Contas à Vista

Execução de contratos administrativos entre empenhos e precatórios (final)

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

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4 de junho de 2024, 8h00

Chega-se ao quarto e final episódio desta minissérie sobre a execução dos contratos administrativos, analisando a relação entre empenhos e precatórios, na qual se propõe outra interpretação para o artigo 100, CF, que ora se denomina de contemporânea, como contraponto à tradicional-dominante.

Os episódios anteriores podem ser lidos aqui (parte 1, parte 2 e parte 3).

Espero que gostem da minissérie e apreciem as conclusões.

Tão logo seja publicada a versão acadêmica da íntegra do texto, poderá ser visualizada aqui, com notas de rodapé e bibliografia, necessárias para sua completa compreensão.

V – Uma interpretação contemporânea para o artigo 100, CF

Exposto o raciocínio ancorado na previsibilidade financeira e na segurança jurídica para as partes envolvidas (empresas e Poder Público), conforme as diferentes programações orçamentárias para as obrigações contratuais (garantidas pelo empenho no orçamento corrente) e para as obrigações judiciais (garantidas pelos precatórios, a serem inseridos em orçamento futuro), deve-se revisitar o artigo 100 da Constituição para ver se a exegese é consentânea com o que consta do texto.

Transcreve-se seu caput para facilitar o entendimento: “Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.

O ponto fulcral para sua análise é o advérbio “exclusivamente”, que condiciona toda a regência normativa.

A forma tradicional-dominante de interpretação do artigo 100 concede exclusividade à toda e qualquer decisão que se enquadre na hipótese estabelecida. Conforme esta interpretação, a palavra (exclusivamente) se refere no texto à exclusividade das decisões transitadas em julgado contra o Poder Público que gerem obrigação de pagar, submetendo-as ao regime de precatórios.

Assim, toda e qualquer decisão proferida contra o Poder Público, transitada em julgado, que gere obrigação de pagar, deve ser exclusivamente executada mediante precatório. Esta interpretação parte do entendimento de que o texto está redigido desta forma: “As sentenças judiciárias que gerem pagamentos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos respectivos créditos, proibida …”. Porém, não é exatamente isso que consta do texto da norma.

Outra interpretação do artigo 100, que ora se denomina de contemporânea, pode ser feita reconhecendo exclusividade ao modo de pagamento mediante precatório. No caso, a palavra (exclusivamente) delimita que a decisão proferida contra o Poder Público, transitada em julgado, que tenha gerado obrigação de pagar, deverá ser executada mediante precatório, o qual será pago exclusivamente na ordem cronológica e a conta dos respectivos créditos.

Nesta leitura, a exclusividade se refere ao modo de pagamento dos precatórios, e não à exclusividade das decisões judiciais proferidas contra o Poder Público. Para essa leitura, constata-se que a norma prescreve exclusividade ao modo pelo qual os pagamentos são realizados. Confira-se o exato texto da norma acima transcrita. Observa-se que a exclusividade se refere ao modo pelo qual os pagamentos serão realizados, não determinando que toda e qualquer sentença judiciária seja feita exclusivamente por meio de precatórios.

Spacca

A interpretação tradicional-dominante vem sendo feita rotineiramente, usando tão somente o método gramatical, admitindo que todo e qualquer pagamento devido pelo Poder Público em virtude de sentença judiciária será feito exclusivamente por meio de precatórios. O texto do caput sequer menciona a expressão “transitada em julgado”, ínsita ao sistema, o que só aparece nos parágrafos do artigo 100, CF. Para essa interpretação, toda e qualquer decisão judicial (ou arbitral) necessária e exclusivamente será implementada por meio de precatórios.

A interpretação contemporânea do texto expõe que os pagamentos devidos pelo Poder Público em virtude de sentença judiciária (transitada em julgado) serão realizados exclusivamente: (1) na ordem cronológica, (2) à conta dos créditos respectivos; sendo proibida a identificação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias.

