Opinião

Pode ser aplicada a sanção de advertência após a extinção do contrato administrativo

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6 de junho de 2024, 13h14

Diante de uma nova lei, nada mais natural que surjam inicialmente diversas questões acerca da interpretação/aplicação de seus dispositivos. Não poderia ser diferente no tocante à Lei nº 14.133, de 2021, a conhecida nova Lei de Licitações e Contratos.

Dentre os vários pontos duvidosos que emergem acerca da nova Lei de Licitações (NLL), um que queremos destacar nas linhas que se seguem diz respeito à possibilidade ou não de se aplicar a sanção de advertência, contida no artigo 156, inciso I, após a extinção do contrato administrativo.

Natureza sancionatória e momento da aplicação

De início, importante fixar que, em que pese a existência de críticas da doutrina, a advertência possui um verdadeiro caráter sancionatório, não configurando um mero aviso ou “chamada de atenção”. É nesse sentido, inclusive, que expõe Daniel Ferreira: “Arrolada no inc. I, do caput do art. 156, a advertência não se confunde com singela descompostura ou alerta. De fato, ela configura uma restrição de direitos de caráter repressivo a ser imposta pela incursão de um contratado em comportamento, típico, antijurídico e reprovável administrativamente e será tomada em consideração – para fins de futuro exame da sanção cabível e de sua dosimetria – em caso de reincidência infracional, genérica ou específica. Ademais, ela se classifica como restritiva do patrimônio moral tanto quanto a de declaração de inidoneidade para licitar e contratar, pelo menos em uma de suas facetas, por conta da natureza da restrição imposta” [1].

Embora a advertência também possua um viés pedagógico, no sentido de indicar ao contratado certas falhas que não devem ser repetidas ao longo da execução contratual e permitir a sua correção [2], não deixa de possuir, repita-se, uma natureza de sanção (ainda que branda).

Assim, tendo-se como pressuposto inafastável a compreensão de que a advertência é uma sanção, nota-se que se permitir a sua aplicação mesmo após a extinção do contrato (por fatos ocorridos durante a vigência contratual, obviamente) é medida inerente ao exercício do poder disciplinar. De fato, de acordo com Flávio Garcia Cabral e Leandro Sarai, “não compete ao agente analisar aspectos de conveniência ou oportunidade para a apuração de infrações administrativas de que tenha notícia e/ou aplicar a sanção devida após o regular processo administrativo” [3].

A importância e a necessidade de se aplicar a advertência, mesmo após o fim da vigência contratual, fica evidente quando se observa o teor do disposto no artigo 60, inciso II, da Lei nº 14.133, de 2021. Esse dispositivo traz a seguinte redação: “Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: (…). II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei”.

Desempenho contratual prévio

De acordo com esse dispositivo da NLL, nota-se que em caso de empate entre duas ou mais propostas, o segundo critério de desempate mais importante é a “avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes“, bem como verifica-se que deverão ser utilizados, preferencialmente, registros cadastrais como o Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf) [4] para atestar o cumprimento de obrigações. Assim, como a advertência é uma admoestação por escrito por descumprimento de obrigações e sua aplicação consta de registros cadastrais, ela se torna um instrumento para a administração pública avaliar negativamente o desempenho contratual prévio de licitante e, consequentemente, poder utilizar do critério de desempate de propostas previsto no artigo 60, inciso II, da Lei nº 14.133, de 2021.

Vigência contratual

Cabe destacar também que não admitir a aplicação de advertência em razão do fim da vigência contratual parece ser ilógico, pois bastaria o contratado descumprir obrigações contratuais que acarretam sanções leves como a advertência nos últimos dias do contrato, para não sofrer penalidade. Nessa hipótese, caso a administração descobrisse o fato após o final da vigência ou, mesmo conhecendo, só conseguisse apurar o fato e sopesar a aplicação da penalidade leve de advertência após findo o contrato, o contratado ficaria impune do fato leve praticado.

Spacca

Além dessa argumentação, acrescenta-se que se deve procurar dar efetividade à lei nas interpretações propostas e, como dito acima, o entendimento da possibilidade da aplicação da penalidade de advertência ajuda a dar efetividade ao artigo 60, inciso II, da Lei nº 14.133, de 2021. Outrossim, impende destacar que vigência contratual não se confunde com prazo para aplicação de sanção. Caso para a sanção de advertência fosse necessário levar em consideração a vigência ou não do contrato, isso deveria ser previsto expressamente no artigo 156, §1º, o qual não considera a vigência contratual como critério para a avaliação da necessidade ou não de aplicação de sanção.

Critérios

Na verdade, para se aplicar sanção, deve-se utilizar de critérios perfeitamente compatíveis com a penalidade de advertência como, por exemplo, a natureza e gravidade da infração cometida (infração leve é compatível com a penalidade de advertência), as peculiaridades do caso concreto (o fim da vigência contratual e necessidade de se registrar desempenho contratual negativo prévio, para eventual aplicação de critério de desempate previsto no artigo 60, inciso II, da NLL), os danos que dela provierem para a administração pública (a administração pública pode ficar impossibilitada de aplicar critério de desempate em futuras licitações) [5].

