Opinião

As regras de competência protegem quem?

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5 de junho de 2024, 6h30

O sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal informou, no último dia 31, que na PET 12.604, autuada por prevenção ao INQ 4.781/DF, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a Procuradoria Geral da República requereu ao relator, e teve por este deferidas buscas e apreensões e prisões preventivas em face de dois investigados por “vários crimes punidos com reclusão, em especial, […] o delito tipificado no art. 359-L do Código Penal (abolição do Estado Democrático de Direito, tipificada)[1].

Rosinei Coutinho/SCO/STF
Alexandre de Moraes

Continua o material com o seguinte esclarecimento, citando entre aspas trecho da manifestação do procurador-geral da República, Paulo Gonet: “o conteúdo das mensagens, com referências a ‘comunismo’ e antipatriotismo’, evidencia com clareza o intuito de, por meio das graves ameaças a familiares do ministro Alexandre de Moraes, restringir o livre exercício da função judiciária pelo magistrado do Supremo Tribunal Federal à frente das investigações relativas aos atos que culminaram na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito em 8.1.2023”.

Sem conhecer os autos, o que sempre traz uma dose enorme de incerteza, há segurança suficiente para se definir dois aspectos: o relator do caso, a quem foi requerida e deferiu as medidas judiciais, por ser relator do caso, é a mesma pessoa que teve seus familiares envolvidos no crime, como vítimas, a fim de constranger aquele ministro no exercício de sua função pública.

Deixe-se de lado, por não ser o objeto deste pequeno articulado, o mérito quanto ao cabimento da decretação das medidas. Isso efetivamente exigiria, para um comentário responsável, melhor conhecimento sobre os elementos de informação colhidos na investigação e suas suficiências para demonstrar de forma segura (i) materialidade, (ii) consistência de autoria e (iii) a presença clara de requisitos de cautelaridade específicos para cada uma das medidas requeridas e deferidas (de um lado, as buscas e apreensões e, de outro, como medida extrema, as prisões preventivas).

Foque-se, no que aqui importa, nas normas de fixação ou afastamento de competência, mais especificamente, as expostas no artigo 252 do Código de Processo Penal e referentes às causas de impedimento de atuação do juiz.

Há posição assentada em doutrina e jurisprudência de muitas décadas que se trata de causa objetiva de afastamento do juiz se ocorrentes uma das possibilidades nele previstas. Desde 1940 o artigo vem assim redigido em seu caput e inciso V: “art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: […] V – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito”.

As informações postas no sítio do STF informam que o ministro é, ao mesmo tempo, relator da investigação em curso e teve seus familiares ameaçados para que ele deixasse de desempenhar sua função.

Exceção à regra

O Código de Processo Penal, por ser de 1940 — e já se faz tarde uma reforma completa neste diploma legal —, não traz exceção à regra clara que afastaria o ministro da possibilidade de atuar como magistrado no feito que envolvesse seus familiares. Tal situação, aparentemente, configuraria uma comezinha violação de regra antiga e sabida de todos, pois ofende ao senso comum de qualquer cidadão que alguém seja juiz de causa que envolva como vítima seus familiares.

Todavia, a experiência também demonstrou que pessoas mal-intencionadas e desejosas de afastamento do magistrado que as julga, diretamente ou por terceiros, criam (artificial e dolosamente) situações ilegais ou mesmo criminosas, para afastar o magistrado que atua na causa utilizando-se do mesmo dispositivo processual penal.

Casos, por exemplo, em que os investigados fazem ofensas ao magistrado ou a seus familiares, mesmo fora dos autos, na vida cotidiana, para afastá-lo de uma causa em curso. O Código de Processo Civil atual, reformado em 2015, traz uma solução para essas hipóteses de desvio da lei, criando uma exceção em causa de impedimento similar àquela já referida do artigo 252.

Preceitua esse código quanto à mesma causa de impedimento: “art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: […] IV – quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até terceiro grau, inclusive; […]”. Mas, no § 2º deste mesmo artigo, de modo correto, excepciona a regra para evitar a manipulação de julgador e fixa: “§2º. É vedada a criação de fato superveniente a fim de caracterizar impedimento do juiz”.

