Paradoxo da Corte

Vicissitudes históricas do precedente judicial no direito brasileiro

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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7 de junho de 2024, 8h00

A coluna de hoje é destinada a informar os profissionais do direito mais jovens, para que não alimentem a falsa ideia de que o sistema de precedentes judiciais no atual direito brasileiro tenha recebido alguma influência do commom law. Sempre tivemos, desde o Brasil independente, um sistema próprio, inspirado nos assentos do direito lusitano. Até mesmo o cotejo (distinguish) entre julgados e a superação (overrruling) de precedentes pela obsolescência também não apresentam qualquer novidade extraída da doutrina jurisprudencial dos países cujo direito é precipuamente regido pela atividade judicante dos tribunais.

Spacca

Com efeito, foi a partir do Regulamento 737, de 1850, que o Brasil passou a ter leis próprias em matéria de organização judiciária e de processo civil, embora não houvesse qualquer texto legal que tivesse disposto sobre o valor dos precedentes judiciais para suprir eventuais lacunas da lei e, muito menos, para prevenir divergência em casos semelhantes.

Como não podíamos contar com um acervo jurisprudencial próprio, os assentos pré-existentes, em Portugal e no Brasil, foram todos implantados no ordenamento jurídico pátrio, com força de lei, pelo Decreto 2.684, de 23 de outubro de 1875.

O referido diploma, além de procurar trazer segurança jurídica para a nossa sociedade, reiterava ainda a tradição, que havia autorizado a antiga Casa da Suplicação do Brasil emitir assentos. Dispunha com efeito, o seu artigo 2º que:

Ao Supremo Tribunal de Justiça compete tomar assentos para a inteligência das leis civis, comerciais e criminais, quando na execução delas ocorrerem dúvidas manifestadas por julgamentos divergentes havidos no mesmo Tribunal, Relações e Juízos de primeira instância nas causas que cabem na sua alçada. § 1º – Estes assentos serão tomados, sendo consultadas previamente as Relações. § 2º – Os assentos serão registrados em livro próprio, remetidos ao Governo Imperial e a cada uma das Câmaras Legislativas, numerados e incorporados à coleção das leis de cada ano; e serão obrigatórios provisoriamente até que sejam derrogados pelo Poder Legislativo. § 3º – Os assentos serão tomados por dois terços do número total dos Ministros do Supremo Tribunal de Justiça e não poderão mais ser revogados por esse Tribunal.

Tal regime de assentos revestidos de eficácia vinculante perduraria até o advento da República, momento em que “se arrebentou este funcionamento autoritário da elaboração da lei, com o que, certamente, ganhou a evolução social” (cf. Pontes de Miranda, Fontes e evolução do direito civil brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1928, pág. 94).

Introduziu-se, por outro lado, o recurso extraordinário, inspirado no modelo do writ of error norte-americano, com a precípua finalidade de preservar a autoridade e a uniformidade na aplicação da Constituição e das leis federais, pelo seu guardião, o Supremo Tribunal Federal.

A doutrina coetânea mais abalizada, a seu turno, tinha consciência da relevância dos precedentes judiciais como subsídio útil à interpretação da legislação.

Antonio Joaquim Ribas, em seu prestigiado Curso de direito civil brasileiro, ensinava, a propósito, que a autoridade moral das sentenças dos tribunais superiores em relação aos inferiores era uma lógica consequência da estrutura hierárquica do sistema judiciário. Foi a própria lei que permitiu àqueles tribunais reformarem as decisões destes e, portanto, que prevaleçam as suas teses. Desse modo, os órgãos inferiores, em regra, adotam as opiniões de seus superiores, evitando, pois, estéril luta em prejuízo das partes, “salvo quando poderosas razões gerarem opostas convicções” (vol. 1, 4ª ed., Rio de Janeiro, ed. Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915, pág. 106).

STF

Sede do STF em 1891, no Solar do Marquês do Lavradio, na rua do Lavradio, 84 (RJ)

Com a instalação do Supremo Tribunal Federal, em 1891, seguiu-se o modelo vigente nos Estados Unidos da América, pelo qual, dentre outras hipóteses, cabia recurso extraordinário contra acórdãos de tribunais estaduais, quando ocorresse divergência de interpretação de lei federal. A finalidade era exatamente a de exercer o controle nomofilácico sobre a distribuição de justiça pelos órgãos jurisdicionais inferiores.

Não obstante, na tentativa de uniformizar a interpretação e a aplicação do direito pátrio, o Decreto 16.273, de 20 de dezembro de 1923, criara o mecanismo do prejulgado, restrito à Corte de Apelação do então Distrito Federal, pelo qual a decisão sobre uma quaestio iuris controvertida, no âmbito de órgãos fracionários do tribunal, era submetida à apreciação de todos os integrantes daquele, reunidos em plenário.

Tal prática logo foi extinta na Reforma Judiciária ocorrida em 1926, não obstante restabelecida, em seguida, pelo artigo 7º do Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930.

Em plena época da dualidade processual, o Código de Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo também acolheu o prejulgado, no artigo 1.126, com o mesmo escopo de evitar interpretação divergente. Caso a matéria do recurso suscitasse divergência no órgão colegiado, poderia ser levada para julgamento “em sessão conjunta”.

