Embargos Culturais

Capítulos de história constitucional: Simon Bolívar e a Carta da Jamaica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

    View all posts

9 de junho de 2024, 8h00

Em A Letra da Lei, de Linda Colley, livro que não me canso de recomendar, pelos insights da autora no tema da história do constitucionalismo, há provocativas referências à “Carta da Jamaica”, de Simón Bolívar. Escrita provavelmente em 1815, e endereçada a um comerciante jamaicano, Henry Cullen, trata-se — segundo Colley — de um dos textos fundadores da independência sul-americana. Bolívar revela-se também como um estrategista do constitucionalismo.

Sua luta é acompanhada de permanente reflexão, em forma de uma também permanente formulação de alternativas normativas para a construção do modelo político que tinha em mente. Não se pode negar um jacobinismo bolivariano.

Ligado às histórias da Venezuela, da Bolívia, do Equador, do Panamá e do Peru, Bolívar concebia uma unidade política centrada na língua espanhola, na religião católica e nas ideias iluministas. Bolívar indignava-se com a prepotência espanhola; exatamente como se lê em fragmento da carta:

“E a Europa civilizada, comerciante e amante da liberdade, permite que uma velha serpente envenenada, devore a mais bela parte de nosso globo? O quê! Está a Europa surda ao clamor de seu próprio interesse? Já não tem olhos para ver a justiça? Tanto endureceu, para ser desse modo insensível? Estas questões, quanto mais as medito, mais me confundem; chego a pensar que se aspira a que desapareça a América; mas é impossível, porque toda a Europa não é a Espanha”.

A “Carta da Jamaica”, também conhecida como “Carta Profética” foi traduzida e publicada no Brasil pela Ática, em compilação dos escritos de Bolívar, organizada por Manoel Lelo Bellotto e Anna Maria Martinez Corrêa. A “Carta” é um documento de exílio, escrito quando Bolívar esteve em Kingston.

Inspiração

O pensamento político contido na carta (especialmente quanto ao republicanismo, como se verá mais adiante) influenciou várias constituições latino-americanas que se construíram no desdobramento das guerras de independência.

Spacca

Na carta Bolívar trata do tema de sua vida: as dificuldades que a Espanha impunha às colônias latino-americanas. A liberdade era enfrentada com violência do poder colonial. A Espanha seguia a política do “dividir para reinar”, forçando a fragmentação política latino-americana como forma de manutenção de seu domínio. Bolívar era um fortíssimo crítico do colonialismo, que entendia como o maior entrave para o desenvolvimento das colônias espanholas.

A essa política colonial Bolívar opunha uma perspectiva de integração, convocando a unidade regional. Do ponto de vista dos arranjos constitucionais cogitava de uma confederação. Com concessões para algumas demandas locais, insistia na união latino-americana como instrumento de garantia de estabilidade. Paradoxalmente, à independência que seguiu, a instabilidade seria um dos pontos mais recorrentes.

Como se lê no fragmento da carta acima reproduzido Bolívar contava com uma solidariedade internacional. Acredita que Inglaterra, França e Estados Unidos, cada uma desses países por razões peculiares, apoiariam a guerra conta a metrópole. Nesse ponto, não há como se negar que Bolívar era um visionário.

Autoritarismo e desobediência civil

Refratário ao regime monárquico, Bolívar insistia em um governo republicano, como mecanismo de defesa de direitos e de liberdades, posição que fica muito nítida na leitura cautelosa da carta. Bolívar era indiscutivelmente autoritário, ainda que cogitasse de fórmulas para superar a tensão entre autoridade e liberdade. Esse problema parece ser recorrente na história política latino-americana.

Na tentativa de se construir uma história inteligível do constitucionalismo latino-americano, sem os preconceitos que marcam a empreitada, há necessidade de que busquemos a essência do pensamento político do “Libertador”, do “Pai” de várias pátrias, figura paradoxal que advogava, ao mesmo tempo, o autoritarismo e o direito à desobediência civil.

A leitura dos escritos políticos de Bolívar (recomendo a leitura e os comentários de Jaime Urueña Cervera) nos confirma que o libertador conhecia o pensamento de John Adams, de Montesquieu, de Volney e de Benjamin Constant, de cuja autoridade intelectual era um legatário. Bolívar incentiva que estudemos, no campo do constitucionalismo, a teoria das transposições, isto é, o modo como ideias e arranjos institucionais de lugares de cultura diferente das nossas são transpostas e adaptadas.

A experiência de recepção do constitucionalismo europeu na América Latina é um capítulo fascinante desse processo. Bolívar, no proscênio dessa história, repudiava a união entre Igreja e Estado, e esse é um de seus legados. Ao que consta, foi exumado para uma tentativa de se compreender as razões de sua morte. O resultado do exame de sua ossada teria sido inconclusivo, ainda que conclusivo seja seu legado inspirador para a causa latino-americana.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!