Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data
9 de junho de 2024, 8h00
Em seu clássico Diffusion of Innovations (1962) [1], Everett Rogers teoriza e define a difusão como o processo por meio do qual uma inovação é comunicada ao longo do tempo aos membros de um sistema social.
Trato aqui de uma inovação tecnológica recente que impacta diretamente a comunidade jurídica: os assistentes jurídicos virtuais (AJVs), ora definidos como módulos interativos de inteligência artificial (IA) generativa integrada a bancos de dados estruturados de conteúdo jurídico (big data).
Este texto objetiva contribuir com a difusão desta inovação.
A primeira e a segunda onda de difusão e de impactos da IA generativa sobre o Direito
Um estudo internacional publicado pela Wolters Kluwer em novembro de 2023 ilustra o ritmo acelerado da difusão da IA generativa sobre o Direito. Segundo a pesquisa, 73% dos operadores jurídicos afirmam que integrarão a IA generativa aos seus trabalhos jurídicos nos próximos 12 meses [2].
O impacto da IA generativa da espécie large language model (LLM) sobre as profissões jurídicas é monumental. Um estudo empírico sobre o efeito do GPT 4.0 sobre a produtividade e a qualidade de profissionais do conhecimento, em pesquisa financiada pela Harvard Business School, revelou que os profissionais que adotam esta tecnologia completam atividades intelectuais (1) mais rapidamente (25,1% mais célere, em média) e (2) com maior qualidade (em média, melhoria de 43% na qualidade das atividades desempenhadas por profissionais com habilidades técnicas “abaixo da média” e 17% de melhoria qualitativa no caso de profissionais com habilidades técnicas “acima da média”). Além disso, (3) observou-se um aumento de 12,2% na taxa de completude de atividades, o que significa que, com o uso da IA generativa, menos tarefas são iniciadas e não concluídas [3].
Nada obstante a inegável utilidade prática, o uso de assistentes virtuais “genéricos” de IA generativa, como o ChatGPT 4.0 ou o Gemini, representa, a meu ver, apenas a primeira onda de difusão e impacto sobre o modo como se opera o Direito.
Nesta primeira onda, duas limitações tecnológicas relevantes foram detectadas e alertaram a comunidade jurídica: (1) o fenômeno “black box”, consistente nas respostas baseadas em premissas desconhecidas, que impedem o usuário de conhecer ou compreender as fontes de conhecimento que foram utilizadas para a geração do conteúdo jurídico pela IA generativa; e (2) o fenômeno da “alucinação”, que se revela quando a IA generativa apresenta, em sua resposta, informações e referências falsas sobre precedentes judiciais ou normas jurídicas.
O fenômeno do black box torna a ferramenta menos útil, pois, como se diz, um argumento sem referência é uma mera opinião. Ou seja, ainda que seja correta a “opinião” apresentada pelo ChatGPT, se o texto não contém as referências das fontes jurídicas, isto não é suficiente para a completude da atividade intelectual. Sem as referências, o operador jurídico precisa realizar uma pesquisa jurídica autônoma, ainda que seja para confirmar a “opinião” da IA generativa.
O fenômeno da alucinação, por sua vez, torna a ferramenta um tanto quanto perigosa. Este risco é concreto e pode ser ilustrado a partir de notícias recentes, a exemplo da que foi recentemente veiculada aqui no ConJur, de que o “CNJ vai investigar juiz que usou tese inventada pelo ChatGPT para escrever decisão”. Neste caso, a sentença judicial foi fundamentada em um precedente jurisprudencial falso, atribuído ao Superior Tribunal de Justiça, o qual foi inventado pela IA generativa [4].
A novidade é que uma segunda onda de difusão de inovação na área da IA generativa, com alto impacto sobre a operação do Direito, ensaia suas primeiras aparições.
São os assistentes jurídicos virtuais (AJVs), construídos a partir de aplicações tecnológicas que integram os “motores” da IA generativa tradicional (por exemplo, o GPT 4.0 ou o GPT 4o) ao “combustível” dos bancos de dados especializados com as fontes de Direito (normas, jurisprudência, doutrina).
A diferença é que esses assistentes virtuais “raciocinam” obrigatoriamente sobre um banco de dados especializado e – o que é absolutamente relevante – controlado. Desta forma, os dois importantes problemas na aplicação da IA generativa ao Direito (os problemas do black-box e da alucinação) são mitigados.
Um exemplo real e prático
Veja-se uma comparação real entre uma resposta dada pelo assistente virtual do ChatGPT 4.0, da OpenAI, e uma resposta dada pelo assistente jurídico virtual (AJV) da Schief.ai, especializado em licitações públicas e contratos administrativos. Disclosure: sou um dos criadores desta plataforma, projeto sobre o qual venho me dedicando nos últimos meses.
Diante de uma mesma questão hipotética sobre licitação pública, temos duas respostas bastante ilustrativas do que denominei como a “primeira onda” e a “segunda onda” de difusão e impactos da IA generativa sobre o Direito.
Veja-se o exemplo.
Questão apresentada: “Objetivamente, um atestado de limpeza predial pode ser usado numa licitação para comprovar experiência em limpeza hospitalar?”.
