Opinião

Reparação e prevenção de danos climáticos em propriedades rurais

Autor

  • Pedro Puttini Mendes

    é advogado e professor de Direito Agrário e Ambiental autor coautor e organizador de livros em direito agrário e ambiental. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina mestre em Desenvolvimento Local (2019) pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro fundador da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental). Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-MS entre 2013/2015.

    View all posts

3 de junho de 2024, 6h02

Nos solidarizamos com os sofrimentos e angústias de todas as pessoas afetadas pelo desastre ocorrido no Rio Grande do Sul e aproveitamos esta oportunidade para tratar de algumas questões jurídicas referentes a desastres naturais, responsabilidade civil e outras situações relacionadas à reparação e prevenção de danos ocasionados por estas situações.

enchente Rio Grande do Sul

Os eventos climáticos cada vez mais frequentes e intensos representam um desafio significativo para os produtores rurais, causando perdas nas plantações, infraestrutura, criação de animais, além de riscos à própria vida das pessoas.

Abandono de lares inundados, riscos à saúde por agentes contaminantes, patológicos ou químicos, perdas humanas, interrupção da atividade econômica das áreas inundadas são apenas algumas consequências, por vezes causadas por uma precária prevenção estrutural em eventos possivelmente previstos.

Desastres climáticos representam mais um de vários desafios para produtores rurais e suas famílias, mas diversas medidas podem ser adotadas para mitigar seus impactos e garantir a continuidade da atividade.

O “direito dos desastres” é tema relativamente novo voltado para estas discussões, abrangendo medidas preventivas e questões de responsabilidade civil e penal por danos causados, tanto pela omissão na prevenção quanto pela ação que contribui para a ocorrência de desastres, promovendo uma abordagem integrada e proativa para a redução dos riscos e a proteção da população frente aos desastres naturais e provocados pelo homem.

Esta área do direito engloba um conjunto de normas e princípios voltados para a prevenção, mitigação e resposta a eventos adversos, como enchentes, possuindo instrumentos expressamente previstos na legislação, como os planos de contingência descritos na Lei nº 12.608/2012.

Estes planos são um conjunto de procedimentos e ações para prevenir acidente ou desastre específico ou para atender emergência dele decorrente, incluindo recursos humanos e materiais, com base em hipóteses de acidente ou desastre, com o objetivo de reduzir o risco de sua ocorrência ou de minimizar seus efeitos.

Há mais de 12 anos a referida lei orienta que compete à União promover estudos referentes às causas e possibilidades de ocorrência de desastres de qualquer origem, sua incidência, extensão e consequência; instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desastres; instituir e manter cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.

Spacca

Segundo a mesma lei, compete também ao governo federal (União) realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, produzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os estados, o Distrito Federal e os municípios.

E aos estados, compete identificar e mapear as áreas de risco e realizar estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, em articulação com a União e os municípios; realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, em articulação com a União e os municípios; dentre outras responsabilidades.

Falhas com tantas ferramentas jurídicas

Mesmo com tantas ferramentas jurídicas e legislação, na realidade não foi o que se viu nos recentes episódios de enchentes, pois muitas pessoas foram surpreendidas com a proporção recorde do recente desastre climático no Rio Grande do Sul, organizando-se com recursos financeiros próprios e mobilizando evacuação e logística com mais rapidez do que o poder público.

Portanto, além da necessidade de cobrança de medidas preventivas do poder público e a cautela de produtores com a prevenção por suas próprias medidas, o governo deve ser responsabilizado juridicamente por muitos dos danos causados, em razão da omissão na prevenção e na ação que contribui para a ocorrência de desastres.

No caso das atividades produtivas, além de medidas de prevenção para minimizar riscos e danos, sugere-se algumas medidas para reparação dos estragos causados, possibilitando a retomada das atividades e garantia da segurança alimentar.

Uma das várias sugestões é realizar um diagnóstico detalhado da situação por meio de peritos e técnicos que possam detalhar em um laudo técnico, os danos causados à infraestrutura da propriedade, incluindo insumos, cercas, estradas, pontes, galpões e demais instalações, possibilitando a tomada de medidas jurídicas imediatas em âmbito extrajudicial ou judicial.

Os laudos assinados com anotação de responsabilidade técnica auxiliarão na identificação dos maiores problemas e prioridades que demandem obras e benfeitorias úteis e necessárias nas áreas mais críticas para a produção, como cercas para contenção do gado, estradas de acesso para escoamento da produção e locais para armazenamento seguro de insumos e grãos.

Nos arrendamentos, na ocorrência de desastres climáticos recomenda-se ao arrendatário comunicar imediatamente o arrendador, proprietário do imóvel rural para que não seja considerado inadimplente e excessivamente onerado pelo contrato, contando com esforço das partes para realizar uma negociação extrajudicial que atenda aos interesses de todos, o que também se aplica aos bancos, seja para o arrendatário ou proprietário, que necessitam renegociar suas dívidas.

