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ADPF 1.107: não à sobrevitimização das mulheres no processo penal

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8 de junho de 2024, 8h00

Em 23 de maio de 2024, a uma só voz, no julgamento emblemático da ADPF 1.107 (relatora ministra Cármem Lúcia), o plenário do STF disse não à sobrevitimização das mulheres no processo penal. Trata-se de inegável avanço civilizatório, uma vez que a implementação de uma jurisdição com lentes de gênero é importante passo para não perpetuação da cultura patriarcal na Justiça Criminal.

SBT News

O Estado moderno avocou para si o monopólio do ius puniendi e estabeleceu-se, em regra, como titular do ius accusationis de um processo penal caracterizado pela indiferença quanto aos interesses da vítima [1], tratada, em regra, em um viés utilitarista como mera fonte de prova para a formação da convicção judicial sobre a culpabilidade do acusado [2].

Somente em meados do século 20, após as guerras mundiais e o afloramento da temática dos direitos humanos, a literatura jurídica penal, em razão dos estudos da vitimologia, lançou olhares para o famigerado fenômeno da vitimização secundária: o tratamento dispensado às vítimas pelas instâncias formais de controle pode acarretar danos semelhantes ou superiores aos causados pela incidência do crime.

Os altos índices de violência contra a mulher descortinam, para além da conflitualidade entre o agressor e a vítima, um modelo de sociedade que normaliza a violência de gênero. Não é incomum que esta arraigada cultura patriarcal se projete nos meandros do processo penal, razão pela qual o problema da revitimização sobreleva-se em crimes dessa natureza.

Em uma consulta ao léxico, sem olvidar que todo “ismo” configura uma redução e tentativa de enquadramento pedagógico de pensamentos plurívocos mais ou menos análogos (os tipos ideais weberianos descritivos de fenômenos sociais [3]), denota-se que feminismo é o “movimento favorável à igualdade dos direitos civis e políticos entre a mulher e o homem” [4].

Feminicídio, cultura do estupro, assédio sexual e moral, dentre outros crimes, são resultado das relações desiguais entre homens e mulheres, nas quais comportamentos machistas, ainda que tipificados como delitos, são aceitos com naturalidade por parte da comunidade e tratados com leniência por alguns agentes públicos responsáveis pela persecução penal [5].

Lei Maria da Penha foi a origem

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No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) fundamentalmente operou um alavanque normativo no combate à violência de gênero, seguidas por outras alterações legislativas importantes, como a criação do instituto penal do feminicídio (Lei nº 13.104/2015), a criminalização da importunação sexual (Lei nº 13.718/2018), a tipificação penal dos crimes de perseguição (Lei nº 14.132/2021) e violência psicológica (Lei nº 14.188/2021), a adoção de medidas diversas para a preservação da dignidade da vítima no curso do processo (Lei 14.245/2021), a regulamentação do Programa de Prevenção e Enfrentamento aos Crimes Sexuais (Lei nº 14.540/2023), o funcionamento ininterrupto das delegacias especializadas de atendimento à mulher (Deam), inclusive em feriados e finais de semana (Lei nº 14.541/2023), inclusão do assédio moral, sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 14.612/2023), bem como o Protocolo “Não é Não”, cujo desiderato é prevenir/combater violência sexual nos setores privados de entretenimento, onde sejam disponibilizadas bebidas alcoólicas (Lei nº 14.786/2023).

Vale ainda destacar os Projetos de Lei nº 638/2022, 115/2023, 291/2023, 539/2023 e 691/2023, todos da Câmara dos Deputados, que pretendem coibir a nomeação para cargos e funções públicas de pessoas que tenham sido condenadas pelos delitos previstos na Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Tais projetos são ferramenta de combate à violência de gênero no âmbito da administração pública, na medida em que se aduz que os autores de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher não detêm a idoneidade moral exigida de um agente público, nos termos do artigo 37, caput, da Constituição.

No âmbito do Judiciário, registramos o julgamento da ADPF 779 [6], no qual o plenário do STF declarou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra nos crimes de feminicídio, bem como a determinação do CNJ no sentido de tornar obrigatório o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Recomendação nº128, de 15/02/22) [7].

