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Punir PM por invasão de domicílio envia recado positivo, mas tem resultado incerto

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3 de junho de 2024, 8h47

Quando o Judiciário levanta a hipótese de responsabilizar policiais militares pelo abuso de autoridade praticado nas invasões de residência de pessoas suspeitas, envia um recado positivo de que não há imunidade para sua atuação.

Uso de câmeras corporais pode ajudar a comprovar legalidade das ações policiais

Os resultados disso, no entanto, são ainda incertos. A punição dependeria do voluntarismo das corporações e do Ministério Público. E mesmo a validade dessas ações policiais ainda segue em disputa, principalmente por conta da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

A análise é de criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Os PMs que abusam da autoridade ao entrar na casa de alguém sem autorização judicial ou fundadas razões cometem, em tese, o crime do artigo 22 da Lei 13.869/2019.

Em alguns casos, quando a autorização do morador alegada pelo policial é improvável, levanta-se a possibilidade do crime do artigo 23, inciso II da mesma lei, por omitir informações ou divulgá-las de maneira incompleta para desviar o curso da diligência.

A possibilidade de punição foi levantada recentemente pelo ministro Rogerio Schietti, da 6ª Turma do STJ, em um desses casos em que há choque de versões.

“Talvez esteja chegando a hora de começar a responsabilizar até penalmente quem viola domicílio alheio sob a alegação de que houve consentimento do morador, quando isso não é comprovado de forma efetiva”, disse.

O alerta já consta do HC 598.051, em que a 6ª Turma do STJ fixou que cabe à polícia provar que o morador autorizou a entrada na residência. Na falta disso, há nulidade das provas “sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes que fizeram a diligência”.

Antes, o ministro Messod Azulay, em decisões monocráticas, e a 5ª Turma, em colegiada, chegaram a remeter os autos ao Ministério Público e às polícias para apurar responsabilidade. “O que eu vejo é que estamos aqui enxugando gelo”, afirmou.

Recado positivo

Todos os criminalistas consultados avaliaram como positiva a medida sugerida pelo STJ. O encaminhamento dos autos não implica na automática punição dos policiais, que deverão ter seus direitos e garantias individuais respeitados.

2º vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), Vinícius Assumpção afirma que a remessa deve ser bem instruída para avaliar a real culpa do agente estatal e que o objetivo é fazer valer as regras legais que impõem limites à atuação policial.

“O encaminhamento das peças aos órgãos de persecução penal é uma sinalização de que toda ação praticada por um preposto do Estado encontra seu próprio limite na Constituição e nas leis, e não na sua vontade ou arbítrio individual. Há uma mensagem explícita às corporações: de que não há imunidade para a atuação policial e que os maus policiais podem ser responsabilizados por suas condutas ilegais.”

Fernando Hideo Lacerda, sócio do Warde Advogados, também aprova a medida. “Há indícios da prática de crime de abuso de autoridade sempre que não ficar claramente demonstrada a existência de flagrante ou que houve consentimento do morador para ingresso no domicílio.”

Bruna Luppi Leite Moraes, do Bialski Advogados Associados, acrescenta que a inviolabilidade do domicílio é um direito que não é absoluto e pode ser afastado em situações excepcionais. “O ingresso policial na residência à míngua de uma das referidas exceções caracteriza abuso e justifica a apuração administrativa e penal”.

Na opinião de Thiago Turbay, do Boaventura Turbay Advogados, o STJ age bem ao encaminhar os autos diante da falha no controle sobre a atividade policial. “Cabe ao judiciário o controle jurisdicional da atividade probatória, o que envolve o trabalho, e as consequências desse trabalho, realizado pelas agências persecutórias.”

Resultado incerto

O principal problema para responsabilizar os policiais que invadem a casa de pessoas de maneira temerária é saber em quais situações exatamente isso acontece.

Esse tipo de ação, sem autorização judicial, é possível, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, em 2015, desde que existam fundadas razões que na residência haja uma situação de flagrante delito.

