Interesse Público

Agite antes de legislar: bases para leis gerais de experimentação administrativa

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

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6 de junho de 2024, 9h17

O direito da experimentação administrativa no âmbito público pode ser abordado a partir de múltiplas perspectivas. Por razões didáticas, classifico-as em dois grandes grupos: a perspectiva focal, que aborda leis específicas e domínios especiais da administração pública, e a perspectiva global, que identifica normas gerais estimuladoras da experimentação na administração pública, aplicáveis a variadas organizações e domínios na intimidade da própria administração ou na relação dela com outras organizações.

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Desde outubro de 2021, em diferentes textos, analisei de modo condensado leis específicas vigentes favoráveis à experimentação administrativa no processo administrativo decisório, na organização administrativa, na regulação de setores econômicos, no controle disciplinar e no controle de supervisão, entre outros temas. É hora de tratar da viabilidade de uma abordagem global e de uma lei geral da experimentação administrativa.

Demandas básicas da experimentação

A experimentação administrativa abraça a incerteza, não a nega; aceita o risco do erro e o avalia; aposta na singularização e customização de procedimentos e instituições, ao invés de uniformizá-las; exige controle e monitoramento em todas as etapas do processo de seu desenvolvimento, sem impor padrões consagrados. Portanto, qualquer norma geral de fomento à experimentação deve permitir regimes temporários, quebras de uniformidade, tolerar a incerteza e o erro, conceder autonomia qualificada, além de assumir feições de fomento e não de sancionamento. Deve permitir a agitação do inédito, com os riscos inerentes, antes da generalização das novas soluções e regimes pela via da legislação comum e permanente.

Na experimentação, o erro involuntário não pode ser punido, pois é parte da aprendizagem da experimentação. [1] Por isso, a experimentação no âmbito da administração pública exige segurança jurídica e autorização fundada em bases legais para o gestor assumir, sem temor, o risco da falha e do fracasso, preço inevitável da inovação e da singularização.

As rotinas consagradas podem ser seguras, mas não inovam e não oferecem possibilidades de melhorias inesperadas de produtividade e qualidade na oferta de serviços prestados ao público. Porém, será possível aceitar no sistema jurídico normas que autorizem a ruptura da uniformidade e permitam a experimentação institucional controlada como decisão direta do gestor e não do legislador em cada caso? Penso que sim, e acredito haver base constitucional para este tipo de prescrição, isto é, suporte na lei fundamental para uma lei geral sobre experimentação administrativa. E creio que estas normas vem sendo sub interpretadas, sem delas serem extraídas todas as potencialidades oferecidas pela Constituição.

Normas gerais constitucionais favoráveis à experimentação

Quais as normas constitucionais estou a referir? Em primeiro lugar, o §8º do artigo 37 da Constituição  [2]. Voltado a autorizar a contratualização no âmbito das relações interorgânicas e interadministrativas, este dispositivo inserido na lei maior pela EC 19/1998, regulado no âmbito federal pela Lei 13.934/2019, oferece cobertura constitucional para regimes temporários de autonomia reforçada, incentiva e autoriza a variação no regime de funcionamento de órgãos e entidades públicas para fora da uniformidade, no mesmo passo em que genericamente trata de avaliação de desempenho, concessão de direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes dos órgãos ou entidades beneficiadas com as flexibilidades oferecidas pelo contrato de desempenho.

O contrato de desempenho não é apenas um mecanismo de parametrização do controle, como exprimi em textos anteriores, mas uma verdadeira cláusula geral de fomento à experimentação administrativa.

Em respeito ao federalismo administrativo, leis gerais de fomento à experimentação no âmbito público não precisam ser nacionais. O §8º do artigo 37 da Constituição não exige lei complementar nacional ou lei ordinária nacional. Estados e municípios detêm prerrogativas legislativas de autonomia, auto-organização e autoadministração, que autorizam a edição de legislação própria, sem interferências ou ingerências de outros entes, ressalvadas as exceções constitucionais.

Essa autonomia é desafiada também em matéria de inovação, conforme ressalta a nova redação do artigo 23, V, da Constituição, alterada pela EC 85/2015, que determina ser competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação”.

Em outra disposição, artigo 200, V, impõe-se ao sistema único de saúde, formado pela integração dos serviços de saúde de todas as unidades federativas, “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação”. A EC 85/2015 permitiu, inclusive, a dispensa da autorização legislativa prévia para a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra no âmbito das atividades de ciência, tecnologia e inovação (artigo 167, §5º, da CF).

Por fim, o princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput, da CF), em leitura diacrônica, convoca a inovação continuada e a avaliação constante da execução das políticas públicas. Não basta atender de forma adequada, coerente e satisfatória os interesses dos usuários de serviços administrativos internos ou externos em determinado período. Essa é a perspectiva de avaliação do princípio da eficiência de forma estática, sincrônica, à semelhança de uma foto.

