Opinião

Jurisprudência eleitoral e 'apagão das palavras': nuances da pré-campanha

Autores

  • Jamil Nascimento Junior

    é advogado bacharel e mestre em Direito pela USP doutorando em Direito pela Unesp e especialista em Direito Empresarial pela FGV/SP.

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  • Augusto Fargoni Bergo

    é advogado graduando em Ciências Sociais pela Unesp bacharel em Direito pela Universidade de Araraquara aluno especial no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP na disciplina Aportes da Antropologia Jurídica na discussão para o Direito (ministrada pelo prof. dr. Orlando Villas Bôas Filho) e pesquisador científico do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Neti-USP) coordenado pelo prof. dr. Wagner Menezes.

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9 de junho de 2024, 6h33

Introdução

A poucos meses do período oficial das eleições municipais de 2024, o tema da propaganda antecipada invade os juízos das zonas eleitorais desafiando o Poder Judiciário a se manifestar sobre a legalidade de atos de pré-campanha. Isso se tornou ainda mais complexo diante de uma suposta plasticidade – ao nosso sentir inexistente – da jurisprudência das “palavras mágicas” adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral ao analisar a ilegalidade de propagandas extemporâneas.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ancorados em uma abertura conceitual criada pelo imaginário do jurista, pretensos opositores digladiam entre si por meio de representações em que alegam ilegalidade em ato de pré-campanha, aduzindo que a comunicação veiculada realizou o pedido explícito de voto por meio de magic words.

É urgente que se reafirme a preferência da liberdade de expressão e que o debate político público entre eleitores e pretensos candidatos durante pré-campanha ocorra como regra, fortalecendo a democracia brasileira. Da forma como está se desenhando, em breve o temido chilling effect ocorrerá, criando o “apagão das palavras” [1] no período que antecede ao pleito, reduzindo o exercício efetivo da discussão política a 45 dias a cada dois anos.

Por isso, defende-se neste ensaio que não existe mágica alguma que afaste os valores democráticos e a liberdade de manifestação que permeiam a pré-campanha, sendo ainda elemento da materialidade do ilícito eleitoral a existência de pedido explícito de voto, seja feito por meio do enunciado “vote em” ou por equivalente semântico.

Disciplina jurídica da pré-campanha: da Lei nº 12.034/2009 ao REsp 5.124/MG

Durante muito tempo os atos de pré-campanha foram duramente reprimidos pelo ordenamento. Antes da vigência da Lei nº 12.034/2009, quando as campanhas ainda iniciavam em 5 de julho do ano eleitoral com prazo extenso de duração, o cenário vivenciado era da desfaçatez coletiva de campanhas secretas. Qualquer manifestação pública, implícita ou explícita, subliminar ou não, que estivesse ligada a uma campanha eleitoral, mesmo que a candidatura não se concretizasse, era considerada propaganda eleitoral antecipada digna de sanção.

A incompatibilidade constitucional entre a restrição absoluta aos atos de pré-campanha e o exercício da liberdade de expressão pressionou a alteração legislativa, introduzindo, pela Lei 12.034/2009, o artigo 36-A na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997).

Este foi o primeiro passo para criação de uma zona de licitude em pré-campanha, inicialmente por meio de rol taxativo de condutas autorizadas. Sobreveio, sequencialmente, a Lei nº 12.891/2013 ampliando ainda mais a arena de legalidade da pré-campanha, deixando evidente que o legislador pretendia estimular o debate político público antes do período oficial. Essas alterações sequer chegaram a ser aplicadas efetivamente nas eleições de 2016, tendo em vista nova modificação do sistema eleitoral pela reforma de 2015 (Lei nº 13.165/2015).

Spacca

Ao final, pela sequência de modificações legislativas (Lei nº 12.891/2013 e Minirreforma Eleitoral de 2015), duas alterações substanciais modificaram a lógica da pré-campanha: (1) de um lado, a propaganda eleitoral passou a ser autorizada somente após o dia 15 de agosto do ano da eleição, não mais 5 de julho, reduzindo o tempo de exposição do eleitor ao debate eleitoral; (2) de outro, como contrapartida, consolidou-se de uma vez por todas, na Lei nº 9.504/1997, um espaço de maior liberdade de manifestação e circulação de ideias antes do período oficial de campanha, de forma que o reduzido período eleitoral não impactasse em déficit de cidadania e participação democrática dos eleitores.