O devido cumprimento do referido protocolo, não restrito ao âmbito criminal, é de suma importância, pois os estereótipos podem influenciar na apreciação da relevância de um determinado fato para o julgamento, como quando um(a) julgador(a) minimiza a análise de certas provas, duvida dos relatos das vítimas, supervaloriza os comportamentos da vítima antes do momento da violência, como roupas que usavam, atribui maior peso ao testemunho de pessoas em posição de poder, desacredita os relatos de trabalhadoras quanto às más condições de trabalho ou situações de assédio, nega adoção por casais homossexuais sob o prejulgamento de que ausência de pai ou mãe de um determinado sexo possa resultar em um risco para o desenvolvimento da criança, ou presume negligência com filhos de mãe acusada de tráfico como fundamento para negar prisão domiciliar.

O julgamento da ADPF 1.107 é mais um degrau escalado em prol do combate à violência de gênero. Como dito anteriormente, o desiderato é evitar a revitimização das mulheres no processo penal, prática que, em que pese incontestavelmente deletéria, é recorrente ao longo do tempo.

Nas décadas de 1970 e 1980, respectivamente, Ângela Diniz [8] e Márcia Barbosa de Souza foram brutalmente assassinadas, e a defesa dos réus valeu-se (indevidamente) do modo de vida das vítimas para retratá-las (injustamente) como responsáveis pelo comportamento criminoso dos seus algozes. O caso da Márcia, diga-se de passagem, rendeu ao Brasil uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violência processual e aplicação de estereótipos de gênero durante as investigações. Recentemente, mais precisamente em 2020, Mariana Ferrer teve sua dignidade ultrajada pelo advogado do réu em audiência de instrução, com a leniência dos demais integrantes do sistema de Justiça. Esses exemplos emblemáticos atestam a importância da ADPF 1.107.

Diretrizes para prevalecer a dignidade sexual

A Corte Suprema, ao decidir pela inconstitucionalidade do questionamento do comportamento da vítima que teve sua dignidade sexual vilipendiada ou a própria vida ceifada — as vedações valem para todos os crimes de violência contra a mulher, e não apenas para os crimes sexuais —, fixou quatro diretrizes doravante explicitadas.

Em primeiro plano, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 59, caput do Código Penal [9] e 400-A do Código de Processo Penal, no sentido de vedar que as partes ou seus procuradores façam referência “à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento”.

O referido artigo 400-A foi incluído no Código de Processo Penal por intermédio da Lei 14.245/21, com a seguinte redação:

Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:  I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

De fato, a vedação de referência às circunstâncias alheias ao fato supostamente delituoso é genérica e vaga, abrindo flanco para decisionismos, razão pela qual foi fundamental que o STF conferisse interpretação conforme à Constituição para delimitar os contornos de incidência dessa norma legal.

A vedação de menções à vivência sexual pregressa da vítima vai ao encontro de premissas já ventiladas em nosso ordenamento jurídico, por intermédio da Súmula 593 do STJ [10], bem como da redação ao §5º do artigo 217-A do CP [11] (redação dada pela Lei nº 13.718/18) com relação ao crime de estupro de vulnerável. No julgamento da ADPF 1.107, o STF avançou significativamente ao estender a mesma lógica para todos os crimes cometidos contra as mulheres e ao vedar que essas circunstâncias sequer possam ser mencionadas no processo.

Outrossim, a proibição de se fazer referência às experiências sexuais da vítima ou ao seu estilo de vida nos crimes de violência contra a mulher encontra guarida no dever das partes e de seus procuradores de agirem com urbanidade, boa fé [12] e lealdade processual.

A segunda diretriz lançada no julgamento da ADPF 1.107 foi pela impossibilidade do reconhecimento da nulidade acima aludida nas hipóteses em que a defesa propositadamente incidir nas proibições estabelecidas, porquanto logicamente o réu não pode se valer da sua própria torpeza para se beneficiar. Parâmetro semelhante já tinha sido adotado pelo STF, por ocasião do julgamento da ADPF 779, onde se estabeleceu a inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra”.

O terceiro ponto fixado pela Corte Suprema foi no sentido de conferir interpretação conforme ao artigo 59 do Código Penal, de forma a proibir o(a) magistrado(a) de valorar a vida sexual pretérita da vítima ou o seu modo de vida por ocasião da fixação da pena-base nos crimes sexuais.