Assim, o nó górdio da questão é saber, examinando os autos de investigação conduzida pela Procuradoria Geral da República, se os ditos crimes foram ou não cometidos visando a burlar a regra de impedimento, criando-os ou não artificialmente. Se sim, e a intenção foi usar de maneira espúria a regra do inciso V, do artigo 252, CPP, deve-se aplicar, subsidiariamente, o citado § 2º, do artigo 144, CPC, conforme permite o artigo 3º daquele diploma legal.

Se o ministro examinou de modo exauriente a investigação quanto à matéria que compôs suas decisões de busca e apreensão e de prisões preventivas, pode perceber de início se o caso concreto no qual decidia tinha ou não sido feito para burlar a regra do artigo 252, CPP. Essa análise deve(ria) ter sido feita antes de expedir as primeiras decisões gravosas de natureza cautelar. Se não o fez, correu o risco de decidir em causa para a qual estaria impedido desde o início, sequer podendo atuar na investigação daqueles fatos, porque seria ilegal. Deveria, de início, ter redistribuído o feito a outro magistrado, visto que a condição da vítima não cria, nessas hipóteses, vis attractiva de competência para o STF.

A questão ganha em maior complexidade quando se lê a notícia do mesmo sítio eletrônico do STF do dia 1/6/24, e vamos dividi-la em duas partes [2]. Na primeira, em continuidade das ideias anteriores, vamos analisar — no que é possível a partir do brevemente relatado — se os fatos estão ou não relacionados com a burla da regra do inciso V, artigo 252, CPP. A segunda parte, refere-se à manutenção das prisões preventivas em audiência de custódia por determinação do ministro relator.

Quanto à primeira parte, diz o último trecho da nota oficial do STF do dia 1º passado: “[o] ministro manteve a relatoria da investigação do crime relacionado ao art. 359-L do código penal na PET 12604 e se declarou impedido em relação ao julgamento dos crimes de ameaça e perseguição, determinando a imediata extração de cópias e redistribuição dos autos para a investigação desses crimes”.

Esse trecho da notícia afirma que o ministro se declarou impedido. Logo, alguma das regras do artigo 252 é aplicável ao caso. Assim, legítimo se supor, sem conhecer os autos, que a exceção do §2º do artigo 144, CPC, não fora detectada no exame inicial em que determinara as medidas cautelares, o que induz à conclusão de que a decisão pode ser ilegal, por ter atuado em sua função jurisdicional quando estava impedido para tanto. Tal questão, ainda em aberto, ao menos até o conteúdo dos autos ser publicizado, leva-nos à segunda parte da nota oficial do STF que se quer destacar.

A mesma notícia do dia 1º passado abre com a seguinte informação: “[o] ministro Alexandre de Moraes determinou neste sábado (1) a manutenção das prisões preventivas de [XX] e [YY], acusados de diversos crimes, entre eles abolição do estado democrático de direito. As prisões foram solicitadas pela Procuradoria Geral da República (PGR)[3] (por respeito à presunção de inocência, trocamos os nomes citados na matéria por letras).

Observando o noticiado quanto ao segundo grupo de decisões do Ministro, exarado em audiência de custódia e, portanto, dias após ter determinado as medidas cautelares e com mais tempo para exame, é no sentido de que há sim aplicação da exceção do §2º, do artigo 144, CPC, pois seria a única forma de um juiz se manter decidindo e exercendo sua função em matéria tão gravosa como o é a prisão preventiva em caso claro de seu impedimento.

Tal conclusão apresenta uma contradição com o texto já destacado do final da matéria do dia 1º, no qual reconhece estar impedido e afasta-se do caso. Saber se a causa estava ou não sob o pálio da exceção citada é fundamental, pois determinar prisão contra a lei pode configurar crime de abuso de autoridade [4]. Logo conhecer (i) os elementos concretos dos autos, (ii) até quanto era possível saber os fatos ao decidir e manter as prisões e, ainda, (iii) sua intenção ao assim agir, é de importância para se atestar a lisura da sua atuação e legalidade das medidas cautelares determinadas.

Regras de competência

Para além do caso concreto, mas partindo dele, a questão que se coloca é: se isso pode ocorrer em muitas situações e com todos os magistrados do país que atuem na área criminal, como eles devem agir em situações que tais? A resposta deve ser obtida com outra pergunta: as regras de competência são feitas para proteger quem?