Mais tarde, em 25 de novembro de 1936, a Lei 319, adotou igualmente essa técnica processual para vigorar em todo o território do país, visando a obviar os males da contradição entre julgados no âmbito de todas as cortes de justiça brasileiras.

Observando-se as regras específicas dos regimentos internos dos tribunais, o acórdão proferido pelo pleno sobre a questão de direito suscitada pela câmara ou turma, consubstanciava-se no prejulgado e deveria então ser inserido no Livro dos Prejulgados, “o que empresta certa ordem e facilita a procura de decisões de tal significação na vida jurídica das Justiças locais” (cf. Pontes de Miranda, Embargos, prejulgado e revista no direito processual brasileiro, 2a tir., Rio de Janeiro, Coelho Branco, 1937, pág. 190).

É interessante notar que o artigo 103, parágrafo 1º, do velho Decreto 16.273, determinava que o prejulgado era obrigatório para o caso concreto, “e norma aconselhável para os casos futuros, salvo relevantes motivos de direito, que justifiquem renovar-se idêntico procedimento de instalação das câmaras reunidas”.

Já o artigo 7º do Decreto 19.408, dispunha que o prejulgado se destinava a “uniformizar a jurisprudência das câmaras”.

Frisava-se então que o prestígio e o grau de persuasão do julgamento uniformizador, para a solução de litígios análogos no futuro, eram de ordem eminentemente ética (Pontes de Miranda, Embargos, prejulgado e revista no direito processual brasileiro, cit., p. 191).

No entanto, parece-nos que sob a égide da Lei 319, o prejulgado possuía eficácia vinculante intra muros, e, portanto, horizontal, porque, a teor do artigo 1º, letra b, se porventura uma das turmas contrariasse a regra jurídica antes fixada pelo tribunal pleno, era cabível, contra o acórdão, recurso de revista.

Tradição histórica

Seja como for, é certo que a tradição histórica do direito brasileiro repele o sistema dos precedentes vinculantes, não podendo, o Poder Judiciário, salvo expressa autorização constitucional, estabelecer regras genéricas e abstratas, aplicáveis a casos futuros.

A fixação prévia da tese jurídica “normalmente só predetermina a decisão que se profira in specie, mas revela-se impotente para evitar que, noutro caso, a idênticos esquemas de fato se venha a aplicar tese diversa” (Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 5, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2012, pág. 6).

Joaquim Ignácio Ramalho, o Barão de Ramalho, invocava a tradição da história para afirmar que os juízes estavam obrigados a julgar de conformidade com as leis pátrias e, na ausência delas diante de um caso concreto, deveriam procurar subsídios nas “leis imperiais”, nas das nações modernas civilizadas, e, ainda, nos precedentes judiciais (Cinco lições de hermenêutica jurídica, Clássicos do direito brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1984, pág. 103).

Em livro que marcou época na literatura jurídica brasileira, Carlos Maximiliano outorgava, num primeiro momento, pouca importância à jurisprudência como subsídio isolado de hermenêutica, porque, além do perfil conservador da magistratura, não raro, nos tribunais, “os sentimentos prevalecem contra a razão; deixam-se levar os juízes pelas considerações morais, sociais, políticas ou religiosas, que avassalam a opinião pública, na época e no país em que eles se acham.

Na verdade, a experiência forense diuturna gera a convicção de que seria deplorável insânia pretender alguém entesourar ciência jurídica apenas compulsando coleções de arestos: a jurisprudência é a Torrente de Cedron dos erros em assuntos de Direito” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 6ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1957, pág. 230).

Todavia, inserida a jurisprudência em um contexto exegético mais amplo, certamente que indicava ela soluções adequadas às necessidades sociais e evitava que uma questão jurídica polêmica ficasse eternamente aberta e desse margem a novas demandas: portanto diminuía os litígios, reduzia ao mínimo os inconvenientes da incerteza do direito, porque de antemão fazia saber qual o resultado das controvérsias.

Nessa direção, em sua conhecida obra seminal, intitulada Direito sumular (14ª ed., São Paulo, 2012), Roberto Rosas invoca, logo na primeira página, lição do ministro Castro Nunes, no sentido de que a inobservância de precedente consolidado no Supremo Tribunal Federal outorgava ao recurso extraordinário a missão de corrigir o julgado, visando a alcançar o objetivo de uniformização da jurisprudência no que respeita à exegese e à aplicação do direito federal.

É de acrescentar-se, ainda, que um único precedente não poderia ser considerado “jurisprudência”, porque “é mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir jurisprudência, deve ser uniforme e constante. Quando esta satisfaz os dois requisitos granjeia sólido prestígio, impõe-se como revelação presuntiva do sentir geral, da consciência jurídica de um povo em determinada época” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., pág. 232).

Restabelecida a hegemonia da União para legislar, com exclusividade, em matéria processual, o Código de Processo Civil de 1939 conservou, no artigo 861, o instituto do prejulgado, com o mesmo escopo de uniformizar a jurisprudência dos tribunais pátrios.