Essa orientação, dotada de efeito vinculante, reforça a efetividade do artigo 400 A do CPP, pois seria inócuo que as partes e procuradores fossem vedados de fazer referência à vida sexual pretérita da vítima ou o seu modo de vida, mas tais elementos pudessem ser valorados judicialmente a pretexto da análise do “comportamento da vítima”.

Por derradeiro, o STF estabeleceu ser dever do julgador tomar providências para evitar a revitimização da mulher, combatendo qualquer referência à sua vida sexual pretérita ou ao seu modo de vida, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.

Ainda que a Corte Suprema assim não tivesse decidido expressamente, a obrigação do magistrado de coibir ilegalidades decorre naturalmente do exercício do poder de polícia que lhe recai na condição do presidente do ato judicial. Não obstante, esse dever torna-se mais enérgico quando há previsão expressa de responsabilização do julgador em casos de omissão.

Cultura misógina

Todas as pessoas são afetadas pela cultura misógina que habita, ainda que inconscientemente, dentro de nós. Como bem evidenciou a ministra Cármen Lúcia, as condutas machistas que se perpetuam na sociedade são pujantes a ponto de os avanços legislativos não serem, por si só, suficientes; faz-se necessário combater a discriminação e a violência de gênero contra vítimas de agressões sexuais no dia a dia. Colacionamos excerto das palavras da ministra:

“Essas práticas, que não têm base legal nem constitucional, foram construídas em um discurso que distingue mulheres entre as que ‘merecem e não merecem’ ser estupradas”, afirmou. “Elas se firmaram como forma de relativizar práticas de violência e tolerância na sociedade aos estupros praticados contra mulheres com comportamentos que fugissem ou destoassem do que era desejado pelo agressor.”

É preciso um esforço pessoal para remover os preconceitos e estereótipos impregnados no pensamento coletivo. Falamos cada vez mais de igualdade de gênero, empoderamento feminino, respeito com as mulheres, mas a realidade mostra que a sociedade ainda privilegia os homens, embora imponha o custo de que comprovem sua masculinidade a todo instante.

Temos que despertar para o reconhecimento de que o inconsciente coletivo vem à tona nas nossas percepções e presunções. Assim seremos capazes de nos autovigiarmos e agirmos em prol da evolução da sociedade.

Em arremate, a decisão do STF nos autos da ADPF 1.107 é um marco importante para que os julgamentos criminais sejam desvencilhados de preconceitos de gênero. Entretanto, não se trata da panaceia para o combate da violência de gênero. É preciso que toda a sociedade faça coro à voz da nossa Suprema Corte: não à cultura machista!

 


[1] ANDRADE, Manoel da Costa. A vítima e o problema criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1980, p. 45.

[2] MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Criminología: una introducción a sus fundamentos teóricos. 7. ed. Valencia: Tirant to Blanch, 2013, p. 189.

[3] ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 193

[4] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 2. Ed. Curitiba: Editora Positivo, 2017, p.427

[5] Em audiência, juiz diz que não está “nem aí para Lei Maria da Penha”, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-18/audiencia-juiz-nao-nem-ai-lei-maria-penha, acesso em 28/05/2024.

[6] STF, ADPF 779/DF, Relator Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2023, DJe 05/10/2023

[7] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original18063720220217620e8ead8fae2.pdf, acesso em 28/05/2024

[8] Para conhecimento pormenorizado do caso de Ângela Diniz, recomendamos a oitiva do podcast “Praia dos Ossos”.

[9]   CP, art. 59: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

[10] “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.

[11] “As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo {estupro de vulnerável} aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.

[12] Sobre a extensão da exigência de boa-fé ao processo penal, vide DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Pareceres, V. 2. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 25

Autores

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogada em Brasília, mestra em Direito UFRGS e doutoranda em direito na Uniceub (Brasília).

  • é advogada, sócia do Escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, doutoranda em Políticas Públicas, Constituição e Organização do Estado pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, mestre em Direito, na especialidade Ciências Jurídicas, pela Universidade Autónoma de Lisboa, pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM e bacharel em Direito pelo UniCEUB.

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