Spacca

Talvez o primeiro e mais comum impulso seja responder a esta última questão afirmando ser qualquer cidadão submetido ao julgamento; o que seria uma reposta correta, mas não exauriente. Claro que ter um julgador imparcial é fundamental e, para isso, o mínimo que se espera é que não tenha interesses pessoais, políticos, econômicos ou familiares envolvidos na causa, pois ninguém decide bem sob esses influxos.

Isso nos leva a completar aquela resposta com algo menos intuitivo: as regras de competência, notadamente as de impedimento e suspeição, assim como as de natureza constitucional, protegem aos magistrados e, em última análise, ao próprio Poder Judiciário, como instituição que não pode ter sua imparcialidade sequer colocada em dúvida. Tudo para evitar o que o passado próximo já nos demonstrou dos danos à Instituição do Judiciário quando regras de competência são manipuladas para atender ao alvedrio de déspotas travestidos de juízes-paladinos.

Se desatender regras de competência causa males profundos a todos, cidadãos, imputados e julgadores, como agir em casos cujos fatos são limítrofes de uma ou outra aplicação de regra de impedimento ou de suspeição? A resposta é simples e, em regra, aplicada diariamente pelos milhares de juízes do Brasil: atua-se para preservar a regra que melhor dissipe aquela dúvida em favor da isenção e imparcialidade do julgador na causa.

A resposta ora oferecida é consoante com o 2º dos Princípios de Bangalore, [5] bem como com os artigos 11 [6] e 12 [7] do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, e próxima ao quanto disposto no artigo 8º do Código de Ética da Magistratura Nacional [8]. Como afirmado pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto vista no RE 1400119 AgR/SC, essas orientações “buscam a adoção de parâmetros mínimos do comportamento dos magistrados quanto aos deveres inerentes à função exercida, englobando a aparência e a efetiva imparcialidade[9].

Assim, desde o primeiro momento em que o juiz se deparar com possíveis situações fáticas que possam macular ou mesmo pôr em dúvida a sua imparcialidade, por regras de impedimento, de suspeição ou mesmo de cariz constitucional ou processual de autorização de legítimo exercício jurisdicional, melhor decidir em favor de todos, ou seja, dissipar a dúvida aplicando a regra que melhor protege a imparcialidade.

Protegerá, assim, a si próprio, a instituição à qual pertence e deve preservar, os imputados a serem julgados e os cidadãos que devem ter segurança no Poder Judiciário. Sempre haverá um magistrado tão capaz e corajoso o suficiente para assumir a tarefa em seu lugar. Um magistrado deve zelar por não ter que se esforçar para defender sua imparcialidade e isenção para os julgamentos em casos de efetiva dúvida.

Trazendo ao contexto doces palavras de John Donne, em seu poema “por quem os sinos dobram” [10], nunca devemos ter dúvidas a quem protegem as regras de competência, elas sempre protegem a todos nós!

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[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=543177&ori=1. Acesso em: 03 jun. 2024.

[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=543257&ori=1 . Acesso em: 03 jun. 2024.

[3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=543257&ori=1 . Acesso em: 03 jun. 2024.

[4] Lei 13.869/19: “Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:  Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de: I – relaxar a prisão manifestamente ilegal; II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.”

[5] Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Princípio 2: Imparcialidade. “Imparcialidade é essencial para o exercício correto do cargo judicial. Aplica-se não apenas à decisão, mas também ao processo decisório” (Disponível em: https://www.unodc.org/documents/ji/training/bangalore_cards_pt.pdf . Acesso em: 03 jun. 2024).

[6]Art. 11 O juiz tem a obrigação de abster-se de intervir nas causas em que veja comprometida a sua imparcialidade ou naquelas que um observador razoável possa entender que há motivo para pensar assim.

[7]Art. 12 O juiz deve procurar evitar as situações que, direta ou indiretamente, justifiquem seu afastamento da causa.”

[8]Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.

[9] RE 1400119 AgR, Ministro Relator Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 13-04-2023, publicado em 13/06/2023.

[10] DONNE, John. Meditações. Edição bilíngue. Tradução por Fabio Cyrino. São Paulo: Landmark, 2012. XVII. Meditação. “Nunc lento sonitu dicunt, morieris. Agora este sino, tocando tão suavemente para os outros, para mim afirma: ‘vós deveis morrer’”: ’Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado; todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós’”.

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