Opinião

PEC sobre terrenos de marinha prevê 'privatização' das praias?

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8 de junho de 2024, 13h20

Uma das discussões jurídicas e políticas do momento é sobre uma proposta de emenda constitucional sobre a propriedade dos chamados terrenos de marinha.

Tiago Vidal Dutra/Flickr

Existem vozes afirmando que a PEC em questão vai privatizar as praias; outros afirmam que ela apenas prevê isenção/imunidade de tributos; outros dizem que ela é necessária para o crescimento do país e outros afirmam que ela vai servir para aumentar desigualdades sociais. A discussão tomou um patamar tão grande que chegou a envolver até mesmo artistas, influencers e jogadores de futebol.

Enfim, os questionamentos são vários e o objetivo deste apanhado é, por meio de uma metodologia exploratória e descritiva, responder as dúvidas existentes.

Bens públicos e os terrenos de marinha

Existem dois critérios para definir os bens públicos, quais sejam: o critério da titularidade e o critério da destinação. Pelo critério da titularidade, são públicos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público. Pelo critério da destinação, são públicos os bens destinados para uma finalidade pública.

O Código Civil, ao falar dos bens públicos, afirma: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”.

Desse modo, percebe-se que a legislação brasileira adotou o critério da destinação em relação aos bens públicos.

Entretanto, a jurisprudência entende que também são públicos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração indireta e que estejam afetados para uma finalidade pública.

Assim, podemos dizer que no Brasil são públicos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público e os bens pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Privado integrantes da administração pública e que estejam sendo usados para a prestação de um serviço público.

Desta feita, existem três tipos de bens públicos mencionados pela doutrina (Di Pietro, 2020, p.870) e que estão expressamente previstos na legislação brasileira, quais sejam:

“Art. 99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”.

No mais, os bens públicos possuem as seguintes características: a inalienabilidade, a impenhorabilidade, imprescritibilidade e a não-onerabilidade. Passemos a analisar cada uma delas.

Inalienabilidade: é uma característica específica dos bens de uso comum do povo e dos bens de uso especial, que não podem ser alienados, ou seja, não podem ser vendidos, doados ou trocados. Os bens dominicais, por outro lado, podem ser alienados desde que obedecidos os ditames legais. No mais, caso os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial sejam desafetados eles se tornam dominicais e, assim, podem ser vendidos.

Imprescritibilidade: é uma característica na qual impede que os bens públicos sejam adquiridos por usucapião. Assim, nenhum bem público pode ser adquirido por usucapião, nem mesmo os bens dominicais. Desse modo, caso o poder público abandone um bem público e a pessoa passe anos morando dele, essa última em hipótese nenhuma vai adquirir o bem público por usucapião, diferentemente do que aconteceria caso o bem ocupado fosse privado.

Impenhorabilidade: é a impossibilidade de se penhorar um bem público, seja qual for, para o pagamento de uma dívida, até mesmo porque o poder público paga as suas dividas judiciais, como regra, por meio da sistemática dos precatórios e não por meio da penhora seguida da venda em hasta pública como acontece com os particulares.

Não-onerabilidade: é a impossibilidade do bem público ser dado como garantia. Assim, um bem público não pode ser objeto de penhor, anticrese e hipoteca.

Por fim, o Código Civil afirma o seguinte: “Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”.

Desse modo, é possível ao poder público cobrar pelo uso de um bem público, o que normalmente acontece como forma de arrecadar dinheiro para a sua manutenção, não podendo o poder público visar o lucro com a referida arrecadação.

Feita essas considerações, a Constituição prevê: “Art. 20. São bens da União: VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos”.

Desse modo, atualmente os terrenos de marinha são bens públicos e estão sujeitos a todas as características acima mencionadas, sendo por essa razão que um particular não adquire a propriedade do terreno de marinha, mas sim o seu domínio útil.

Mas o que seriam exatamente os terrenos de marinha? Em artigo nesta ConJur, Gabriela Giacomolli e Raquel Iung afirmam:

“(…) essas áreas são definidas a partir de uma faixa de 33 metros de largura contada a partir da Linha do Preamar Médio de 1831, em toda costa brasileira.

Também são classificados como terrenos de marinha as áreas adjacentes às praias e terras situadas na beira de rios e lagoas que sofrem com a variação das marés” (Giacomolli; Iung, 2023).

Desse modo, trata-se de um conceito antigo e até complexo, mas passível de ser definido por meio de técnicos especializados.

Sendo um bem definido como terreno de marinha, o seu uso pode se dar ou por ocupação ou por aforamento, ambos feitos de forma onerosa, sendo o primeiro uma posse precária e o segundo uma transferência de parte da propriedade para os particulares nos seguintes termos mencionados pelas autoras supracitadas:

“No aforamento, por sua vez, parte da propriedade do terreno de marinha é transferido ao particular. Essencialmente, o domínio pleno do imóvel é dividido em domínio direto (equivalente a 17% da propriedade, que permanece com a União) e domínio útil (que corresponde aos outros 83% atribuído ao particular, chamado foreiro)” (Giacomolli; Iung, 2023).