Resposta do assistente virtual tradicional com IA generativa [5]: “Objetivamente, um atestado de limpeza predial geralmente não é considerado suficiente para comprovar experiência em limpeza hospitalar em processos de licitação. Isso ocorre porque a limpeza hospitalar requer conhecimentos e práticas específicas devido à necessidade de controle de infecções e uso de técnicas e produtos adequados para ambientes de saúde, que são significativamente diferentes das exigências de limpeza predial comum”.
Resposta do assistente jurídico virtual (AJV) com IA generativa integrada a um banco de dados especializado [6]: “Não, um atestado de limpeza predial não pode ser utilizado para comprovar experiência em limpeza hospitalar em um processo de licitação. Conforme estabelecido nos Acórdãos nº 1697/2023-Plenário e nº 0938/2014-Plenário do Tribunal de Contas da União, “limpeza hospitalar não é atividade compatível em características com limpeza predial comum”, dado que a limpeza em ambientes hospitalares requer especializações específicas por envolver áreas que demandam rigorosos padrões de higiene e controle de infecções”.
Note-se que, na primeira resposta, embora o ChatGPT 4.0 “acerte a resposta”, ela se assemelha a uma mera opinião, pois não há referência à fonte de conhecimento utilizada (problema do black box). Se o usuário insistir e solicitar que precedentes jurisprudenciais sobre o assunto sejam apresentados, há grande probabilidade de que o sistema invente este precedente (problema da alucinação). Inclusive, no teste que realizei durante a confecção deste artigo, houve essa alucinação: foi inventado um falso precedente do TCU [7].
Na segunda resposta, nota-se bem a diferença que o banco de dados especializado integrado à IA generativa é capaz de prover. Neste caso, ambos os problemas teóricos da IA generativa tradicional foram neutralizados. Foi apresentada a fonte de direito (precedentes jurisprudenciais do TCU) utilizada para a fundamentação jurídica elaborada pelo assistente (resolvendo o problema do black box) e, no caso, os precedentes jurisprudenciais apresentados eram verdadeiros (afastando o problema da alucinação).
A chegada da “calculadora” para os operadores do Direito
Uma calculadora é uma ferramenta indispensável para as ciências exatas. Na engenharia, permite cálculos rápidos e precisos, essenciais para a integridade dos projetos e para garantir a produtividade do engenheiro.
Valendo-me de uma analogia, os assistentes jurídicos virtuais (AJVs), construídos sob esta integração entre IA e big data, são para os operadores do Direito o equivalente a uma calculadora para os Engenheiros. É uma nova forma de interagir com o conhecimento existente. Uma nova forma de planejar, pesquisar e redigir conteúdos jurídicos. Em suma, uma inovação capaz de trazer aumento de qualidade e de produtividade na operação do Direito.
Tal como uma calculadora impacta quem opera a “linguagem” da matemática, a adoção da IA generativa nas atividades intelectuais se destaca pela capacidade de melhorar imediatamente o desempenho individual dos colaboradores que utilizam o sistema, sem a necessidade de investimentos substanciais em tecnologia ou em esforços organizacionais [8]. A propósito, considerado o potencial de melhoria dos resultados nos trabalhos técnicos, surge a defesa de que as faculdades de direito ensinem seus alunos a utilizar as ferramentas de IA generativa para realizar pesquisa jurídica e redação de textos [9].
A calculadora é uma ferramenta de caráter assistencial. Essa tecnologia não substituiu o operador da matemática ou da engenharia, seja ele mais ou menos especializado. Em verdade, a calculadora (pense na calculadora científica) empoderou seus operadores e permitiu a evolução exponencial do uso da matemática e de todas as ciências exatas derivadas, viabilizando, inclusive, a criação da própria inteligência artificial generativa, inteiramente construída sobre cálculos probabilísticos.
E assim como a calculadora não substituiu, mas transformou a relação dos matemáticos e engenheiros com os cálculos, os assistentes jurídicos virtuais (AJVs) também não substituirão os juristas e operadores do Direito.
[1] ROGERS, Everett M. Diffusion of Innovations. 3rd ed. New York: The Free Press, 1983.
[2] WOLTERS KLUWER. 2023 Future Ready Lawyer Survey Report.
[3] DELL’ACQUA, Fabrizio et al. Navigating the Jagged Technological Frontier: Field Experimental Evidence of the Effects of AI on Knowledge Worker Productivity and Quality. Harvard Business School Working Paper, No. 24-013, September 2023.
[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-12/cnj-vai-investigar-juiz-que-usou-tese-inventada-pelo-chatgpt-para-escrever-decisao/
[5] Resposta completa disponível em: https://prnt.sc/f4J_iTaO-udL
[6] Resposta completa disponível em: https://prnt.sc/98-MocIiDXU6
[7] Disponível em: https://prnt.sc/gTmx-c4GUKkI
[8] DELL’ACQUA, Fabrizio et al. Navigating the Jagged Technological Frontier: Field Experimental Evidence of the Effects of AI on Knowledge Worker Productivity and Quality. Harvard Business School Working Paper, No. 24-013, September 2023, p. 3
[9] Schwarcz, Daniel B. and Choi, Jonathan H., AI Tools for Lawyers: A Practical Guide (March 29, 2023). 108 Minnesota Law Review Headnotes (forthcoming, 2023), Minnesota Legal Studies Research Paper, Disponível em: https://ssrn.com/abstract=4404017 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4404017
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