Opinião

Desafios da defesa de agentes públicos pela advocacia pública

Autor

  • é advogado pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp) procurador do Estado de Rondônia diretor da Procuradoria Setorial da Procuradoria Geral do Estado de Rondônia junto à Secretaria de Estado da Saúde ex-defensor público do Estado do Acre e ex-servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Acre no cargo de analista processual.

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5 de junho de 2024, 15h22

Embora seja uma prática consolidada no cotidiano administrativo, de tempos em tempos surgem críticas à atribuição legal da defesa dos agentes públicos pela advocacia pública. Os argumentos contrários ganham relevância especialmente quando os fatos envolvem figuras políticas publicamente destacadas.

Fernando Frazão/Agência Brasil

O caso mais recente envolveu a polêmica defesa do ex-procurador da República Deltan Dallagnol pela Advocacia-Geral da União (AGU), amplamente noticiado pela imprensa.

Não se pretende aqui falar especificamente desse caso. Mas parece uma oportunidade para refletir sobre essa atribuição legal, para que ela não seja diluída pelo caldeirão político que permeia a sociedade.

Lição do especialista

A advocacia pública exerce todas as prerrogativas da advocacia pública em defesa do respectivo ente federativo. Porém, os entes públicos são pessoas abstratas, razão pela qual o fundamento teórico da atuação do Estado é a teoria da imputação volitiva do jurista alemão Otto Gierke. No Brasil, a questão é bem exposta pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello (grifo nosso):

“Órgãos são unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado. Por se tratar, tal como o próprio Estado, de entidades reais, porém abstratas (seres de razão), não têm nem vontade nem ação, no sentido de vida psíquica ou anímica próprias, que, estas, só os seres biológicos podem possuí-las. De fato, os órgãos não passam de simples repartições de atribuições, e nada mais.

Então, para que tais atribuições se concretizem e ingressem no mundo natural é necessário o concurso de seres físicos, prepostos à condição de agentes. O querer e o agir destes sujeitos é que são, pelo Direito, diretamente imputados ao Estado (manifestando-se por seus órgãos), de tal sorte que, enquanto atuam nesta qualidade de agentes, seu querer e seu agir são recebidos como o querer e o agir dos órgãos componentes do Estado; logo, do próprio Estado. Em suma, a vontade e a ação do Estado (manifestada por seus órgãos, repita-se) são constituídas na e pela vontade e ação dos seus agentes; […].” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 33. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 144)

Atribuição da advocacia pública

Por conseguinte, em última análise, ao defender os atos praticados por seus agentes públicos, o Estado realiza a própria defesa e não de terceiro. Esse mesmo raciocínio é levado em consideração no Manual de Representação Extrajudicial da União, de agentes e ex-agentes públicos, elaborado pela AGU [1].

Nesse sentido, é correta a previsão do artigo 22 da Lei 9.208/1995, que autoriza a AGU a defender os agentes públicos “quando vítimas de crime, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público”.

A atribuição ganhou mais força ainda com a Lei 14.133/2021, pois o novo estatuto de licitações passou a prever expressamente a possibilidade dessa defesa em seu artigo 10, quando o caso envolver “ato praticado com estrita observância de orientação constante em parecer jurídico”.

O atual ministro Luís Roberto Barroso, enquanto procurador do estado do Rio de Janeiro, proferiu o Parecer nº 01/2007, publicado na revista da PGE-RJ, edição nº 62, de 2007, sob o título “Demandas ajuizadas pelo Ministério Público com o intuito de responsabilizar servidores estaduais por danos ao meio ambiente: defesa dos agentes públicos pela Procuradoria Geral do Estado” [2], concluindo que:

“A atribuição, ao Estado, da defesa de agentes públicos acionados por força do exercício da função pública é uma opção política legítima, que pode ser implementada pelo Legislativo e Executivo estaduais. Trata-se de um mecanismo capaz de minimizar o prejuízo que o abuso na propositura de demandas contra esses agentes acarreta para bens constitucionais, como eficiência e promoção do interesse público. O mecanismo é compatível com o princípio da isonomia, destinando-se, na realidade, como outros, a garantir condições de desempenho adequado da função pública.”

No nosso entendimento, a própria segurança jurídica legitima a atribuição.

Com efeito, mostra-se contraditório o gestor público seguir um posicionamento da consultoria jurídica do respectivo ente federativo, mas posteriormente ser jogado à própria sorte quando há um processo apuratório em seu desfavor justamente por ter acolhido aquele entendimento.

O esperado é que esse mesmo órgão sustente seu posicionamento nas demais esferas do poder público, dando apoio institucional ao gestor que agiu em conformidade com a orientação da Casa. Além disso, como visto, em última análise, a advocacia pública estaria defendendo o seu próprio posicionamento.

