tributária e aduaneira federal.

E esta maturidade agora é necessidade, tanto por uma racionalização para a redução do contencioso administrativo tributário quanto por necessidade de que o novo modelo seja atendido de acordo com as novas competências tributárias inseridas na Constituição, o que resulta na imperatividade de revisão do contencioso brasileiro.

A simplificação foi a grande premissa de necessidade da reforma sobre a tributação do consumo. Não há, ao nosso sentir, simplificação sem racionalidade. Há tempos o mestre Paulo de Barros Carvalho sustenta a necessidade de racionalização do modelo tributário brasileiro, o que não significa que o Brasil necessitava de alterações na carta de competências, mas esta não foi a opção do legislador.

Os órgãos administrativos tributários, especialmente em razão da sua especialidade dos julgadores, figuram como importantíssima forma de prestação da tutela jurisdicional, extremamente eficiente se comparado à tutela jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário, proporcionando um julgamento notadamente mais técnico, sem deméritos, mas uma constatação natural ante a especialidade do trato diário om as matérias complexas.

O segundo grande aspecto de estímulo à utilização do processo administrativo tributário, além do julgamento técnico, reside na automática suspensão da exigibilidade do crédito tributário, com a apresentação da tempestiva impugnação/recurso. Isto significa que o contribuinte não precisa garantir o crédito tributário em Juízo, tal como ocorre na maioria das vezes no poder judiciário para que o contribuinte consiga uma tutela provisória enquanto discute a legalidade do crédito tributário.

IBS e CBS

Como então, o segundo projeto de lei que regula a reforma da tributação sobre o consumo aborda o processo administrativo tributário do IBS e da CBS? Destacamos alguns aspectos, positivos e negativos que merecem atenção.

Os aspectos positivos começam pelo prazo processual para a apresentação de recursos. O artigo 83, § 1°, prescreve o prazo de 20 dias para apresentação de impugnações em face do lançamento de ofício realizado em desfavor do contribuinte. Este prazo será contado em dias úteis, com suspensão dos prazos entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro, um verdadeiro avanço e alento para os contribuintes que ficavam a mercê de um caos processual no final de cada ano.

Bem verdade que este prazo poderia ser maior, talvez de 30 dias em razão da necessidade de que o contribuinte apresente todas as provas quando da apresentação de impugnação fiscal, especialmente diante do prazo preclusivo que o mesmo artigo prescreve.

O segundo aspecto positivo reside na oportunidade de manifestação do contribuinte sobre a realização de diligências para instrução do processo no mesmo prazo de 20 dias.

Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
câmara dos deputados reforma tributária

O terceiro aspecto positivo é sobre os provimentos vinculantes. O artigo 91 do projeto prescreve um rol de hipóteses em que os precedentes devem ser observados no contencioso administrativo tributário. Destacamos o §1°, onde se prescreve que: “A autoridade julgadora observará, ainda, os atos administrativos vinculantes decorrentes da competência constitucional do CG-IBS no sentido da uniformização da interpretação e da aplicação da legislação do imposto, nos termos do artigo 156-B da Constituição”.

Entretanto, nem tudo são flores. Infelizmente o projeto apresentado apresenta uma série de atecnias graves que demonstram a ausência de juristas na elaboração conjunta do processo. Expliquemos.

O primeiro ponto de destaque negativo é sobre a insistência no chamado “recurso de ofício”, nos termos do artigo 92, I. Tecnicamente, a expressão “recurso de ofício” é completamente equivocada. Não existe recurso de ofício. Recurso pressupõe a manifestação da parte que não se viu satisfeita com o resultado. A doutrina já muito se debruçou sobre o tema, mas o legislador insiste em chamar o que não é recurso de recurso.

O segundo aspecto, ainda mais grave, é sobre a desistência do litígio na esfera administrativa tal como prescreve o artigo 89, ‘c’: “Art. 89. Opera-se a desistência do litígio na esfera administrativa: c) pela não apresentação tempestiva da impugnação ou do recurso”. Não há falar na existência de litígio sem que tenha havido apresentação de impugnação pelo contribuinte. É um grave erro cometido no projeto que deve ser reparado.

A reforma sobre o consumo é uma excelente oportunidade de trazer ao sistema do direito positivo brasileiro a racionalização ao modelo processual administrativo tributário, de maneira unificada, muito mais eficiente e digna do Brasil, trazendo consigo a possibilidade de que os litígios sejam resolvidos com mais análise sobre a relação jurídica de direito material do que por problemas sobre a instrumentalidade (processo).

Cabe ao Congresso corrigir os pontos necessários para que tenhamos um processo administrativo tributário racional e que possibilite a efetiva redução do contencioso tributário brasileiro.

 


[1] Becker, Alfredo Augusto, 1928-Carnaval tributário / Alfredo Augusto Becker. — 2. ed.— São Paulo : LEJUS, 1999. Pág. 15

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  • é advogado, sócio-fundador do escritório Bonner Bennesby Advocacia, especialista em direito tributário pela PUC-SP e mestrando em direito tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).

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