Assim, na legislação atual, exista uma ocupação ou um aforamento, o terreno de marinha continua sendo um bem público, sujeito às limitações acima mencionadas.

Desta feita, vejamos os principais pontos discutidos agora no parlamento brasileiro.

PEC 3/2022

A Proposta de Emenda Constitucional aqui analisada traz logo em seu artigo primeiro:

“Art. 1º As áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade assim estabelecida:

I – continuam sob o domínio da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais, e as áreas não ocupadas;

II – passam ao domínio pleno dos respectivos Estados e Municípios as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos;

III – passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação desta Emenda Constitucional;

IV – passam ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 (cinco) anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé;

V – passam aos cessionários as áreas que lhes foram cedidas pela União.”

Desse modo, tirando algumas situações específicas nas quais os terrenos de marinha seriam propriedade da União, ou dos estados-membros ou dos municípios, a proposta efetivamente traz a determinação de que a propriedade seja repassada aos foreiros, ocupantes e cessionários.

Assim, a partir do momento em que o texto atual da Constituição prevê que os terrenos de marinha são propriedade da União, quando a proposta prevê que eles passarão para particulares, temos sim um bem público se tornando privado, ou seja: é correto afirmar que a proposta prevê a privatização de bens público, incluindo praias.

A realidade proposta é preocupante porque, ao deixar de ser público, os terrenos de marinha vão se tornar em sua plenitude alienáveis, prescritíveis, penhoráveis e passíveis de oneração.

Além disso, como a proposta fala em “domínio pleno”, deixam de incidir em relação aos bens os princípios da administração pública, como o princípio da supremacia do interesse público e os referidos bens acabam ficando sujeitos apenas aos interesses privados de seus proprietários.

Frise-se, outrossim, que a proposta também prevê:

“Art.1º § 1º: § 1º A transferência das áreas de que trata este artigo será realizada de forma: I – gratuita, no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social e das áreas de que trata o inciso II do caput deste artigo; II – onerosa, nos demais casos, conforme procedimento adotado pela União nos termos do art. 3º desta Emenda Constitucional.

Art. 3º (…)

Parágrafo único. Nas transferências de que trata o inciso III do caput do art. 1º desta Emenda Constitucional, serão deduzidos os valores pagos a título de foros ou de taxas de ocupação nos últimos 5 (cinco) anos, corrigidos pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic)” (grifos do articulista).

Assim, a regra é que a transferência seja onerosa, mas os foreiros e os ocupantes poderão deduzir os últimos cinco anos pagos a título de foro ou taxa, o que na prática pode implicar em uma transferência gratuita ou por um custo muito baixo.

Desse modo, a proposta efetivamente permite a privatização de bens públicos, incluindo praias, para particulares até mesmo de forma gratuita ou por baixo preço, fazendo com que os referidos bens passem integralmente para um regime de direito privado, o que é algo muito preocupante e que, de fato, pode implicar em uma desigualdade de acesso às praias brasileiras.

Frise-se, outrossim, que o projeto também prevê:

“Art. 2º Fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio, a partir da data de publicação desta Emenda Constitucional.”

Existem diversas vozes defendendo a PEC em testilha sob o argumento de que a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio na transferência de bens baseados na Linha do Preamar Médio de 1831 não se justificaria. Essa discussão, de fato, deve existir e deve ser baseada no impacto orçamentário que o fim da referida cobrança implicaria. O impacto seria ínfimo? Nesse caso provavelmente o fim da cobrança se justificaria. O impacto seria grande? Nesse caso o fim da cobrança talvez não se justificasse.

Entretanto, a discussão do último parágrafo não é a única existente na PEC 03/2022, pois, conforme visto, ela efetivamente visa permitir a privatização de bens públicos, no caso, até mesmo de bens de uso comum do povo, como é o caso das praias.

Conclusão

Infelizmente, diversas praias do Brasil não possuem sol na atualidade por causa de espigões de concreto construídos em avenidas situadas na beira do mar, o que, diga-se, encarece sobremaneira o metro quadrado do imóvel.

Por outro lado, é fato que a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio com base na Linha do Preamar Médio de 1831 é algo estranho e que precisa ser discutido pela sociedade.

Entretanto, não é razoável que uma discussão sobre a cobrança de tributos abra a possibilidade de privatização de bens públicos, incluindo as praias brasileiras.

Enfim, respeitando o equilíbrio das contas públicas, sempre é saudável discutir a diminuição de tributos, mas que isso não implique em menos mar para todas e todos.

 


REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 33ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020

GIACOMOLI, Gabriela; IUNG, Raquel. Apontamentos sobre o direito de ocupação dos terrenos de marinha. São Paulo: ConJur, 2023.

 

 

 

 

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