Aquele diploma processual, no entanto, não previu a possibilidade de interposição do recurso de revista contra a decisão de turma que porventura contrariasse decisão do tribunal pleno. E isso demonstra que o prejulgado sob a égide do Código de 39 não era dotado de efeito vinculante.

A Emenda Constitucional de 28 de agosto de 1963 abriu a possibilidade para que o regimento interno do Supremo Tribunal Federal instituísse as denominadas súmulas da jurisprudência predominante, como resultado do julgamento da maioria absoluta dos membros que integram a corte, cuja tese jurídica é condensada em enunciado que então se transforma em precedente de uniformização da jurisprudência.

As primeiras 370 súmulas do STF, aprovadas na sessão plenária de 13 de dezembro de 1964, passaram a ter eficácia no subsequente ano judiciário. Estas súmulas, que também passaram a ser editadas por outros tribunais, não ostentam eficácia de precedente judicial vinculante, mas tão-somente relevante influência persuasiva.

Como bem ressaltado por Victor Nunes Leal, a metodologia que o Supremo atribuiu ao sistema de súmulas, visando a documentar e a simplificar os seus julgamentos, refletia uma orientação equilibrada, sem qualquer excesso. Esse ideal de um meio-termo, atinente à estabilidade da jurisprudência, ficou realmente entre a dureza implacável dos antigos assentos da Casa da Suplicação, “para a inteligência geral e perpétua da lei” e a virtual inoperância dos prejulgados.

Constitui, assim, a súmula um instrumento flexível, destinado a simplificar o trabalho da justiça em todos os graus hierárquicos, evitando-se a petrificação, porque a disciplina da súmula regula também o procedimento pelo qual pode ser modificada. Apenas exige, para ser alterada, mais aprofundado esforço dos advogados e dos juízes, uma vez que deverão eles aduzir novos argumentos ou aspectos inexplorados nos velhos debates, ou mesmo realçar evolução da própria realidade social e econômica.

Com esta precaução, a súmula fulmina a “loteria judiciária” das maiorias ocasionais pela perseverança esclarecida dos autênticos e competentes operadores do direito (Passado e futuro da súmula do S.T.F., Ajuris, 25(1982):55-56).

No Anteprojeto de Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas, elaborado em 1964 por Haroldo Valladão, foi contemplada a Resolução Unificadora da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que seria tomada quando houvesse três acórdãos, por maioria absoluta, com caráter obrigatório, “que os tribunais e juízes deverão observar, enquanto não modificada segundo o mesmo processo ou disposição constitucional ou legal superveniente”.

Vinha, assim, proposta a súmula ou prejulgado com caráter vinculante, embora Valladão ressalvasse que essa eficácia não poderia ser instituída sem expressa previsão constitucional ou legal.

Ressalte-se, por fim, que o anteprojeto do Código de Processo Civil de 1973 disciplinava, nos artigos 516 a 520, um procedimento de uniformização de jurisprudência, perante o Supremo Tribunal Federal, que se encerrava com a edição de assento, “com força de lei em todo o território nacional” (artigo 518).

O artigo 520 do anteprojeto atribuía ainda aos tribunais estaduais, nos limites das respectivas Constituições e leis estaduais, a mesma faculdade, sendo expresso o seu parágrafo único, mandando aplicar quanto ao pronunciamento, à decisão e à publicidade do assento, as disposições dos artigos antecedentes, em nada diferenciando-se, destarte, o modo de interpretar as leis federais e estaduais.

É de ser relembrado que durante o desenrolar do processo legislativo esta orientação foi integralmente modificada, não tendo sido contemplada na versão definitiva do Código Buzaid, visto que o incidente de uniformização da jurisprudência, regrado nos artigos 476 a 479, tinha por escopo precípuo o de produzir precedente de uniformização da interpretação e aplicação do direito, embora despido de eficácia vinculante inter alios.

Quanto à divulgação da jurisprudência, o artigo 128, parágrafo 1º, do primeiro regimento interno do Supremo Tribunal Federal, de 1891, já previa a publicação de seus arestos no Diário Oficial.

Além disso, o periódico intitulado Direito foi responsável pela conservação dos precedentes judiciais no trânsito do século 19 e início do século 20.

Com a publicação da Revista do Supremo Tribunal Federal, durante a década de 20, viu-se enriquecido tal importante subsídio. Não obstante, “essa revista, de edição privada, tornou-se um escândalo, porque a editora foi acusada de receber benefícios fiscais para importação de todo o material (papel, tintas de impressão etc.), e desviar essa finalidade em projetos próprios da editora. Morreu. Surgiu, em 1957, a Revista Trimestral de Jurisprudência, então editada pelo próprio Supremo Tribunal Federal até o volume (impresso) 239, referente a janeiro a março de 2017. Ao lado, de grande importância e de notáveis contribuições, a Revista Forense (desde 1904) e a Revista dos Tribunais (desde 1912)” (cf. Roberto Rosas, Direito sumular, cit., pág. 8), que, a seu tempo, prestaram inestimável serviço aos operadores do direito brasileiro.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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