Essa legalidade de propaganda em pré-campanha, apesar de clara na reforma de 2015, foi confirmada em leading case julgado pelo TSE em 2016, no REsp 5.124, de relatoria do ministro Luiz Fux.

Na oportunidade, a Corte Eleitoral definiu que a propaganda antecipada ilícita seria somente aquela que houvesse o pedido explícito de voto. Isso porque, e neste momento descendo um pouco mais no precedente, a liberdade de manifestação tem posição preferencial dentro do arquétipo constitucional das liberdades (preferred positions), o que se aplica à arena eleitoral, na medida em que a liberdade de se manifestar é pressuposto do exercício da democracia.

Por evidente, como todo direito fundamental, essa liberdade não é absoluta. Apesar de sua posição preferencial, consignou o ministro Luiz Fux, a liberdade de expressão poderá ser regulada — por lei do Parlamento ou ato normativo do TSE —, desde que exista proporcionalidade, o que é comum em toda regulação de direitos fundamentais no Estado de Ponderação inaugurado pela Constituição.

Assim sendo, é legítimo que se restrinja a liberdade de expressão, desde que “[…] seja para promover uma maior equalização de forças entre candidatos e partidos, seja para evitar interferências indevidas no processo de deliberação coletiva e no próprio resultado do pleito” [2]. Por ser expressão da racionalidade nas eleições pós-2015, é relevante o transcrito do leading case em referência:

[…] Se passarmos a reprimir esses métodos alternativos de divulgação de propostas e plataformas políticas, a Justiça Eleitoral contribuirá negativamente para o esvaziamento integral do período democrático de debates (para alguns, denominado de pré-campanha) instituído pela Lei n° 13.165/2015, na medida em que aniquilará, sem qualquer lastro constitucional ou legal, a interação que deve ocorrer entre os pretensos candidatos e os cidadãos. Pior: produzirá um chilling effect nesses pretensos candidatos, tamanho o receio de verem suas mensagens e postagens qualificadas como propaganda extemporânea. Teremos, assim, apenas candidatos-surpresa – aqueles que exsurgem apenas e tão somente às vésperas do pleito. E esse modelo, decerto, antes de fortalecer, amesquinha a democracia [3].

Esta lógica operacional do sistema eleitoral não foi alterada pela reforma de 2017 em relação ao artigo 36-A da LE. Nem poderia tê-la sido, já que em um Estado democrático a Corte Eleitoral não adotaria perspectiva restritiva ao debate político eleitoral público entre eleitores e pretensos candidatos, sendo profícua a desejável que a relação se estabeleça para que os cidadãos se preparem para o pleito, conhecendo as plataformas políticas e ideais de cada um que se julgue apto a ser mandatário de poder.

Sedimentou-se, assim, zona de certeza jurídica sobre a licitude dos atos de pré-campanha, fomentando o debate político antes do período oficial, vedando, contudo, o pedido explícito de voto compreendido na expressão “vote em”.

Jurisprudência das ‘palavras mágicas’ e perigo da abertura do conceito

Se de um lado o precedente foi um avanço significativo em segurança jurídica aos pretensos candidatos, de outro, apesar da profundidade dos fundamentos deste leading case, seguiu-se a partir de então debate reducionista em típico blinding stare decisis, replicando irrefletidamente parte da ementa do precedente que considerava o pedido explícito quando identificada a expressão “vote em”.

Todavia, certo é que a densidade normativa do artigo 36-A da LE e os fundamentos do próprio leading case mencionado vão além da simples identificação de um pedido expresso de voto ou não voto caracterizado pelo enunciado específico. É esdruxulo imaginar que bastaria o pré-candidato substituir o “vote em mim” para “me apoie nas urnas” para descaracterizar o pedido explícito. Em ambos os casos o pleito por sufrágio foi expresso.

Não por outra razão, precedentes recentes, pós-2022, do TSE têm considerado ilícita não somente a comunicação extemporânea contendo o enunciado “vote em”, como também toda aquela que envolver “palavras mágicas” que tenham o mesmo significado.

