Consultor Tributário

Eu te disse, eu te disse!

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

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5 de junho de 2024, 13h14

Esses dias têm me lembrado muito de desenho animado a que assistia quando criança. Chamava-se, na versão em português brasileiro, “carangos e motocas”, e a história dos episódios invariavelmente girava em torno de uma gangue de motocicletas, devidamente antropomorfizadas, perseguindo um carrinho vermelho, fazendo mil planos para capturá-lo. O roteiro era previsível. Sempre, lá pelo meio de cada episódio, uma moto pequenininha percebia uma falha no plano, e começava a avisar os chefes, mas estes não lhe davam ouvidos. Ao fim, quando tudo dava errado, exatamente por conta da falha que a motoquinha havia antevisto, ela começava a repetir: – Eu te disse! Eu te disse!

O envio do projeto de lei complementar que inicia a regulamentação da EC 132/2023, pelo Executivo ao Legislativo, fez recordar o citado desenho de uma maneira bastante forte, pois há algum tempo estudiosos do Direito Tributário vêm alertando para alguns problemas da tributação do consumo não cumulativa no país, e do risco de serem mantidos, ou mesmo piorados, apesar da “graaande reforma” que se está fazendo nessa parte de nosso sistema tributário.

Além das críticas e advertências feitas por diversos especialistas ilustres, este colunista já havia alertado, aqui na ConJur (clique aqui), e mais de uma vez (clique aqui), para o risco de a reforma amplificar, em vez de diminuir, os problemas da tributação do consumo. E se apontaram, na ocasião, especialmente dois: (1) a repetição do indébito, e o absurdo que é o artigo 166 do CTN, na visão que lhe deu a jurisprudência, que malfere frontalmente o direito de acesso à jurisdição consagrado no artigo 5o, XXXV, da CF/88, pois nega tanto ao sujeito passivo legalmente indicado como tal, como ao suposto “contribuinte de fato”, o acesso à jurisdição para obter a tutela da relação tributária; e (2) a não cumulatividade de base ampla e creditamento também supostamente amplo, que no plano da regulamentação e do enforcement sofreria restrições depois que a alíquota tivesse ido às alturas por causa dos créditos, quando então estes passariam a ser vistos como um favor ou uma “desoneração indevida”.

Referidas pontuações não mereceram sequer resposta, mesmo quando feitas em fóruns supostamente dedicados a debater a reforma. E, agora, com o projeto… Por favor, leitora, veja de novo o vídeo da motoquinha. Nada resume melhor o sentimento.

Dois equívocos

Quanto ao creditamento, o projeto de lei complementar incorre em dois equívocos graves: o primeiro, acha que tem liberdade para “definir” o que significa “usar”, “consumir” e, pior, “de forma pessoal”. E o faz não levando em conta o que se faz com o bem (usar ou consumir), e quem faz (alguém em situação alheia à atividade tributada). Não: escolhem-se alguns bens, como obras de arte ou bebidas, ou armas, e alguns serviços, como os de plano de saúde e educação, para simplesmente dizer que são de uso e consumo sempre pessoais, pretendendo que sejam mesmo quando não forem. E pior: ainda se delega ao regulamento, em claríssima ofensa ao princípio da legalidade, o papel de indicar outros itens ou situações que seriam magicamente considerados “de uso e consumo pessoal”.

Spacca

No grande evento do Ibet do ano passado, Rafael Pandolfo fez palestra em que previu exatamente isso. Alguém poderia achar que ele tinha uma bola de cristal, mas talvez seja só a experiência de quem conhece o fisco brasileiro e já amargou coisa parecida com o ICMS (vejam o artigo 33 da LC 87/1996, que dispensa comentários) e com o PIS e a Cofins (e incontáveis debates sobre o que é “insumo”, mesmo sendo amplíssima a base de incidência).

Quando setores da academia e de profissionais ligados aos agentes econômicos, agora, passaram a criticar o texto do projeto de lei complementar, ouvem a resposta de que não há motivo para “desonerar” itens como os planos de saúde, por exemplo, ou para que “a sociedade” pague por eles, até mesmo porque as empresas do Simples, e as pessoas físicas não contribuintes do IVA-Dual, não teriam esse direito. Seria preciso respeitar a isonomia. O argumento é duplamente errado.

Primeiro que por ele, se procedente fosse, seria o caso de acabar com TODOS os créditos, pois empresas do Simples não tomam créditos, e pessoas físicas não contribuintes do IVA-Dual também não. Créditos de coisa nenhuma, aliás, e não só de gastos com plano de saúde. Só que essas pessoas também não estarão sujeitas ao IVA-dual por elevadíssima alíquota, tributo que incide sobre absolutamente tudo, visto que a lei define como serviço “qualquer coisa que não seja operação com bens”, até mesmo operações não onerosas.