Esta interpretação encontra-se plenamente adequada ao texto do artigo 100, CF, sendo que a exclusividade não se refere às decisões judiciais (ou arbitrais), mas ao modo de pagamento desses valores, que exclusivamente serão feitos de maneira a preservar a cronologia de sua apresentação e à conta dos créditos respectivos. Os precatórios só serão utilizados se os valores a que o Poder Público for condenado a pagar não estejam antecipadamente reservados no orçamento, por meio de empenho.

O advérbio exclusivamente se refere ao modo pelo qual essas decisões devem ser implementadas, isto é, os precatórios deverão ser expedidos exclusivamente observando a ordem cronológica e a conta dos respectivos créditos. Adotada esta nova interpretação, caso seja necessário usar o sistema de precatórios para o pagamento de sentenças judiciárias, estes seguirão exclusivamente as regras mencionadas, conforme reza o texto: “os pagamentos (…) far-se-ão exclusivamente na ordem…”.

De acordo com essa interpretação contemporânea, havendo decisão transitada em julgado, e sendo necessário programar orçamentariamente o pagamento, deverá ser expedido precatório, que seguirá exclusivamente a ordem cronológica, à conta dos respectivos créditos, mantida a proibição de designação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias. Esta interpretação respeita o ato administrativo-financeiro do empenho, tornando desnecessária reprogramação orçamentária para expedir um precatório visando pagar o que de antemão já estava reservado e garantido para esta finalidade.

Para comprovar a adequação desta interpretação contemporânea, passemos à sua análise considerando os diversos métodos e tipos de hermenêutica normativa, bem como a aplicação e a subsunção da norma ao Direito.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 274 e ss) ensina que não se deve ater a apenas um método interpretativo para se realizar a hermenêutica das normas, sendo estes apenas “regras técnicas que visam à obtenção de um resultado”, que, embora não seja possível circunscrevê-los rigorosamente no Direito, deve-se tomá-los esquematicamente para a exposição.

Carlos Maximiliano, cerca de 100 anos antes, adotava posição semelhante ao consignar que “a interpretação é uma só; não se fraciona”, sendo exercitada por “vários processos”, aproveitando-se de “elementos diversos”. E afirma, com convicção, que “deve o direito ser interpretado inteligentemente” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947, p. 136 e 205).

O ponto de partida da interpretação contemporânea do artigo 100, CF, é a ótica sintática ou gramatical, pela qual, conforme demonstrado, o advérbio “exclusivamente” se refere à ordem de expedição dos precatórios, e não a uma exclusividade para a execução de toda e qualquer sentença judicial transitada em julgado que determine pagamentos pelo Poder Público. Porém, como mencionado, esse é a apenas o ponto de partida para a contemporânea interpretação que se faz do artigo 100, CF, e não o ponto de chegada, como na interpretação tradicional-dominante, que se resume à interpretação gramatical.

Usando-se o método sociológico, por meio do qual o intérprete deve “verificar as funções do comportamento e das instituições sociais no contexto social em que ocorrem”, verifica-se que a interpretação tradicional-dominante sobre o artigo 100 acarreta insegurança jurídica e financeira para todas as partes envolvidas em contratações administrativas, e desconsidera completamente o que foi realizado no âmbito financeiro pela Administração Pública, ao empenhar aqueles valores.

A insegurança é patente, pois: (1) as empresas não têm a certeza de receber na forma contratada, (2) o que, ou as afasta desse tipo de contratação (diminuindo a concorrência), ou torna o objeto da contratação mais oneroso para o Poder Público, em face da insegurança reinante, além de (3) reduzir fortemente a efetividade das decisões das Cortes judiciais e arbitrais proferidas contra o Poder Público. A interpretação contemporânea do art. 100, reverte todos esses problemas, e inclusive privilegia a fase contratual no âmbito financeiro ao valorar a figura do empenho.