Neste ponto é que se visualiza o perigo. Justamente na expressão “palavras mágicas”.

Mais uma vez a decisão da Corte Eleitoral vem sendo utilizada pelos operadores sem critério, ao ponto de se cogitar a superação pelo TSE no REsp 5.124, em suposto overruling promovido por essa moderna jurisprudência das “palavras mágicas”.

Apesar de a decisão esposar que o ilícito não é somente a comunicação de pré-campanha que veicule o “vote em”, mas também expressões sinônimas ou com a mesma conotação, parte significativa dos operadores tem se valido de uma suposta plasticidade do conceito “palavras mágicas” para sustentar que a tese do REsp 5.124, e o próprio artigo 36-A LE, foram sido reformulados para reduzir a zona de liberdade da pré-campanha.

Isso não ocorreu

A regra ainda é a preferência pela liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, e a autorização democrática para início do debate político antes dos 45 dias que antecedem o pleito, vedando-se somente o pedido de votos de forma explícita. A todo pretenso candidato, portanto, é autorizado que realize a pré-campanha, inclusive mencionando expressamente que se trata de pré-candidato, participando de debates, expondo projetos políticos e, inclusive, pedindo apoio político. O que se alterou foi a interpretação de que o pedido explicito de voto seja somente aquele em que a comunicação veicula expressão como “vote em” ou “não vote em”.

Os sinônimos, por força da semântica da língua português e não por criação jurisprudencial, também caracterizam o pedido explícito.

Por isso, repita-se, a regra na pré-campanha ainda é a liberdade de expressão do pretenso candidato, sendo autorizado pelos fundamentos da democracia a manutenção de debate político construtivo com eleitorado, tal qual consignou o ministro Luiz Fux no REsp nº 5.124, sendo vedado o pedido explícito de votos pelo uso de expressão “vote em” e seus equivalentes semânticos.

Tanto é que o ministro Luis Roberto Barroso, relator do Agravo Regimental Em Recurso Especial Eleitoral 2.931/RJ, mesmo aplicando a concepção das “palavras mágicas”, expressamente menciona Leading case de relatoria do ministro Luiz Fux (REsp 5.124) para ratificar o posicionamento da corte de que o legislador ao introduzir o artigo 36-A da LE ampliou a liberdade de expressão no período pré-eleitoral, não cabendo, sem fundamento constitucional legítimo, conferir interpretação restritiva ao direito fundamental.

O que fez o ministro, na ocasião, foi somente esclarecer que por pedido explícito se entende a expressão “vote em” e seus sinônimos, como “eleja” ou “apoie”.

Da mesma forma, na Representação nº 060002671/DF, o ministro Alexandre de Moraes também ratificou o entendimento de que o pedido explícito de voto ou não voto está atrelada a mesma carga semântica, sendo esta a concepção de “palavras mágicas” [4].

Essa discussão jurisprudencial foi incorporada pela Resolução TSE nº 23.732/2024 que introduziu o parágrafo único ao artigo 3º-A da Resolução 23.610/2019: “O pedido explícito de voto não se limita ao uso da locução “vote em”, podendo ser inferido de termos e expressões que transmitam o mesmo conteúdo”.

Daí não existir mais dúvidas de que as “palavras mágicas” não funcionam, ou ao menos não deveriam funcionar, como uma zona de insegurança jurídica que autoriza o avanço discricionário – e até abusivo – sobre a liberdade de pretensos candidatos e eleitores. Não se pode subverter a jurisprudência das palavras mágicas que se instaurou a partir de meados de 2022 para reintroduzir um análogo “Estado de Sítio de Pré-campanha” cuja superação se iniciou em 2009, retrocedendo no avanço democrático experimentado pelo debate pré-eleitoral.

Riscos de chilling effects e ‘apagão das palavras’ em pré-campanha

A liberdade de expressão ainda é direito fundamental preferencial que dá substrato à democracia, sendo intrínseco à redução do tempo de campanha promovida em 2015 a ampliação da possibilidade de debates prévios ao período oficial. É salutar que se estimule o diálogo, a divulgação de pré-candidaturas, das plataformas de governo defendidas, as opiniões dos candidatos, dentre outros.