Crédito como favor

A própria definição (que significa separar o que está dentro, do que está fora) de qualquer hipótese de incidência perde o sentido diante de tamanha amplitude. Até escrever artigos para a ConJur, mesmo de forma não remunerada, poderia em tese se submeter a uma tributação de base tão ampla. Bastaria que quisesse o legislador, pois na Constituição para isso não haveria mais limite. Entretanto, quando coerentemente se cobra amplitude também no crédito, este passa – eu te disse! eu te disse! – a ser considerado um favor, uma “desoneração”, ou uma forma de “a sociedade” pagar uma despesa que deveria ser do empresário.

A tônica do crédito como favor, aliás, não aparece apenas nas arbitrárias definições do que vem a ser uso e consumo pessoal. A própria devolução de eventuais saldos credores, e a maneira como a conta gráfica será gerida, de modo eletrônico, com os débitos sendo exigidos de modo imediato (via split payment, o qual dará ao vendedor apenas o líquido da operação, destinando ao Fisco o equivalente à alíquota total incidente sobre a saída), e os créditos devolvidos conforme os critérios de um algoritmo (programado por quem? Seguirá quais fins? Partirá de quais critérios? Clique aqui), em prazos que podem chegar a 270 dias. Quando da judicialização de possíveis óbices colocados ao creditamento, aguarde só, leitora: juízes, desembargadores e ministros tratarão o crédito como favor, como algo por meio do qual “a sociedade” estaria financiando as atividades privadas do empresário… A neutralidade ficará só no belo discurso inicial.

Incoerências

O mesmo se dá com o artigo 166 do CTN, um monumento à (ou da) incoerência jurisprudencial brasileira, e que será uma barreira intransponível a quem achar ruim o critério do algoritmo para reter o imposto ou calcular seus créditos, judicializando possível pedido de restituição. Os assuntos parecem não relacionados, mas o são, e inteiramente. Presume-se sempre haver a “repercussão”, de modo a impor ao contribuinte “de direito” o ônus de provar que ela não ocorreu, mas não se reconhece àquele que presumivelmente pagou o tributo, o contribuinte de fato, o direito de tê-lo restituído, quando pago indevidamente.

O rol de incoerências é enorme, chegando a cobrar-se do contribuinte de direito o imposto, mesmo quando o consumidor final é inadimplente, porque o “de direito” seria o “verdadeiro” contribuinte, titular de dívida que é própria, mas, quando se dá o inverso, e o consumidor paga pelo que comprou, mas o comerciante incorre em inadimplência com o Fisco, diz-se que há “apropriação” do imposto pago pelo consumidor e que o contribuinte “de direito” deveria apenas “repassar” à Fazenda. Em suma, mecanismo contraditório e incoerente criado para que ninguém possa buscar a reparação, em juízo, de uma cobrança de tributo ilegal, ou inconstitucional, nem o contribuinte de fato, nem o de direito, algo que já foi bastante examinado em outros momentos (clique aqui), e que não é preciso aprofundar de novo aqui.

A lição da Corte de Justiça Europeia

Fica apenas o registro de que o projeto de lei complementar se limita a determinar, de modo expresso, a aplicação do artigo 166 do CTN aos pedidos de restituição de IVA-Dual, acrescentando mais uma exigência que não consta do CTN: que o autor da demanda de restituição prove que seu comprador, mesmo que não tenha sofrido o repasse financeiro, tampouco tenha tomado créditos da operação respectiva. Quanto tanto se fala em importar experiências estrangeiras sobre o IVA, seria o caso de pelo menos se aprender com o que a Corte de Justiça Europeia decidiu a respeito do tema, afastando enfaticamente a famigerada tese do passing on defense subjacente a normas como a do artigo 166 do CTN, porquanto destinadas a tirar toda a efetividade do direito material violado por uma cobrança indevida (clique aqui).

Expressão doce

Razão tinha meu saudoso pai, que dizia ser a não-cumulatividade uma expressão doce, porque induz quem a ouve a pensar que haverá redução de carga, usada assim para seduzir a sociedade e torná-la receptiva e complacente com reformas prometidas para trazer simplicidade e desoneração, mas que invariavelmente trazem onerosidade e complicação. Ele infelizmente partiu há mais de um ano (clique aqui), mas, se estivesse entre nós, e pudesse ler o texto da EC 132/2023 e do PLP 68/2024, ele seguramente diria, com uma voz bastante mais grave que a da motoquinha: Eu te disse!

Autores

  • é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ex-coordenador (2012/2016) do programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) da UFC, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena, na Áustria.

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