A tributação dos perdões de dívida no âmbito da recuperação judicial
6 de junho de 2024, 15h14
Neste artigo, será analisada a tributação pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, dos perdões de dívidas (descontos) obtidos no âmbito da recuperação judicial e a recente Solução de Consulta Cosit nº 104/24.
Para tanto, trataremos, em primeiro lugar, dos reflexos dos descontos obtidos no âmbito da recuperação judicial e o artigo 50-A da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 11.101/05). Em segundo lugar, será analisada a Solução de Consulta nº 104/24 seus eventuais impactos.
Descontos no âmbito da RJ e o artigo 50-A da Lei 11.101/05
Como se sabe, a recuperação judicial tem como objeto “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”, conforme dispõe o artigo 47 da Lei nº 11.101/05.
Ou seja, trata-se de mecanismo que tem como finalidade “evitar, ao máximo possível, a decretação da quebra, amparada na função social da empresa, esta considerada pela nova legislação fonte produtora de renda e geradora de empregos, importante, portanto, para a economia nacional [1]“.
Dentre as medidas para viabilizar essa recuperação econômica, destaca-se a renegociação de dívidas com a concessão de descontos substanciais pelos credores da recuperanda, fenômeno denominado de haircut. Tais descontos, do ponto de vista do direito civil, podem ser considerados perdões parciais de dívidas a partir da interpretação do artigo 385 do Código Civil.
Sob o ponto de vista da contabilidade, esses descontos são reduções de passivo sem contrapartida no ativo e, portanto, configuram uma receita contábil. Nesse sentido é o item 4.68 do Pronunciamento Técnico CPC 00 (R2) — Estrutura Conceitual para relatório Financeiro:
“Receitas são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio.”
Ou seja, de acordo com a contabilidade tais reduções de passivo aumentam a situação líquida patrimonial da empresa e, portanto, devem aumentar a receita bruta e o resultado.
Cabe ressaltar, como bem adverte o item 112A, do Pronunciamento Técnico CPC 47 — Receita de Contrato com Cliente, que o conceito contábil de receita não determina automaticamente o tratamento fiscal a ser atribuído aos atos do contribuinte, tendo em vista que as demonstrações financeiras da contabilidade possuem objetivo diverso das normas tributárias.
Nesse contexto, tendo em vista que o resultado contábil tem reflexos na apuração do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, surge a questão que é central para o presente debate: os descontos obtidos no âmbito da recuperação judicial são tributáveis pelo PIS, Cofins, IRPJ e CSLL?
Em outras palavras, tais descontos configuram receita e renda/lucro tributável que materialize as hipóteses de incidência de tais tributos?
Até 2020, a Lei nº 11.101/05 não tratava dos reflexos tributários dos descontos obtidos no âmbito da recuperação judicial. Durante esse período, coube aos órgãos julgadores a definição do tema, conforme se verá mais adiante.
A Lei nº 14.112/20, incluiu o artigo 50-A da Lei nº 11.101/05, do qual deve-se destacar o seu inciso I, que estabelece o seguinte:
Art. 50-A. Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições:
I – a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);
Não obstante o dispositivo seja claro, a sua natureza é alvo de controvérsia.
De um lado, poderia se afirmar que se trata de isenção concedida pela Lei, pois tais receitas decorrentes de reduções de passivo seriam tributáveis em princípio. Nesse sentido é o entendimento da Receita Federal sobre temas semelhantes como o do perdão parcial de dívida de empréstimos bancários (Solução de Consulta SRRF01 nº 17/10) e da redução de juros e multas em virtude de adesão a parcelamentos tributários (Solução de Consulta Cosit nº 65/19 e Solução de Consulta Cosit nº 35/24), bem como da maioria da jurisprudência da 3ª Seção do Carf sobre a tributação dos perdões de dívidas (Acórdãos nº 9303-008.341, 3402-004.954, 3302-011.708 e 3201-002.117).