É sugerido também a realização de análise de solo para identificar os danos causados pela inundação, como erosão, compactação, salinização, alterações na fertilidade, contaminações por químicos carreados, direcionando medidas de recuperação, correção do solo, recuperação da capacidade de produção e redução da possibilidade de responsabilizações ambientais.

As perícias, atas notariais e boletins de ocorrência servirão ainda para fornecer elementos de ajustes na declaração do Imposto Territorial Rural (ITR) e no Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), já que nestes dois instrumentos jurídicos é necessário classificar benfeitorias, informar a produção para que seja corretamente tributada a propriedade (ITR) e para que não seja considerada improdutiva e destinada à reforma agrária (CCIR).

Os mesmos laudos e diagnósticos serão utilizados também para acionar seguro agrícola, caso existente, garantindo redução de prejuízos por meio da apólice e cobertura contratadas.

Análise com peculiaridades

A situação de cada região deve ser analisada com suas peculiaridades, já que a legislação estabelece hipóteses de responsabilidade civil por danos causados por enchentes que podem recair até mesmo sobre o poder público, empresas privadas e outros que eventualmente tenham contribuído indiretamente para as enchentes, no caso de falta de manutenção de sistemas de drenagem, ausência de obras de contenção de enchentes e outros fatores.

No caso do governo, segundo a legislação, pode responder por ação ou omissão, sendo necessário demonstrar a existência do dever jurídico de praticar determinado fato (de não se omitir) e que o dano poderia ter sido evitado ou que a demandaria obrigação de agir para impedir o evento danoso.

A atuação deficiente do Estado, ou a omissão genérica, aparece quando, do evento, concorrer com a falta de obras que razoavelmente seriam exigíveis, ou de providências que seriam possíveis, dentro das possibilidades de socorro da administração, onde seu grau de previsibilidade pode ser considerado muito maior do que do particular.

Eventos climáticos não são necessariamente excludentes de ilicitude do Estado, por ser possível considerar as ações preventivas para evitar danos por meio de obras de infraestrutura.

Para minimizar os impactos de eventos climáticos, algumas medidas preventivas podem ser adotadas, conforme a legislação, instrumentos financeiros e ações administrativas.

É extremamente recomendado observar o zoneamento agroecológico, que orienta por mapas oficiais, as áreas adequadas a determinados tipos de culturas em razão de clima, bem como outros fatores de risco, evitando uso e ocupação desordenados do solo.

De modo geral, os zoneamentos são instrumento do planejamento territorial, com aplicação de sistema legislativo que determinam melhor o uso e ocupação do solo.

A Lei da Política Agrícola (Lei nº 8.171/1991), no artigo 19, inciso III, determina que o poder público deverá “realizar zoneamentos agroecológicos que permitam estabelecer critérios para o disciplinamento e o ordenamento da ocupação espacial pelas diversas atividades produtivas, bem como para a instalação de novas hidrelétricas;”.

E o artigo 50, §3º da mesma legislação garante que “Art. 50. A concessão de crédito rural observará os seguintes preceitos básicos: § 3° A aprovação do crédito rural levará sempre em conta o zoneamento agroecológico”.

 O zoneamento agroecológico enquanto instrumento técnico-científico é a ferramenta correta para melhor avaliar potencialidades e vulnerabilidades ambientais de determinada região, principalmente clima, solo, vegetação, geomorfologia, aptidão agrícola, características sociais e econômicas para melhor ordenamento do espaço produtivo.

Para o zoneamento agrícola de risco climático, além das variáveis clima, solo e planta, aplicam-se funções matemáticas e estatísticas para quantificar o risco de perda das lavouras com base no histórico de ocorrência de eventos climáticos adversos, principalmente a seca.

Trata-se de metodologia científica aparentemente complexa, elaborada por equipe multidisciplinar de especialistas, instituições federais e estaduais de pesquisa agrícola, fundações e universidades, anualmente revisado e divulgado pelo MAPA em portarias publicadas no Diário Oficial da União, com indicativos e aplicação fundamentais para produtores rurais, extensionistas, agentes financeiros, seguradoras e demais usuários.

Já o zoneamento ecológico-econômico previsto pela Política Nacional do Meio Ambiente (Lei Federal nº 6938/1981) regulamentado pelo decreto nº 4.297/2002 tem como diretrizes prever “medidas de controle e de ajustamento de planos de zoneamento de atividades econômicas e sociais resultantes da iniciativa dos municípios, visando a compatibilizar, no interesse da proteção ambiental, usos conflitantes em espaços municipais contíguos e a integrar iniciativas regionais amplas e não restritas às cidades” (artigo 14, VI).