A tarefa administrativa é permanente e deve ser sensível às mutações do entorno concreto, de forma ao mesmo tempo resiliente e adaptativa. A experimentação administrativa atende às finalidades de informar, a partir de dados coletados de um número limitado de agentes, segundo procedimento controlado e temporário, a viabilidade de ampliar e estender regimes jurídicos diferenciados para a generalidade de um setor da atuação administrativa.

Esse mecanismo de feedback induzido ou aprendizagem institucional permite aos dirigentes públicos responderem ao contexto e desenharem políticas públicas sintonizadas com os interesses dos usuários, atendendo às exigências de economicidade e satisfatoriedade inerentes ao princípio da eficiência ao longo do tempo. [3]

Criatividade legislativa, um bem escasso

É relativamente simples definir em lei diversos tipos de controle para qualquer forma de atuação administrativa. Difícil é figurar regimes alternativos de agir, formas diferenciadas de organização, parcerias não convencionais, formas de integração do agir administrativo ou de mobilização da força de trabalho que escapem do convencional.

Esses regimes alternativos, quando disponibilizados diretamente pelo legislador, permitem ao gestor o exercício da discricionariedade decisória e da discricionariedade organizatória com um grau reforçado de segurança. É a forma forte ou densa de incentivar em termos legislativos a experimentação. Muitas vezes, porém, diante da dificuldade de conceber antecipadamente modelos alternativos experimentais em termos abstratos, limita-se o legislador a autorizar o afastamento em casos específicos de exigências gerais obrigatórias, impondo ao gestor o ônus de justificar a necessidade de prescindir de controles gerais ainda obrigatórios e o seu afastamento no caso concreto. É a forma fraca ou vaga de incentivo à experimentação. [4]

Nas duas hipóteses referidas, a legalidade permanece exigida, conquanto a distinção repercuta a diferenciação entre “normas de programação material” e “normas de programação procedimental ou organizativa” e entre “normas de programação condicional” e “normas de programação finalista”. Por óbvio, a forma de atribuição da norma de competência administrativa de experimentação determinará o modo de justificação das escolhas administrativas e, ademais, a concordância delas com outras normas do sistema ou eventuais situações de derrotabilidade.

Todas essas hipóteses configuram leis que conferem competência experimental à Administração Pública; não devem ser confundidas com leis experimentais diretas, de eficácia temporária, alcance territorial reduzido, ou marcadas por cláusulas de caducidade explícita. [5]

De outra parte, no regime federativo, há multiplicidade de atores institucionais e possibilidades variadas de aplicação controlada e disciplinada de inovações em serviços, em produtos, meios de acesso, instrumentos de comunicação e formas de controle na administração pública, o que pode oferecer oportunidade para aplicações empíricas inovadoras ou reformas incrementais em diferentes cenários. As boas iniciativas tendem a ser mimetizadas e reproduzidas em outras unidades federativas. Os resultados obtidos em determinada unidade federativa podem ser empregados para fundamentar o afastamento experimental e controlado de regras gerais obrigatórias antes mesmo de iniciada a experimentação em outra unidade federativa.

Reforçar o contrato de desempenho

Em matéria de fomento à experimentação e à inovação institucional não há um trilho único a seguir. Leis especiais provavelmente sempre serão necessárias, ao lado de disposições gerais de incentivo, com programas materiais alternativos, ou simplesmente normas autorizantes do afastamento temporário de alguma exigência ordinariamente impositiva.

O §8º do artigo 37 da Constituição oferece enunciado que admite todos esses tipos de normas de competência. Ele pode ser invocado em leis especiais, voltadas a determinado setor da administração pública, e pode ser disciplinado em termos gerais em dada unidade federativa com a alusão expressa a regimes alternativos e mais flexíveis no plano gerencial, orçamentário e financeiro, ou simplesmente imprimir autorização para que o gestor, de modo fundamentado, especifique em cada caso a retirada de entraves ou limitações nas referidas dimensões da atuação administrativa.

Para o desenvolvimento da cultura da experimentação será importante ampliar o atual rol de flexibilidades autorizadas pela Lei 13.934/2019. Esta lei, resultante da competente e oportuna iniciativa do senador Antonio Anastasia, não pode incluir no seu rol de flexibilidades de variados aspectos em matéria orçamentária, financeira e de gestão, tendo em conta os limites inerentes às iniciativas parlamentares no Brasil, constrangidas pela latitude da iniciativa privativa do Chefe do Executivo nas referidas matérias.