Nessa linha, o legislador, por razões de política fiscal, criou uma isenção para reduzir o desembolso financeiro das empresas em recuperação judicial num cenário em que suas finanças estão fragilizadas[2].
De outro lado, pode-se afirmar que a lei apenas esclareceu a não incidência de PIS e Cofins sobre tais receitas contábeis, as quais não seriam tributáveis por não representarem riqueza nova e, portanto, não revelarem capacidade contributiva (conforme já manifestou a ministra Regina Helena Costa em palestra sobre o tema[3]). Dessa forma, por não configurarem ingresso novo e positivo que incremente o patrimônio, tais valores não seriam receitas para fins tributários. Nesse sentido, foi a decisão da 3ª Seção do Carf no acórdão nº 3402-004.002 (a decisão foi reformada pelo Acórdão nº 9303-008.341).
No Parecer nº 165/2020 PLEN/SF, a controvérsia sobre a natureza do dispositivo fica clara, conforme se vê da seguinte manifestação:
“O inciso I do art. 50-A da Lei nº 11.101, de 2005, que a Emenda nº 32 propõe suprimir, prevê a não incidência de PIS/Pasep e de Cofins sobre as receitas os valores relativos ao desconto obtido, o que, em tese, favorece o contribuinte. O problema é que deixa positivado na lei a legitimidade da cobrança de tributos sobre esses descontos, o que hoje é discutível e nos parece injusto.”
Apesar de este autor concordar com aqueles que defendem a não incidência de PIS e Cofin sobre os descontos/perdões de dívidas na recuperação judicial, a legislação, na prática, partiu do pressuposto de que tais receitas poderiam ser tributadas pelas contribuições sociais referidas, o que revela que a intenção da lei foi estabelecer uma isenção.
Tal conclusão é fortalecida ao se analisar o parágrafo único do artigo 50-A, que estabelece uma exceção à aplicação do dispositivo e, consequentemente, permite a tributação dos descontos pelo PIS e Cofins em certos casos, bem como a própria redação do artigo ao referir que a receita “não será computada” na base de cálculo. Além disso, antes da introdução do ordenamento jurídico do artigo 50-A na Lei nº 11.101/05, tanto a Receita Federal como o Poder Judiciário sempre entenderam pela legitimidade dessa tributação.
Assim, embora seja questionável a referida incidência à luz da doutrina tributária e do conceito de receita, fato é que, na realidade, tais receitas sempre foram entendidas como tributáveis pela Receita Federal, inclusive com validação do Poder Judiciário.
Quanto às demais disposições do artigo 50-A, este trouxe importantes previsões nos seus incisos II e III, e paragráfo único. O inciso II dispõe que o “ganho” obtido pelo devedor com a redução da dívida poderá ser compensado com prejuízos fiscais sem a limitação de 30% (trava de 30%) prevista nos artigos 42 e 58 da Lei nº 8.981, na apuração do IRPJ e CSLL.
O inciso III, por sua vez, estabeleceu a possibilidade de dedução do IRPJ e da CSLL das despesas das obrigações assumidas no plano de recuperação judicial, desde que tais despesas não tenham sido objeto de dedução anterior. Como se vê, tal previsão tem função meramente esclarecedora, pois tal possibilidade já poderia ser extraída dos dispositivos que regulam a apuração do IRPJ e da CSLL.
Por fim, o parágrafo único dispõe que o artigo 50-A não se aplica para o caso de dívidas com pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora. Não obstante o objetivo de evitar abusos, este dispositivo, em certa medida, é desproporcional para o fim almejado. Da análise desses dispositivos é possível extrair as seguintes conclusões.
Em primeiro lugar, a lei buscou conceder “benefícios” para que a empresa recuperanda tenha um comprometimento de caixa menor durante o processo de recuperação judicial, o que contribui para a recuperação econômica da empresa.
