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Consultor Jurídico

Por que a acusação pode usar argumentos contra a dignidade dos réus?

6 de junho de 2024, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

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1. A prova decorre “del color del cristal con que se mira”?

Recentemente o STF proibiu, em ação constitucional, questionamentos sobre histórico de vida da mulher vítima de violência. Escrevemos sobre isso há pouco, sob o título Por um processo que não seja como el color del cristal com que se mira. Temos agora uma sucessão de vedações à atuação da defesa. Há uma espécie de index de argumentos. Mas só contra a defesa. A acusação pode dizer o que quiser.

Vamos tratar desse assunto?

Por isso, gostaria de pegar carona nessas teses, só que as invertendo. Explico: Edmilson, condenado a 170 anos, teve como explicação do erro judiciário o fato de que os juízes possuem livre convencimento. Já um dos promotores de Justiça disse que o reconhecimento por fotografia não tinha problemas, até porque nenhum sósia do Brad Pitt comete estupro no Brasil (o réu era negro e a defesa alegava que poderia ser um sósia). Isso não foi ofensivo à dignidade do réu?

Outro dia um réu foi condenado a 15 anos de prisão. A prova foi feita pelo juiz. Mas o processo não é nulo, com base no “princípio” (sic) de que não há nulidade sem prejuízo.

2. E as teses ofensivas à defesa?

Também todos os dias réus são submetidos ao júri com base no “princípio” (sic) do in dubio pro societate. Isso sem dizer que, em nome desse mesmo “princípio” (sic), indivíduos são submetidos às agruras do processo penal, em muitas das vezes, sem o mínimo necessário: a justa causa. Isso não é ofensivo?

Aliás, na realidade dos tribunais, o artigo 395 do CPP barra denúncias com base na exceção excepcionalíssima da exceção quando, ao contrário, deveria servir como o primeiro grande filtro de acusações infundadas (o que, inclusive, tornaria o Judiciário mais célere e eficaz, reduzindo a tormentosa pilha de processos que servem sempre de justificativa para estiolar garantias processuais).

Spacca

O outro filtro é o do 397 do CPP, que segue a mesma lógica. Não é incomum ver juízes que no despacho que recebe a denúncia e manda citar o réu, de antemão, já designe audiência de instrução e julgamento. Quer dizer, na teoria, a instrução somente existirá depois da fase do artigo 397. Quando se começa desse jeito, o que esperar do restante? Mas isso tudo “pode”. O que não pode é a defesa usar determinados argumentos, teses e algum tipo de pergunta.

Esses argumentos (já falarei de outros) são tão aviltantes e tão atentatórios à dignidade quanto ao da legítima defesa da honra. Como explicamos, Marcio Berti e eu, em artigo acima “linkado”, usar antecedentes da vítima de crime sexual é aviltante porque repristina o direito penal do autor e contra a vítima. Contudo, cabe uma ressalva: essa vedação à atuação defensiva feita de modo universalizante, por meio de uma ação em controle concentrado de constitucionalidade, parece que pode mais dificultar do que ajudar. Coloquemo-nos na posição do advogado: pode ser que a tese não esteja sendo conduzida para o caminho de marginalização da vítima. O advogado, porém, a depender do caminho a ser percorrido, deverá pisar em ovos para exercer o direito de defesa do seu cliente correndo o risco de ter a sua palavra cassada no decorrer da produção probatória. Qual é o limite? O da discricionariedade judicial? Mas, em si mesmo, o poder discricionário já não se apresenta contrário à imparcialidade?

Sabemos que a Lei Maria da Penha é absolutamente relevante e necessária. Também temos conhecimento de que, quando se trata de crimes punidos pela referida lei, há uma farta jurisprudência, como a que assegura um valor probatório singular à palavra da vítima e hoje conta com a vedação à tese de legítima defesa da honra, além do recente precedente do STF. Imaginemos, então, a seguinte situação: um casal, em término de relacionamento amoroso, profere ofensas um contra o outro no momento em que o homem interpela a mulher sobre a presença de um amante dentro da sua própria residência. O homem é denunciado por ameaça. A mulher ingressa com uma ação de divórcio litigioso. No juízo criminal, o acusado alega que também foi ofendido, que não ameaçou a vítima e que somente a insultou. Justificou ter interpelado a vítima porque queria confirmar uma possível traição para, então, dar fim ao casamento. Pronto. É o suficiente para que um juiz interprete essa tese como uma pretensa legítima defesa da honra sem que isso sequer passe pela cabeça do acusado. Ou diga que qualquer pergunta à vítima ofende o precedente do STF.

Essas coisas têm de ser discutidas. Sem receio. Precisamos falar sobre o cotidiano das práticas jurídicas. Direito não é abstração.

3. Vamos falar de isonomia? Quem sabe uma ADPF a favor da defesa?

E aqui vem o ponto. Não seria bom uma isonomia? Por qual razão o Ministério Público pode lançar mão de cloroquinas epistemológicas como in dubio pro societate (os gregos já liquidaram com isso na mitologia, com a trilogia Oresteia) e “não há nulidade sem prejuízo”? Nulidade é nulidade. Como o réu vai saber o tamanho do prejuízo? E é o réu quem tem de provar? Por exemplo: o artigo 212 não permite prova de ofício; o MP se queda calado na audiência; a prova é feita, portanto, pelo juiz. Réu condenado. Isso não é nulidade? Em si mesma, não é uma nulidade flagrante? Existe prejuízo maior do que a condenação à margem da lei e da constituição? Isso deveria ser óbvio.

Os tribunais, dia sim dia também, formulam teses mirabolantes que buscam sempre frear a incidência de garantias processuais em nome de um pragmatismo que tem, no horizonte, uma única pretensão: tornar a justiça mais célere, eficaz e reativa. Ainda mais em casos de clamor público (aliás, o que é isto – o clamor público?). A ironia é que o CPP, como dito antes, já dá a solução. Ao barrar acusações ilegítimas, automaticamente corta-se o mal pela raiz (com o perdão da expressão). É quase como se fosse um tratamento preventivo para o problema. Em vez de estimular o uso da cloroquina, não seria melhor usar máscara, limpar as mãos com álcool gel, manter distanciamento…? Bom, esse filme já vimos antes. Vale a alegoria.

Por que o MP (e o PJ) pode usar a “mentira jurídica” chamada verdade real (sic), aliás, um conceito absolutamente indeterminado que ofende ao inciso II do parágrafo primeiro do artigo 315 do CPP, como bem lembra Pablo Malheiros?

E por que o MP pode dizer que a alegação de nulidade feita pela defesa, em determinados casos, é uma “nulidade de algibeira”? Isso pode? Algibeira é o mesmo que “fazer algo à socapa”. Isso não é ofensivo?

E por que o juiz pode rejeitar embargos de declaração com base no livre convencimento, em ofensa ao mesmo inciso II do artigo 489, parágrafo 1º. Do CPC e seu espelhamento no 315 do CPP? E isso não se dá apenas no processo penal.

Eis aqui minha sugestão aos partidos políticos que ingressam com ações constitucionais contra teses defensivas: quem sabe uma ação constitucional para impedir teses e argumentos ofensivos por parte da acusação contra réus?

Não é uma boa ideia?