A Lei 13.934/2019 delimitou corretamente o contrato de desempenho em termos processuais, mas ofereceu pouco ao gestor em termos de flexibilidades, algo essencial para o desenvolvimento do instituto e, sobretudo, para o sucesso de iniciativas experimentais. [6]

É preciso reforçar a Lei 13.934/2019, disseminá-la na gestão pública e inspirar com o seu exemplo o legislador nos estados e municípios, nos limites da competência de cada unidade federativa, de modo que a experimentação seja incorporada como processo usual, rotineiro, que antecede a mutações regulares e sequenciais nos serviços administrativos. A era das reformas globais da Administração Pública talvez tenha passado; hoje micro reformas na gestão pública exigem sobretudo processos de experimentação.

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[1] Como corretamente acentua Mazzucato, “a aceitação de riscos pode ser estimulada ou inibida dentro das organizações. Ficamos acostumados com a ideia de que as burocracias são lentas. A verdadeira questão, porém, não é se a burocracia deve existir ou não, mas como convertê-la numa organização dinâmica, movida pela criatividade e pela experimentação”. (MAZZUCATO, Mariana. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo (p. 89). Portfolio-Penguin. Edição do Kindle.

[2] Cf. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […] § 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I – o prazo de duração do contrato;  II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;  III – a remuneração do pessoal.

[3] Sobre as exigências de economicidade e satisfatoriedade como núcleo essencial do princípio constitucional da eficiência administrativa, cf. MODESTO, Paulo. (2014). Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Revista Do Serviço Público51(2), p. 105-119. https://doi.org/10.21874/rsp.v51i2.328 ou https://www.academia.edu/1035223

[4] Exemplo eloquente de lei autorizativa de experimentação foi a previsão legal, na Lei 9472/1997, da modalidade de licitação “pregão” (arts. 54 a 57), originalmente adotada como modelo facultativo e destinado a um único órgão federal, a Agência Nacional de Telecomunicações. Implementada com sucesso, fora dos quadros da lei geral de licitação, foi posteriormente ampliada como modalidade facultativa para todas as demais Agências Reguladores (Lei 9986/2000) e, por fim, convertida em modalidade na lei geral de licitações pela Lei 10.520/2002. Em pouco tempo, mesmo tendo surgido de forma polêmica e sob questionamento (ver ADI 1668-5, julgamento liminar, 20/08/1998, Dj. 16.04.2004), o pregão passou a ser a modalidade de licitação mais utilizada no direito brasileiro. Essa iniciativa, à semelhança de outras como os serviços de balcão único (Poupatempo e Serviços de Atendimento ao Cidadão,  SAC’s) e as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), funcionaram no Brasil como exemplos de bypass institucional, isto é, modelos organizativos, processuais ou de serviço inovadores que, funcionando paralelamente às organizações e regimes usuais, fomentaram a reforma institucional, concorrendo diretamente com modelos superados, deficientes ou em vias de superação. Sobre o conceito de “bypass institucional” como estratégia de experimentação e inovação, conferir MOTA PRADO, M. (2021). Bypasses Institucionais no Brasil: Superando a Resistência Ex-ante às Reformas Institucionais. Revista Da Faculdade De Direito Da Universidade Federal De Uberlândia49(1), 8–28. https://doi.org/10.14393/RFADIR-v49n1a2021-62774  Sobre o caráter incremental, cauteloso e alternativo, de modelos experimentais, ver também TOSTA, André Ribeiro. Instituições e o Direito Público: empirismo, inovação e um roteiro de análise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 142-149.

[5] Sobre as leis experimentais no âmbito administrativo, e sua aceitação pelo Conselho de Estado Francês, cf. CROUZATIER-DURAND, Florence. « Réflexions sur le concept d’expérimentation législative. (à propos de la loi constitutionnelle du 28 mars 2003 relative à l’organisation décentralisée de la République) », Revue française de droit constitutionnel, vol. 56, no. 4, 2003, pp. 675-695. De forma didática e abrangente, ver ainda sobre legislação experimental: RANCHORDAS, Sofia, The Whys and Woes of Experimental Legislation (December 9, 2013). 1 (3) Theory and Practice of Legislation 415-440 (2013), Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2604506  or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2604506

[6] No Art. 29 do Anteprojeto da nova Lei de Organização Administrativa da União, elaborado por Comissão de Especialistas, foram indicadas diversas “flexibilidades e autonomias especiais” passíveis de serem conferidas a órgão ou entidade supervisionada durante a vigência do contrato previsto no §8º do Art. 37 da Constituição Federal (cf. https://www.academia.edu/1055240 ). Embora ofereça catálogo abrangente, porque articulado para ser apresentado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, a relação merece atualização e ampliação, com vista a adequar o seu emprego em processos de experimentação institucional.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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