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Consultor Jurídico

Ação coletiva e solidária é chave para segurança alimentar em tempos de crise

4 de junho de 2024, 18h28

Por Anita Mattes, Eloyse Davet

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No atual período de crise climática global, diversas preocupações inerentes à nossa sobrevivência ocasionam cada vez mais que instituições e indivíduos reflitam sobre novas perspectivas e formas de viver em sociedade. E o tema da alimentação, tanto na crise da Covid-19  como na inundação catastrófica ocorrida no início do mês no Rio Grande do Sul, surgiu no epicentro desses debates.

Antonio Cruz/Agência Brasil

Os impactos que essas crises vêm provocando resultam no fato de que a alimentação volta a ser pensada como um problema quantitativo e emergencial, já que uma crise multidimensional afeta diretamente todas as fases da cadeia alimentar — desde a produção à sua distribuição e consumo.

Contudo, não bastaria aumentar os rendimentos da população para pôr fim à escassez ou converter a agricultura numa indústria altamente produtivista, como é a realidade atual no Brasil com o agronegócio e como ocorreu no período pós-Segunda Guerra Mundial (FAO, 1955) [1]. Além da ideia de ampliar a produção, faz-se necessário buscar novos parâmetros articulados em conceitos mais democráticos e solidários, pois a extinção da fome não se dá pela quantidade de alimentos, mas pelo acesso à alimentação.

Alimentação, solidariedade e democracia

Desde a década de 1980, no campo da alimentação, diversos movimentos sobre novas formas de produção, comercialização e consumo começaram a surgir e atrair a atenção de alguns pesquisadores [2].

Tais experiências diziam respeito a aspectos específicos da gestão dos sistemas alimentares locais: produção mais sustentável, educação alimentar, consumo, valorização da produção e economia local. Assim, em 1993, na Bélgica, tivemos a fundação da Via Campesina [3], que, representando pequenos e médios agricultores, apresentou a ideia de “soberania alimentar” e, a partir de um forte sentimento de unidade e solidariedade, iniciou a defesa de políticas agrícolas e agroalimentares mais sustentáveis. E, ainda, o movimento Slow Food [4], na Itália, fundado na cidade de Bra, tendo como tema a promoção do direito à alimentação como prazer e a defesa da biodiversidade e da soberania alimentar, lutando contra a padronização de sabores, a agricultura em massa e a manipulação genética.

Spacca

Nesse sentido, observamos uma crescente busca de novas perspectivas locais sobre a alimentação, levando, em alguns casos, à construção de novos canais e processos alimentares. Isto é, diante dessas novas adversidades, brotam alternativas baseadas na participação, no coletivo e no estreitamento de laços sociais. Os atores territoriais se mobilizam visando uma organização participativa de coleta, preparação e doação de refeições, a partir de princípios solidários e democráticos.

Cozinhas solidárias

Existem inúmeros exemplos, mas o que gostaríamos de ressaltar aqui, e que foi muito utilizado na pandemia e agora nas enchentes no Sul do Brasil, é o caso das cozinhas solidárias. Na periferia de São Paulo, durante a crise pandêmica, inaugurou-se a primeira cozinha solidária no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e, após, na enchente no Vale do Taquari em 2023. E, agora, em Porto Alegre, o trabalho das organizações se repetiu. Trata-se da realização e distribuição de refeições gratuitas à população em situação de vulnerabilidade, produzidas em cozinhas coletivas geridas pelas próprias comunidades, resultando em espaços de identificação territorial e de organização popular.

Hoje, são 47 iniciativas espalhadas por 13 estados brasileiros e no Distrito Federal [5], iniciativa que, inclusive, inspirou a criação da Lei n° 14.628/2023, regulamentada pelo Decreto n° 11.937/2024, que tem por objetivo estabelecer um programa de políticas públicas nesse sentido [6].

Programas de alimentação

Aliás, quando analisamos algumas políticas públicas que visam erradicar a fome no Brasil, nos deparamos com muitos movimentos sociais e grandes embates públicos que levaram à consolidação de programas de alimentação, como foi igualmente o caso da ampla campanha “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, idealizada por Herbert de Souza, o Betinho, na década de 1990. Ou seja, mesmo após a institucionalização de garantias de direito, via Constituição de 1988, ainda foram necessárias campanhas de solidariedade nacional e internacional e ações de intervenção civil em prol de um assunto de extrema urgência, a fome.

Como ocorre hoje no Rio Grande do Sul, é evidente a importância da atuação direta das comunidades, seja nas grandes campanhas de arrecadação de alimentos ou na produção de refeições de cozinhas solidárias. São mecanismos assistenciais contingenciais que empurram o Estado a agir, resultando em políticas públicas e gestão pública, visto que é dever do Estado a garantia desses direitos, não somente o Direito Humano à Alimentação e à Segurança Alimentar (direito amplamente amparado na Constituição Federal de 1988) [7], mas também na busca de novas políticas públicas de amparo aos cidadãos que se encontram em meio a um período de adversidade ou fatalidade.

Novas soluções para novas crises

Considerando que os atuais eventos e manifestações do clima já atingiram um novo patamar da crise ambiental, em que a questão da segurança alimentar ocupa uma preocupação especial, tanto na produção de alimentos, impactada pela tendência de escassez, como na acessibilidade para famílias de baixa renda, a criatividade e a união das comunidades são a base na promoção de soluções novas, partilhadas e o mais próximas possível das necessidades identificadas.

Além de garantir novas perspectivas a velhas práticas, a participação coletiva e individual promove a emancipação e a cidadania. A construção de uma cultura comum, coletiva e democrática é a chave de novas soluções para novas crises que poderão vir de forma mais profunda e contundente.

Quem tem fome, tem pressa!

 


Notas

[1] La situation mondiale de l’alimentation et de l’agriculture. FAO, 1955. Disponível em: https://openknowledge.fao.org/server/api/core/bitstreams/65fe2af6-6943-4247-9454-99f9d62c8ac0/content.

[2] Feenstra, G.W. Local Food Systems and Sustainable Communities. American Journal of Alternative Agriculture, 1997; Henderson, E. Rebuilding local food systems from the grassroots up. Monthly Review, vol. 50, 1998; LANG, T. Lang, T. Food security: Does it conflict with globalization. Rev. Development 4, 1996; e GIOVANELLI, G. Le politiche urbane del cibo tra sostenibilità e crisi. University Press, 2022.

[3] Ver o site: https://viacampesina.org/fr/quest-via-campesina.

[4] Ver o site: https://www.slowfood.it.

[5] Veja https://cozinhasolidaria.com.

[6] Veja https://www.conab.gov.br/ultimas-noticias/5416-programa-cozinha-solidaria-e-regulamentada-pelo-presidente-da-republica

[7] SILVA, E. O.; AMPARO-SANTOS, L.; SOARES, M. D. Alimentação escolar e constituição de identidades dos escolares: da merenda para pobres ao direito à alimentação. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 4, p. 1-13, 2018.