Inclusive, o ministro Luís Roberto Barroso, mencionando decisão do ministro Luiz Fux no AgR-AI nº 9-24, repisa que o ilegal ainda é o pedido explícito, aquele feito diretamente, sem insinuações, que “pressupõe a existência de um ato de comunicação frontal e retilíneo, o que exclui o sugerido, o denotado, o pressuposto, o indireto, o latente, o sinuoso e o subentendido” [5].

Assim sendo, os atos de pré-campanha são presumidamente lícitos.

Não se alteram os valores democráticos em um passe mágica, até mesmo porque “palavra mágica” sequer é conceito jurídico, não havendo espaços para metonímias no direito. A expressão não altera o cenário jurídico de presunção de legalidade de atos de pré-campanha.

A única mágica que a utilização aberta e abstrata que expressão ocasionou foi uma viagem no tempo, retrocedendo ao passado para criar zona de incerteza e insegurança jurídica, muito em razão da irrefletida aplicação da jurisprudência da Corte Eleitoral pelos operadores em geral. Com isso, tornou passível de representação toda e qualquer comunicação mantida entre pré-candidatos e eleitores, bastando uma simples ginástica hermenêutica para fazer crer que o seu pretenso oponente usou palavra mágica.

Por um viés pragmático, essa interpretação alargada no direito público tende a gerar fenômeno semelhante ao apagão das canetas na esfera administrativa. Por medo de se comunicar com o eleitor, o pretenso candidato incorrerá em “apagão das palavras”, em típico chilling effect, mantendo-se calado até o dia 16 de agosto do ano eleitoral por medo de penalidade. O debate político, neste contexto, com prazo certo para início e fim, limitará o exercício da democracia a exíguos 45 dias.

Ou ainda, outra consequência, diante do teto legal da multa, fazer o ilícito valer a pena, praticando verdadeiro pedido explícito, direto e reto, em que o benefício eleitoral em se praticar o ilícito eleitoral seja compensador. Dito de outra forma, já que toda comunicação gera risco de sanção, que o ato ilícito seja praticado de forma planejada visando máximo benefício eleitoral em detrimento de outros pretensos participantes.

Ambas as situações são degenerações da democracia, seja por déficit de debate político seja por desnivelamento de igualdade de condições entre players.

Por essas razões, é urgente que se compreenda que a utilização “palavras mágicas” utilizada no TSE não se traduz em conceito fluído e mutável por conveniência. A materialidade da ilicitude da propaganda extemporânea ainda depende do pedido explícito, compreendendo este como a expressão “vote em” e seus equivalentes semânticos. Sem mágica, com segurança jurídica e fortalecimento do debate democrático.

 


[1] Faz alusão à expressão “apagão das canetas” causada pelo direito administrativo do medo em que, por receio de sofrer sanção de órgãos de controle, o gestor público opta por não agir e não implementar soluções criativas para concretização de políticas públicas.

[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 5124/MG, Relator(a) Min. Luiz Fux, Acórdão de 18/10/2016, Publicado no(a) Publicado em Sessão, data 18/10/2016

[3] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 5124/MG, Relator(a) Min. Luiz Fux, Acórdão de 18/10/2016, Publicado no(a) Publicado em Sessão, data 18/10/2016

[4] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação 060002671/DF, Relator(a) Min. Alexandre de Moraes, Acórdão de 20/10/2023, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 231, data 23/11/2023

[5] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental Em Recurso Especial Eleitoral 2931/RJ, Relator(a) Min. Luís Roberto Barroso, Acórdão de 30/10/2018, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 238, data 03/12/2018, pag. 97-98

Autores

  • é advogado, membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral da OAB-SP, doutorando em Direito pela Unesp, mestre e bacharel em Direito pela USP, especialista em Direito Empresarial pela FGV-SP e pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Governança dos Serviços Públicos

  • é advogado, graduando em Ciências Sociais pela Unesp, bacharel em Direito pela Universidade de Araraquara, aluno especial no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, na disciplina Aportes da Antropologia Jurídica na discussão para o Direito (ministrada pelo prof. dr. Orlando Villas Bôas Filho) e pesquisador científico do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Neti-USP), coordenado pelo prof. dr. Wagner Menezes.

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