Opinião

A necessária atualização no sistema de resolução de conflitos tributários

Autor

  • Deonísio Koch

    é advogado tributarista professor de Direito Tributário ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

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7 de junho de 2024, 17h23

É de longa data que está em debate o abrandamento do rigor no tratamento das soluções das lides tributárias, pressionado pela necessidade de adaptação da realidade do mundo atual na relação fisco contribuinte, vindo ao encontro do interesse de ambos os sujeitos na relação jurídico-tributária. O mundo contemporâneo pressiona por um sistema em que as questões tributárias possam ser resolvidas por meios diversificados, por um sistema multiportas [1] já admitido no Código de Processo Civil vigente, estimulando a utilização de métodos de solução de contendas de forma consensual através da conciliação, mediação e arbitragem, afastando cada vez mais a exclusividade da via judicial para a resolução dos conflitos.

Os avanços no método consensual na área tributária foram tímidos até agora, e a razão da resistência nessa inovação reside no próprio sistema normativo, que dogmatiza a vinculação do Direito Tributário à lei, impondo atuações vinculadas, sem o menor poder discricionário, consagrando o conhecido direito indisponível.

Essa vinculação das obrigações tributárias à lei tem seu primeiro indicativo na própria Constituição, quando ela se refere à instituição de tributo mediante lei, conforme dispõe o artigo 150, I, segundo o qual, “…é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. Da mesma forma que o sistema prestigia a lei para instituir o tributo, também o faz com relação à sua extinção, ao prever no artigo 97, I, do CTN que “Somente a lei pode estabelecer: I – a instituição de tributos, ou a sua extinção (Grifo do articulista).

Normas complementares

Seguindo esta construção do império da lei em matéria tributária, particularmente para a extinção de um tributo, que é o foco deste artigo, o sistema produziu certas situações inusitadas que não podem passar despercebidas pelo analista, quando, por exemplo, uma norma infralegal emanada do poder público competente, não vincula a administração com relação ao tributo, mas somente com relação à multa e acréscimos legais.

Spacca

Referimo-nos às denominadas “Normas Complementares” do artigo 100, do CTN, cujo cumprimento pelo contribuinte apenas exclui a imposição de multa e dos juros de mora (parágrafo único). Ou seja, se a Fazenda Pública levar ao contribuinte a orientação, via ato normativo, de uma não incidência sobre determinado fato, a vinculação da administração somente ocorre com relação à multa e acréscimos de mora, caso esta orientação seja reformulada, inclusive com efeito retroativo. Situação paradoxal, com total insegurança jurídica, tudo sob a justificativa de que somente a lei pode dispor sobre a extinção do tributo.

Sistema multiportas no Direito Tributário

Toda essa conotação de reserva legal se ajusta no preceito da indisponibilidade do crédito tributário inserido no direito público, daí a imposição das dificuldades na aceitação de fórmulas de soluções consensuais nos conflitos tributários, mantendo como única via a composição de processo contencioso administrativo ou judicial.

O que, no entanto, deveria miliar a favor de uma maior consensualidade nas soluções das divergências tributárias, adotando-se o sistema multiportas no Direito Tributário [2], o que implicaria dar voz ao contribuinte em suas ponderações fora da rigidez do processo, é a complexidade do sistema tributário vigente, com uma quantidade enorme de normas editadas diariamente, perto de 40 normas por dia, segundo o IBPT [3], normas muitas vezes imprecisas, confusas, com a adoção de conceitos jurídicos indeterminados, gerando uma instabilidade na compreensão do cumprimento das obrigações tributárias.

O cenário aponta para a necessidade de uma maior participação do contribuinte na solução das contendas tributárias, com a utilização de conciliação, mediação e arbitragem como alternativas à jurisdição estatal para dizer o direito nos conflitos tributários, afastando a utópica ideia da impossibilidade de qualquer transigência nas relações jurídico-tributárias, sob o argumento da indisponibilidade do direito público.

Avanços necessários

O atual programa de transação do Fisco federal vigente com relação aos tributos de sua competência já é um avanço nesta bilateralidade no trato das obrigações tributárias, mas não é o suficiente; é preciso avançar no alcance do poder conciliatório, rompendo com o dogma da indisponibilidade absoluta do crédito tributário, o que cria um universo paralelo, irreal, utópico no mundo econômico real.

É necessário, no entanto, pontuar que ao lado do sistema multiportas que deveria ganhar espaço no Direito Tributário, há a necessidade de fortalecer, com novas prerrogativas judicantes, os tribunais administrativos tributários em todos os entes tributantes. Soa, de certa forma, paradoxal, a defesa de uma instância conciliatória ou de mediação, e manter os tribunais administrativos já existentes engessados com as suas limitações nas competências de julgamento, negando-lhes o direito de apreciar matéria de direito que envolva conflito de normas, e sua excessiva vinculação aos atos normativos da administração, restringindo o julgamento praticamente à matérias de fato.

É preciso ampliar a competência judicante destes tribunais administrativos, que detêm o conhecimento especializado para apreciar as matérias aduzidas nas defesas, permitindo conhecer e julgar matérias de direito, conferindo-lhes poderes para negar a aplicação de normas claramente conflitantes com a norma superior que lhes dá fundamentos de validade; é necessário estabelecer um mecanismo que resolva, de forma definitiva, qualquer vestígio de parcialidade destes tribunais, tudo com o propósito de oferecer ao contribuinte, e também ao ente tributante, um julgamento eficaz, seguro e imparcial, o que será de grande valia para evitar o tão oneroso processo judicial, com a sua demora conhecida na tramitação.

Por fim, as reflexões deste artigo têm como propósito aproveitar a oportunidade em que a reforma tributária esteja em desenvolvimento, e sensibilizar os grupos de trabalhos e os legisladores para a implantação destas inovações nas relação jurídico-tributárias, com o propósito centrado no foco da simplificação do sistema tão propagado pelos mentores do projeto reformista.

 


[1] A denominada “justiça multiportas” é uma concepção que foi assim cunhada pelo professor Frank Sander, de Harvard.

[2] Carlos Henrique Machado é um defensor da aplicação do modelo multiportas no direito tributário, tese defendida em seu livro MODELO MULTIPORTAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2021.

[3] https://ibpt.com.br/em-media-legislacao-brasileira-edita-quase-40-normas-tributarias-por-dia-desde-1988-revela-estudo-do-ibpt/

Autores

  • é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

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