Observe-se também sob o prisma da interpretação teleológica, que busca uma finalidade, e da axiológica, que busca os valores do ordenamento jurídico. No âmbito teleológico, a interpretação contemporânea do artigo 100 amplia a segurança jurídica nas relações contratuais. E no aspecto axiológico, consagram-se os valores da igualdade, segurança e propriedade, inscritos no caput do artigo 5º, e descritos em vários de seus incisos, bem como a eficiência administrativa (artigo 37, caput, CF), pois torna efetiva a garantia concedida pelo Poder Público na fase contratual.

No âmbito da interpretação sistemática, pode-se identificar na interpretação contemporânea do artigo 100 uma cabal e coerente unidade no sistema, sem que ocorra uma cisão entre a fase contratual, que regula diretamente as relações entre o Poder Público e os contratantes, e que é garantida pelo empenho, e a fase judicial ou arbitral, mediada pelas Cortes, e que na interpretação tradicional-dominante exige a expedição de precatório em toda e qualquer situação.

Conforme a interpretação tradicional-dominante, a garantia prestada pela Administração Pública se esvai na fase judicial/arbitral, sem que dela remanesça qualquer finalidade, sendo necessário estabelecer outro processo garantidor do pagamento, por meio dos precatórios. A interpretação tradicional-dominante considera que são fases estanques, a administrativa e a judicial/arbitral, ao passo que, para a nova interpretação que se propõe, estas fases são consideradas de forma conjunta, como sequência de um mesmo processo. Atualmente há duplicidade de procedimentos em busca da satisfação do credor, que possui direito adquirido ao recebimento daqueles valores, por meio do empenho, mas que deve buscar outra garantia de pagamento por meio de precatório ao fim de um processo judicial/arbitral.

Conforme a interpretação contemporânea do artigo 100, o tipo de interpretação a ser adotado é o restritivo, ao impor um sentido rigoroso para a exegese do texto. Assim, somente serão usados os precatórios caso não haja garantia permitindo que o pagamento se realize de outro modo, sendo que, havendo empenho, torna-se desnecessária nova programação financeira para a expedição de precatório visando a realização da despesa, mesmo que advenha de decisão transitada em julgado que obrigue o Poder Público a pagar.

Na interpretação tradicional-dominante do artigo 100, CF, o tipo de interpretação é o ampliativo, uma vez que alcança, de forma totalizante e formal, toda e qualquer decisão transitada em julgado que obrigue o Poder Público a efetuar pagamentos, mesmo existindo garantia do cumprimento da obrigação de pagar por meio de empenho.

Resta analisar a questão da aplicação e da subsunção do direito, pois “a hipótese normativa não é uma simples descrição abstrata e genérica de uma situação concretamente possível, mas traz em si elementos prescritivos”. Com isso, o interprete realiza uma subsunção e uma valoração.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a interpretação contemporânea do artigo 100 faz com que a aplicação e a subsunção do direito cumpram de forma concomitante uma função procedimental (pois respeita todos os ritos processuais estabelecidos na norma) e finalística, ao observar as consequências a serem atingidas. Portanto, não se trata de consequencialismo jurídico, que afasta os ritos procedimentais, e nem se trata de usar apenas o formalismo, tal como ocorre na interpretação tradicional-dominante acerca do artigo 100.

Na interpretação contemporânea aplica-se a norma buscando sua finalidade e respeitando o procedimento para sua implementação, integrando a fase administrativa da programação financeira, realizada por meio do empenho, com a fase judicial ou arbitral, que, ao decidir, supre a fase de liquidação, tornando desnecessária a expedição de precatório. A interpretação contemporânea do art. 100, CF, não invalida nem um único artigo do CPC, que regula a matéria nos artigo 534 e 535.