Como exposto no artigo 156, §2º, a advertência será aplicada “exclusivamente pela infração administrativa prevista no inciso I do caput do art. 155“, quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave. Assim, a advertência deve ser aplicada apenas nos casos de inexecução parcial do contrato. Se a lei não fez expressamente distinção para a inexecução parcial do contrato apurada antes ou depois de findo a vigência, não cabe ao intérprete fazê-la.

Para aplicar referida penalidade, o importante é avaliar os critérios previstos no §1º, bem como verificar se a conduta do contratado justifica a imposição de penalidade mais grave, sendo irrelevante se o contrato se encontra findo ou não.

Princípios

Vale lembrar que aos contratos administrativos se aplicam, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado, conforme artigo 89, da Lei nº 14.133, de 2021.

Nesse ponto, é importante trazer um dispositivo da teoria geral dos contratos, previsto no artigo 422 do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Assim, mesmo na conclusão do contrato, é preciso respeitar os princípios de probidade e boa-fé. Não aplicar a advertência na conclusão do contrato em razão de inexecução parcial do contrato, parece não privilegiar a boa-fé, seja do contratado que deu causa à inexecução parcial do contrato, seja da administração pública, que não valorou negativamente a conduta do contratado quando deveria fazer.

Não penalizar também pode prejudicar outro licitante, que não deu causa a inexecução parcial de contrato em futura licitação, caso seja aplicado o artigo 60, inciso II, da NLL, como critério de desempate. Se não há registro de penalidade de advertência, isso pode privilegiar competidor que já descumpriu, ainda que parcialmente e de forma leve, a execução de contrato administrativo.

Acrescente-se, ainda, a regra do artigo 88, §3º, da NLL, que prevê que “a atuação do contratado no cumprimento de obrigações assumidas será avaliada pelo contratante, que emitirá documento comprobatório da avaliação realizada, com menção ao seu desempenho na execução contratual, baseado em indicadores objetivamente definidos e aferidos, e a eventuais penalidades aplicadas, o que constará do registro cadastral em que a inscrição for realizada”.

É dizer, igualmente o registro de penalidades (dentre elas, a advertência) é importante para a realização do registro cadastral, podendo afetar as futuras contratações que serão realizadas pela administração pública.

Por derradeiro, veja que mesmo a advertência aplicada após o fim do contrato ainda mantém um papel pedagógico. Embora não tenha essa função especificamente ao contrato findo, por um decorrência lógica, ainda assim há o viés pedagógico de indicar ao contratado que aqueles comportamentos não devem ser reproduzidos em outras possíveis contratações que venha a firmar com a administração. De mesma forma, serve como indicativo a outros possíveis contratados, indicando que ações ou omissões tais, que acarretam a inexecução parcial do contrato, serão repreendidas e punidas pelo poder público.

Em síntese, respondendo a pergunta-título desse artigo, parece-nos claro que é plenamente possível (poder-dever) a aplicação da penalidade de advertência mesmo após o fim da vigência contratual.

 


[1] FERREIRA, Daniel. Responsabilização administrativa por infrações imputáveis a licitantes e contratados  à luz da Lei nº 14.133/2021 (NLLCA). In: HARGER; Marcelo (Coord.). Aspectos polêmicos sobre a nova  lei de licitações e contratos administrativos: Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 341-382.

[2] Veja que, por entender que a finalidade da advertência seria somente de “alerta”, há quem entenda em sentido oposto ao que se defende nesse artigo: ”Apenas a sanção de advertência é que não faz sentido de ser aplicada após o fim da vigência contratual. Afinal, até por decorrer do poder de fiscalização, a finalidade da advertência é alertar o contratado sobre falhas cometidas durante a execução do contrato” (ABREU JÚNIOR, Cláudio J. É possível aplicar sanção administrativa após o término da vigência contratual? ZENITE. Disponível em: https://zenite.blog.br/e-possivel-aplicar-sancao-administrativa-apos-o-termino-da-vigencia-contratual/). Vale reforçar, somente, que a advertência, por expressa escolha do legislador, possui natureza de sanção e não de mero “alerta”. A função de “aviso” e saneamento trazida no artigo 117, §1º, da NLL, não elide o aspecto punitivo da advertência.

[3] CABRAL, Flávio Garcia; SARAI, Leandro. Manual de Direito Administrativo. 3.ed. Leme: Mizuno, 2024, p.378-379.

[4] Instrução Normativa nº 3, de 26 de abril de 2018: “Art. 32. O órgão ou entidade integrante do Sisg, ou que aderiu ao Siasg, responsável pela aplicação de sanção administrativa, prevista na legislação de licitações e contratos, deverá registrar a ocorrência no Sicaf. (…) Art. 34. São sanções passíveis de registro no Sicaf, além de outras que a lei possa prever: I – advertência por escrito, conforme o inciso I do art. 87 da Lei nº 8.666, de 1993, e o inciso I, do art. 83 da Lei  nº 13.303, de 30 de junho de 2016; (…)”.

[5] Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções: I – advertência; (…). § 1º Na aplicação das sanções serão considerados: I – a natureza e a gravidade da infração cometida; II – as peculiaridades do caso concreto; III – as circunstâncias agravantes ou atenuantes; IV – os danos que dela provierem para a Administração Pública; V – a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle. § 2º A sanção prevista no inciso I do caput deste artigo será aplicada exclusivamente pela infração administrativa prevista no inciso I do caput do art. 155 desta Lei, quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave.

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