Em segundo lugar, a lei pressupõe que a receita contábil decorrente dos descontos poderá ser tributada pelo IRPJ e CSLL, o que fica claro das próprias previsões para apuração do IRPJ/CSLL.
Em terceiro lugar, a exceção à aplicação do artigo 50-A estabelecida pelo parágrafo único revela que a lei, conforme já afirmado, pressupõe que tais receitas seriam em princípio tributáveis pelo PIS e Cofins. Consequentemente, o dispositivo do artigo 50-A, I, teria estabelecido uma isenção, a qual é excepcionada no caso de dívidas perdoadas entre partes relacionadas. Se o dispositivo do artigo 50-A fosse meramente esclarecedor da não incidência de PIS e Cofins sobre os descontos, não haveria fundamento para permitir a tributação nos casos de partes relacionadas.
Feitas essas considerações, a seguir será analisada a Solução de Consulta nº 104/24, com especial enfoque à incidência do IRPJ e da CSLL sobre os descontos obtidos na recuperação judicial.
Solução de Consulta Cosit nº 104/24 e a incidência de IRPJ e CSLL sobre os descontos
A Solução de Consulta Cosit nº 104/24, publicada em 25/04/2024, tratou da tributação pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins do “ganho decorrente de renegociação de dívidas auferido por pessoa jurídica em processo de recuperação judicial“. Trata-se da primeira solução de consulta da Receita Federal do Brasil sobre o tema após a mudança legislativa ocorrida em 2020. No caso, o contribuinte fez os seguintes questionamentos ao Fisco:
- 1) Sobre as receitas obtidas deságios durante os meses em que correrem (descontos de credores) não irá incidir Pis/Cofins? Ou seja, será uma receita isenta?
- 2) Para efeito apuração lucro real (IRPJ/CSLL- apuração mensal) a receita obtida pelos deságios será tributada normalmente, porém pode ser deduzido 100% dos prejuízos acumulados dos exercícios anteriores?
- 3) O mesmo procedimento poderá ser aplicado no caso de receita positiva sobre ganho de capital (vendas imobilizados) — vendido para pagamentos obrigações da recuperação judicial; ou seja, poderá também usar 100% dos prejuízos acumulados nos exercícios anteriores?
- 4) Estes procedimentos acima já estão regulamentados ao IRPJ/CSLL?
Com relação ao primeiro questionamento, a Receita apenas reproduziu o dispositivo legal.
Já com relação ao segundo questionamento, afirmou que “o ganho decorrente de renegociação de dívidas auferido por pessoa jurídica em processo de recuperação judicial deverá compor a base de cálculo do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)“. Assim, tal ganho é considerado um acréscimo patrimonial tributável pela Receita. O credor perdoa, a Receita não.
Cabe ressaltar que a Receita considerou ineficazes os dois primeiros questionamentos, com base no inciso IX do art. 27 da IN RFB nº 2.058/21, uma vez que os referidos questionamentos estariam respondidos de forma expressa na lei.
Quanto ao terceiro questionamento, a resposta da Receita foi positiva, inclusive ressaltando que o artigo 6º-B da Lei nº 11.101/05 também se aplica para os casos de pessoas jurídicas com falência decretada.
Em relação ao quarto questionamento, a Receita afirmou que o legislador não condicionou a vigência da lei à sua regulamentação, tampouco determinou alguma exigência para a aplicação do artigo 50-A.
Das conclusões da solução de consulta, deve-se destacar o fato de a Receita Federal ter deixado claro o seu posicionamento no sentido de que incide o IRPJ e a CSLL sobre os perdões de dívidas obtidos no âmbito da recuperação judicial.
Por outro lado, cabe alertar que tal tributação, muitas vezes, não se dará em virtude do denominado “ganho”, mas sim pela reversão da dedução fiscal de custos ou despesas que não foram efetivamente despendidos pelo contribuinte, tendo em vista a extinção parcial ou total da dívida.