Respaldo pelo próprio Estado

E quando a defesa envolve a atuação no exercício da função, em que não há uma manifestação prévia?

Se o Estado atribui determinada função a agentes públicos (exemplo: instaurar um inquérito policial ou propor ação penal), é irrazoável esperar que tenham que contratar advogados para se defender simplesmente por exercer o respectivo múnus.

Sabe-se que os agentes públicos em geral estão sujeitos à exposição e riscos de responsabilização, considerando que muitas vezes as decisões desagradam interesses individuais. Se tiverem que contratar advogado particular para toda e qualquer representação, a medida equivaleria a realizar despesas para exercer a respectiva função.

De toda forma, o ente estatal tem o interesse de que seus agentes possam exercer livremente suas funções. O respaldo pelo próprio Estado nos parece ter uma importante função de mitigar os problemas relacionados ao infeliz excesso de parte dos órgãos do controle, fato que inclusive tem sido objeto de estudo pela comunidade jurídica por resultar no “apagão das canetas”.

Dolo

Obviamente, atuação dolosa ou fora das funções não legitimam a defesa pela advocacia pública. Um agente público que recebe propina, por exemplo, não pratica ato no exercício da função, ao contrário, lesa os interesses do Estado, razão pela qual inexiste qualquer interesse estatal na sua defesa. Nesse caso inclusive poderia ser réu em uma ação de improbidade administrativa proposta pela Fazenda Pública, considerando que o Supremo Tribunal Federal reconhece a legitimidade para propositura da ação pelo ente lesado [3].

Nem sempre haverá uma linha clara entre a existência ou não desse interesse estatal no patrocínio. Isso significa que a defesa dos agentes públicos não deve ser automática e decorrer do simples pedido. É preciso fazer um criterioso juízo de admissibilidade, uma avaliação transparente sobre a pertinência da imputação com os interesses estatais e o consequente cabimento da defesa.

Não nos parece, porém, que a simples acusação de ato praticado com desvio de função seja suficiente para o patrocínio pela advocacia pública. Entender diferente seria conferir poder ao acusador de definir se há ou não pertinência institucional para a defesa.

Motivação no processo de decisão

Por essa razão, é preciso que a representação seja precedida de uma análise minuciosa dos elementos circunstanciais da imputação ao agente, inclusive se for o caso com prévio acesso ao processo ou ao procedimento de apuração dos fatos, para só então definir se haverá ou não a defesa institucional.

Obviamente, a situação ainda pode gerar alguns resultados indesejados, a exemplo de uma etapa de uma investigação policial a princípio legitimar a atuação, mas, após a colheita de novos elementos, os fatos apontarem ulteriormente para uma incompatibilidade de defesa.

Nesse caso, o correto será a renúncia pelo órgão de advocacia pública. Para evitar conflitos e outras controvérsias jurídicas, o agente solicitante deve estar expressamente ciente desse possível cenário e da inexistência de um direito subjetivo de defesa pelo órgão.

Tudo isso reforça a necessidade de todo o processo de atuação em favor do agente público ser devidamente motivado, de modo que as escolhas do órgão de advocacia pública sejam transparentes e continuamente avaliadas considerando o caso concreto. Sem descolar dos preceitos do Estado democrático de Direito, a chave que legitima a defesa é a motivação no processo de decisão.

Se a atribuição não for exercida com transparência e devidamente motivada, ela pode se torna um privilégio odioso. Isto é, agentes públicos que cometem irregularidades ou desvios mas ainda têm o privilégio de serem defendidos pela advocacia pública. No entanto, apesar desses fatos resultarem em merecidas críticas, pensamos que o problema não está na atribuição em si, mas sim na dosagem do seu exercício.

Por fim, o ideal é que o procedimento esteja devidamente regulamentado em cada órgão da advocacia pública. Em âmbito federal, há a Portaria Normativa AGU nº 94, de 26 de maio de 2023, que disciplina os procedimentos relativos à representação extrajudicial da União, relativamente aos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo federais.

 


[1]      Disponível em https://www.gov.br/agu/pt-br/assuntos-1/Publicacoes/cartilhas/manualderepresentacaoextrajudicial.pdf. Acesso em 31.5.2024.

[2]      Disponível em: < https://pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTM1MA%2C%2C>. Acesso em: 31.5.2024.

[3]      ADI 7042

Autores

  • Pós-graduado em direito constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. É Procurador do Estado de Rondônia e Advogado. Atualmente é Diretor da Procuradoria Setorial da Procuradoria Geral do Estado de Rondônia Junto à Secretaria de Estado da Saúde. Ex-Defensor Público do Estado do Acre. Ex-servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Acre, no cargo de analista processual.

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