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Consultor Jurídico

Instituto da modulação de efeitos em matéria tributária no STJ

7 de junho de 2024, 11h23

Por Pedro Halembeck de Arruda, Ana Paula M. Costa Baruel

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Desde 1974, o Supremo Tribunal Federal se utiliza da modulação de efeitos de suas decisões (RE 78.594) [1], instrumento posteriormente positivado pelo artigo 27 da Lei nº 9.868/99 [2] [3], que passou a exigir a existência de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social para a sua aplicação.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A alta carga de subjetividade desses requisitos é motivo de intensos debates, tanto na doutrina, quanto nos julgamentos realizados pelo STF ao longo dos anos. Com a edição do novo Código de Processo Civil, similar redação foi mantida pelo artigo 927, § 3º, esclarecendo apenas que esses requisitos estariam presentes diante de “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos”.

Pontos controvertidos e modulação no STJ

Apesar da positivação quanto à necessidade de modulação em caso de alteração de jurisprudência dominante de tribunal superior, a análise de precedentes recentes da Suprema Corte permite verificar que sequer há clareza na definição dessa dita “alteração”. Exemplificativamente, ao julgar o Tema nº 881 [4], não se reconheceu a necessidade de modular efeitos do entendimento firmado acerca da quebra automática da coisa julgada em matéria tributária, apesar de se estar revendo posição firmada pelo Superior Tribunal de Justiça em caso repetitivo (REsp nº 1.118.893/MG).

Como se nota, os pontos controvertidos quando se trata do instituto da modulação são vários e se está longe de uma pacificação quanto à sua aplicabilidade. A novidade nessa celeuma é a utilização do instituto pelo STJ. Ao contrário do STF, a corte só passou a modular os efeitos de suas decisões em 2018 (REsp nº 1.657.156/RJ). Ainda mais recente é a sua utilização em matéria tributária, que se deu pela primeira vez em dezembro de 2023. Desde então, três modulações foram feitas, cada uma com um critério distinto.

No primeiro caso, a 1ª Seção do STJ decidiu que o ICMS-ST não integra a base de cálculo do PIS e da Cofins (Tema nº 1.125 [5]). Ao determinar a modulação, pautou-se no entendimento firmado pelo STF no Tema nº 69 [6] da repercussão geral e no reconhecimento da inexistência de julgados no sentido proposto. O critério determinado foi a produção de efeitos a partir da publicação da ata do julgamento, ressalvadas as ações judiciais e os procedimentos administrativos em curso.

De um lado, a fundamentação utilizada para modular os efeitos levanta questionamentos, pois reconhece que a 1ª Turma não teria se debruçado sobre o mérito da controvérsia, havendo apenas decisões desfavoráveis proferidas pela 2ª Turma. Ora, seria suficiente para a “alteração de jurisprudência dominante” a posição de apenas uma das Turmas? O STF já respondeu essa pergunta negativamente ao julgar o RE nº 723.651/PR e reconhecer a insuficiência das decisões das Turmas para fins de verificação de uma jurisprudência consolidada sobre o tema.

De outro, o critério utilizado mantém coerência com a jurisprudência do STF ao utilizar a publicação da ata como marco temporal, ressalvando as ações judiciais pendentes e os procedimentos administrativos em curso. Há positivo reforço da confiança, assegurando previsibilidade às partes envolvidas na discussão quanto à sua contemplação pelos efeitos patrimoniais decorrentes do leading case.

Spacca

Contudo, no segundo e terceiro casos de modulação em matéria tributária pelo STJ (Temas 986 e 1.079), julgados em 13/3/2024, a 1ª Seção adotou critérios diversos. Respectivamente, concluiu que as Tarifas de Uso do Sistema de Transmissão (Tust) e de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) compõem a base de cálculo do ICMS e que a base de cálculo das contribuições ao Sistema S não está limitada a vinte salários-mínimos, modulando-se os efeitos de ambos os entendimentos.

No Tema nº 986, fundamentou-se a modulação no entendimento de “que até o julgamento do REsp 1.163.020/RS – que promoveu mudança na jurisprudência da Primeira Turma – a orientação das Turmas que compõem a Seção de Direito Público do STJ era, s.m.j., toda favorável ao contribuinte do ICMS nas operações de energia elétrica”. Esse critério é mais abrangente do que aquele utilizado pelo STF em diversas oportunidades, como visto acima, pois reconhece a alteração de jurisprudência dominante a partir de precedentes das Turmas. Não obstante, parece guardar coerência com a previsão do art. 927, § 3º, do CPC, pois ambas as turmas de direito público decidiam de forma coerente no mesmo sentido.