No entanto, a discussão permanece nos casos em que os valores não tenham sido deduzidos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. É justamente em tais situações que surge a discussão se há ou não acréscimo patrimonial tributável pelo IRPJ/CSLL.
Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a simples dispensa ou diminuição do valor de uma obrigação não é sinônimo de efetivo acréscimo patrimonial, pois não geraria, por si só, ingresso de renda disponível à empresa.
Em segundo lugar, ainda que o perdão de dívida aumente o patrimônio do contribuinte na contabilidade pela insubsistência de um passivo, lhe faltaria o caráter contraprestacional (por não haver nenhum comprometimento do patrimônio daquele que recebe o perdão) característico de um acréscimo patrimonial tributável [4].
Assim, não haveria renda, mas mera transferência patrimonial por ato de liberalidade do credor, o qual se assemelharia a uma doação. Esse argumento pode ser reforçado com base no RE nº 117.887/SP, no qual consta que o conceito de renda “implica reconhecer a existência de receita, lucro, proveito, ganho, acréscimo patrimonial que ocorrem mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso“.
Em contrapartida a esses argumentos, nos diversos julgados sobre o tema, tem sido mencionado o fato de que o desconto/perdão de dívida é uma redução de passivo sem contrapartida no ativo, que efetivamente representa acréscimo patrimonial. Além disso, quanto ao ponto do caráter contraprestacional, vale mencionar a doutrina de Carlos Augusto Daniel Neto, no seguinte sentido:
“A característica da aquisição a título gratuito não afeta a natureza de renda de um determinado ingresso, à luz dos conceitos adotados pelo art. 43 do CTN e incorporados pela CF/88, que contempla a teoria da renda-acréscimo.” [5]
Ademais, o cenário jurisprudencial sobre a tributação pelo IRPJ e CSLL das reduções de passivo na 1ª Seção do Carf não é favorável [6]. O Poder Judiciário, a exemplo da jurisprudência do TRF-4 especificamente sobre a tributação dos perdões de dívida na recuperação, também tem sido desfavorável ao contribuinte [7].
Por fim, cabe ressaltar que até a elaboração do presente artigo não há jurisprudência do STJ ou STF especificamente sobre a tributação dos perdões de dívida no âmbito da recuperação judicial, mas espera-se que os Tribunais Superiores venham a resolver essa controvérsia e afirmar se a Receita Federal deve ou não “perdoar”.
[1] NISHIOKA, Alexandre Naoki; CROSARA DELGADO, Carlos Henrique. O Plano de Recuperação Judicial e seus Principais Efeitos à Luz dos Direitos Contábil e Tributário (sobre as Receitas e a Renda): uma Análise Crítica Interdisciplinar. Revista Direito Tributário Atual. v. 49. p.28
[2] Conforme consta no PARECER Nº 165, DE 2020 – PLEN/SF “A Emenda nº 55 propõe isenção de tributos federais sobre valores correspondentes à redução de dívidas obtida no âmbito do processo de recuperação judicial.”
[3] Disponível em: Visão do STJ sobre temas societários e recuperação judicial – YouTube 1h16min10seg – 1h38min53seg
[4] Discussão semelhante a esta se dá nos casos da tributação das subvenções para investimento. Conferir: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 159.
[5] NETO, Carlos Augusto Daniel. A vexata quaestio das subvenções e uma análise crítica das críticas. In: Martins, IVES GANDRA DA SILVA; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coords.). Caderno de Pesquisas Tributárias nº 48: Subvenções para investimento – comentários à Lei nº 14.789/2023. p. 117-141
[6] Acórdãos nº 1401-001.114, 101-97.057, Acórdão n. 1802-001.295, Acórdão n. 1101-001.115 e 1401-002.368
[7] Processos nº 5071218-59.2021.4.04.7100, 5017289-05.2021.4.04.7200, 5019567-32.2019.4.04.7108, 5028461-75.2020.4.04.7200, 5017835-06.2020.4.04.7100 e 5019567-32.2019.4.04.7108.
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