Embora seja óbvio, adenda-se que é inaplicável a esta nova interpretação do artigo 100 a teoria da impenhorabilidade dos bens públicos, pois os recursos financeiros para pagamento das decisões judiciais ou arbitrais já estavam reservados pelo empenho realizado pelo próprio Poder Público. Logo, não se trata da penhora de um bem público (dinheiro) à revelia da Administração Pública, pois os recursos já estavam reservados orçamentariamente por esta para fazer frente ao pagamento daquela contratação.

Por fim, deve-se afastar do debate uma situação fática, que não interfere na interpretação contemporânea que se propõe para o artigo 100, CF. Ocorre quando o que foi orçado não está financeiramente disponível. Tal entendimento distingue duas fases: a do orçamento, no qual consta um projeto de gastos a ser executado, separando-a da execução orçamentária, que é a financeira, na qual a arrecadação flui para fazer frente às despesas contratadas.

Nesta hipótese, pode haver previsão no orçamento sem que tenha ingressado dinheiro nos cofres públicos. Nesta situação, melhor identificada no âmbito macrojurídico, a arrecadação seria insuficiente para o pagamento de todas as despesas programadas. Aqui se estará diante de uma situação fática, que se assemelha a um lençol curto financeiro, pois as despesas serão maiores que as receitas. Neste caso, as prioridades são normativamente estabelecidas e devem ser respeitadas (LRF, artigo 9º, §2º), e, tão logo ocorra a recomposição da arrecadação, os empenhos devem ser cumpridos (LRF, artigo 9º, §1º).

Conclusões

Existem diferentes formas de dar segurança jurídico-financeira nas relações contratuais com o Poder Público. Uma ocorre na fase administrativa da contratação, e que se consubstancia no empenho, ínsito a todos os contratos públicos, e outra decorre das decisões judiciais ou arbitrais transitadas em julgado que obrigam o Poder Público a realizar pagamentos, o que é instrumentalizado por meio de precatórios.

Embora o empenho se constitua na garantia da existência de recursos para o pagamento do que tiver sido contratado, apenas ocorrendo a liquidação é que surge para o contratado o direito adquirido ao recebimento dos valores. Não sendo recebidos, e o contratado submetendo o caso a uma Corte judicial ou arbitral, e vindo a ser deferido o pleito, a decisão supre a fase de liquidação, e exsurge o direito adquirido ao recebimento dos valores contratados, já garantidos pelo empenho.

Existindo empenho, torna-se desnecessário realizar nova programação orçamentária para prever o pagamento pela via dos precatórios, pois os recursos já estavam garantidos. Logo, havendo empenho que garanta o cumprimento da obrigação na fase contratual, torna-se redundante a expedição de precatório ao final da fase judicial/arbitral.

A análise contemporânea do artigo 100 garante segurança jurídica às partes envolvidas, Poder Público e contratantes, integrando e respeitando a fase administrativa da contratação, hoje descartada no âmbito financeiro pela interpretação de que as decisões judiciais ou arbitrais devam ser exclusivamente executadas por meio de precatórios, quando determinem obrigações de pagar pelo Poder Público.

A hermenêutica contemporânea do artigo 100, CF, interpretado pelos métodos gramatical, sociológico, teleológico, axiológico e sistemático, ocasionando um tipo de interpretação restritiva, que aplica e subsume a norma ao Direito, integra a garantia concedida na fase administrativa-contratual com a decisão proferida na fase judicial/arbitral, que obriga o Poder Público a pagar valores decorrentes do contrato inadimplido.

As parcelas que não estão cobertas pelo empenho, como as indenizatórias, deverão ser objeto de precatório, por falta de previsão orçamentária; porém as parcelas contratadas e inadimplidas prescindem de precatório.

Tal exegese contemporânea do artigo 100, CF, está consentânea com os princípios da moralidade, isonomia, segurança jurídica e eficiência administrativa, e não afasta as normas estabelecidas pelo CPC a respeito do tema.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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