Já o Decreto Federal nº 9.841/2019 trata do Programa Nacional de Zoneamento Agrícola de Risco Climático tem por finalidade melhorar a qualidade e a disponibilidade de dados e informações sobre riscos agroclimáticos no Brasil, com ênfase no apoio à formulação, ao aperfeiçoamento e à operacionalização de programas e políticas públicas de gestão. Neste decreto, foram definidos três objetivos principais ao ZARC:

  • I – promover, coordenar e apoiar projetos, estudos e ações de pesquisa e desenvolvimento de avaliação, quantificação e monitoramento de riscos agroclimáticos;
  • II – coordenar projetos de desenvolvimento, operação ou manutenção de sistemas públicos para avaliação, quantificação ou monitoramento de riscos agroclimáticos e difusão de resultados e informações; e
  • III – disponibilizar informações de avaliação, quantificação e monitoramento de riscos agroclimáticos à sociedade.

Portanto, para um futuro mais seguro, resiliente e sustentável para o Brasil, a efetiva implementação dos zoneamentos é de suma importância para proteger vidas, preservar o meio ambiente e garantir o bem-estar da população.

Através destas medidas de zoneamento, será possível reduzir a vulnerabilidade em relação às áreas suscetíveis a inundações, deslizamentos ou outros eventos climáticos extremos por meio de planejamento de infraestrutura, dar maior proteção ambiental com matas ciliares e zonas úmidas resguardadas, garantir melhor ordenamento territorial com direcionamento urbano para áreas adequadas e a previsão de desastres, minimizando seus impactos e vítimas.

Planejamento estrutural

Como medidas de planejamento estrutural, é interessante utilizar sistemas de drenagem eficientes para escoar o excesso de água das áreas de cultivo e instalações, diminuindo o risco de alagamentos, consequentemente perdas de áreas produtivas e produtos armazenados, como fertilizantes, defensivos químicos, suplementos animais e muitos outros.

O plantio com cultivares resistentes ao clima local e a diversificação de culturas podem reduzir riscos e dependência de uma única safra, diminuindo consequentemente o impacto financeiro em caso de perdas. Já em caso de pastagens, o manejo adequado com rotação e descanso, aumentando retenção ode água no solo, pode auxiliar a reduzir o escoamento superficial.

Em relação a medidas ambientais, a proteção de nascentes e áreas de preservação permanente em margens de rios é medida importantíssima devido à recomposição vegetal que evitar comprometimento na capacidade natural de retenção de água.

Os laudos e diagnósticos ambientais, feitos por técnicos com anotação de responsabilidade técnica, auxiliam não apenas na reparação dos danos causados, como também na prevenção, já que será detalhada a infraestrutura da propriedade antes da ocorrência de desastres climáticos, o registro da produção, da conformidade jurídica com todas as normas socioambientais, fornecendo elementos em caso da ocorrência de danos, cuja responsabilidade pode ou não estar originada na ação ou omissão de obras de infraestrutura do poder público ou particulares envolvidos.

A responsabilidade ambiental também é um fator importantíssimo a ser considerado para prevenção, pois, ao exemplo dos defensivos químicos e animais mortos em desastres climáticos, caso sejam causadores de poluição ambiental, podem ensejar responsabilidade na modalidade subjetiva em infrações administrativas e crimes ambientais a depender da demonstração de autoria, conduta e nexo de causa, bem como na modalidade objetiva com a obrigação de reparar o dano causado, recaindo sobre o poder público ou particulares.

Recomenda-se periodicamente a revisão de cadastros do imóvel rural nos órgãos responsáveis, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), cadastro ambiental rural nos órgãos ambientais, Ibama e outros, para garantir que os dados estejam atualizados e reflitam a situação real da propriedade após os desastres climáticos.

Arrendamentos, por sua vez, necessitam de contratos seguros, detalhados e com a previsão da maior possibilidade de situações adversas possíveis, definindo formas de solução céleres e eficazes para as partes, sem necessidade de levar a situação aos tribunais, anexando aos contratos, os laudos da situação anterior da propriedade, análises de solo, descrições de benfeitorias e outros detalhes.

A legislação brasileira apresenta uma característica de grande fragmentação em uma multiplicidade de leis e normas que por vezes dificulta a compreensão e o cumprimento das obrigações por parte dos diferentes entes federativos, bem como direcionamento de investimentos adequados, que nem sempre são disponibilizados, além de uma descoordenação institucional, desarticulando diferentes órgãos e níveis de governo, comprometendo a efetividade das ações.

Apesar dos desafios, a legislação brasileira oferece um arcabouço legal robusto para lidar com desastres climáticos, a questão é aplicá-los preventivamente de maneira efetiva, sendo que agora deve-se buscar a recuperação socioeconômica das regiões afetadas, financiando a reconstrução da infraestrutura, a recuperação do solo e das plantações e a retomada da produção, possivelmente concedendo benefícios fiscais, contando ainda com o apoio de assistência técnica e extensão rural.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Agrário e Ambiental, autor, coautor e organizador de livros em direito agrário e ambiental. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, mestre em Desenvolvimento Local (2019) pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro fundador da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental). Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-MS entre 2013/2015.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!