Por outro lado, o marco temporal escolhido, publicação do primeiro acórdão julgando a matéria em sentido desfavorável ao contribuinte no âmbito do STJ (REsp 1.163.020, 1ª Turma), merece maiores reflexões. Isso porque, foram resguardados apenas contribuintes que até esse momento estivessem beneficiados por decisão judicial vigente, excluídas as que se fundamentaram na realização de depósito judicial como contracautela. Esses contribuintes contemplados voltarão a recolher o ICMS sobre Tust/Tusd com a publicação do acórdão paradigma.

Já no Tema nº 1.079, fundamentou-se a modulação em iterativas “decisões de ambas as Turmas deste Superior Tribunal em sentido contrário à tese ora proposta, é dizer, pelo reconhecimento da limitação, em vinte salários-mínimos, da base de cálculo das contribuições ora examinadas”. Foi reconhecida expressamente a “superação do vigorante e específico quadro jurisprudencial sobre a matéria tratada (overruling)”, com base em precedentes da 1ª Turma e decisões monocráticas proferidas por Ministros de ambas as Turmas. Novamente, o critério de “alteração de jurisprudência dominante” destoou daquele que vem sendo construído pelo STF, reforçando a ausência de clareza.

Não bastasse, em semelhança ao Tema nº 986, foram resguardadas apenas as “empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do presente julgamento, obtendo pronunciamento (judicial ou administrativo) favorável, restringindo-se a limitação da base de cálculo, porém, até a publicação do acórdão”.

Critério novo é adequado?

Ou seja, além de o STJ inovar em relação à presença de razões de segurança jurídica, reconhecendo a alteração de jurisprudência dominante em hipóteses distintas daquelas fixadas pelo STF, também traz nos últimos dois casos critério novo. A questão que se coloca é, seria esse critério de distinção adequado?

A nosso ver, a resposta passa por uma primeira constatação: se a ideia foi resguardar o Fisco de ter que restituir valores pagos por contribuintes que ajuizaram ações, expediente cada vez mais disseminado, ela cria outro problema, pois, desestimula a conformidade fiscal através da manutenção dos pagamentos regulares durante a discussão judicial ou da realização de depósito. Deixa de fazer sentido a opção conservadora do contribuinte e benéfica ao fisco de realizar pagamentos ou depósitos durante o curso da ação judicial.

Também nos parece que há problemática ruptura da isonomia. Isso porque, a distinção prática entre contribuintes beneficiados ou não pela modulação passou a ser a distribuição livre, já que a vigência de decisão favorável diante de matéria controvertida depende do juízo a que distribuída a ação individual.

Mais do que isso, muda-se a regra do jogo após as cartas estarem na mesa, pois, até então, havia certeza de inclusão no marco da modulação daqueles contribuintes que ajuizassem ação antes do julgamento do Leading case. Com base nesse cenário, muitos fizeram a escolha de resguardar seus direitos em ação individual, mas seguir com recolhimento ou realizar depósito judicial, confiando que esse comportamento não lhes seria prejudicial. Há inegável surpresa na resposta negativa oferecida pelo STJ.

Questionamento

Por fim, segue-se induzindo a proliferação de ações judiciais individuais, afinal, os efeitos patrimoniais concretos dependerão da decisão na lide subjetiva. Se havia um movimento de ajuizamento de ações em massa quando da inclusão do leading case em pauta, na nossa visão, ele não foi evitado pelo STJ, apenas se deslocou o momento dessa conduta para a discussão de afetação, afinal, precisa-se assegurar decisão favorável no caso concreto antes de eventual determinação de sobrestamento.

Assim, apesar de parecer justa a preocupação do STJ de que os efeitos concretos da modulação sejam prejudicados pela ressalva ampla das ações judiciais pendentes, o critério utilizado merece aprimoramento e maiores discussões, pois gerou insegurança e induziu igualmente comportamentos indesejáveis ao sistema de precedentes. Já há embargos de declaração versando sobre a matéria no Tema nº 1.079, havendo sinalização de que o tema será alvo de maiores e necessárias discussões perante a Corte.

Desse modo, fica o questionamento: o STJ inovará na forma de aplicar a modulação dos efeitos aos temas alçados à sua competência, desconsiderando o caminho já trilhado pelo STF para tal instituto? Os próximos julgamentos pelo STJ, no âmbito dos leading cases, poderá sinalizar aos contribuintes a resposta.

 


[1] CAVALCANTE, Mantovanni Colares. A modulação de eficácia tributária em controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Tese de doutorado. PUC-SP, 2016, p. 116/117.

[2] “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (grifo nosso).

[3] O art. 11 da Lei nº 9.882/99 também estabelece a possibilidade de modulação de efeitos nos processos de arguição de descumprimento de preceito fundamental.

[4]Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado”.

[5] REsp nº 1.896.678/RS, relator ministro Gurgel de Faria, 1ª Seção, DJe 28/02/2024.

[6] Tema 69 – Inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.