Desde então, o STJ vem construindo jurisprudência sobre o que seriam fundadas razões. A corte atacou os três motivos mais frequentes para justificar esse tipo de ação:

O veto à invasão de domicílio nessas três hipóteses vêm sendo derrubado por decisões dos integrantes da 1ª Turma do STF. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, tem decisões indicando que, se há denúncia de crime permanente, como é o tráfico, a ação é lícita.

Em março, o Plenário do STF validou as provas decorrentes de uma invasão de domicílio pela Polícia Militar. Não houve maioria sobre a motivação da ação — ou seja, os ministros não fixaram posição sobre se correr para casa é atitude suspeita apta a validar esse tipo de ação.

Ainda assim, o voto do ministro Alexandre de Moraes nesse sentido vem sendo aplicado por tribunais de apelação. E está impactando, também, o próprio STJ — a 5ª Turma já está validando provas contra réus que correram para dentro de casa ao ver a polícia.

Na teoria X na prática

Para Vinicius Assumpção, a ausência de uma posição completamente definida e estável da jurisprudência deveria levar a uma postura de maior cuidado em relação à inviolabilidade do domicílio.

Ele destaca que a atuação policial, pela urgência e riscos envolvidos, é tradicionalmente caracterizada pelo baixo registro das ações, o que prejudica a accountability e a fiscalização. Também não ajuda a baixa adesão ao uso de câmeras corporais até o momento.

“Portanto, parece-me que, enquanto não houver balizas jurisprudenciais mais precisas, o direcionamento deve ser aquele que mais preserve os direitos constitucionais das pessoas alvo da iniciativa policial, sob pena de responsabilização”, diz.

Ele ainda pontua que o Direito Penal não tem sido uma ferramenta efetivamente capaz de coibir comportamentos, mesmo os mais indesejados. Portanto, responsabilizar policiais não é o que vai resolver o problema.

“De todo modo, trata-se de um passo que, aliado a outras intervenções, pode ajudar”. Ele cita como exemplo a formação em Direitos Humanos, revisões das práticas policiais e adoção de medidas e aparelhos de controle do desenvolvimento de ações policiais.

Já Thiago Turbay critica o rescrudescimento da jurisprudência sobre invasão de domicílio. Para ele, o tema caminha na contramão civilizatória, especialmente em um país onde a fuga ao ver a viatura é uma alternativa válida à população que frequentemente é alvo de violência policial.

“Os ministros do Superior Tribunal de Justiça estão jogando uma bóia de salvação civilizatória no sistema de justiça criminal, buscando exercer suas funções jurisdicionais no sentido da promoção da dignidade humana. A 1ª Turma do STF está furando a bóia”, diz.

Bruna Luppi Leite Moraes, por sua vez, afirma que a Constituição deve ser cumprida independentemente de maior ou menor rigor na interpretação jurisprudencial. “Havia e há a necessidade de que o policial seja devidamente treinado para observar adequadamente as normas constitucionais e legais, sob pena de ser responsabilizado por eventuais descumprimentos e excessos.”

Justiça militar?

Não cabe ao Judiciário a iniciativa de punir um policial que invade a casa de alguém de maneira temerária. Essa função é da própria corporação, internamente, ou a partir de iniciativa do Ministério Público. E não são poucas as oportunidades para oferecer esse exemplo.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, só o STJ anulou provas decorrentes de invasão de domicílio em 959 processos em 2023.

Ainda assim, são raros os processos que chegam à corte para discutir alguma ação penal cujo réu seja um policial que invadiu a casa de alguém.

As discussões se centram na possibilidade de ele ser processado na Justiça Comum. A resposta está na Súmula 172, que afasta a competência da Justiça Militar porque crime de abuso de autoridade não está previsto no Código Penal Militar.

Ainda assim, a Justiça Militar também pode ser palco para essa discussão. Violação de domicílio é crime, tipificado no artigo 226 do Código Penal Militar.

Uma pesquisa de jurisprudência nos Tribunais de Justiça Militares do país mostra quão raramente isso ocorre. Há poucos registros, com punições apenas nos casos em que a invasão ocorre em conjunto com fatos mais graves.

Em Minas Gerais, por exemplo, um policial foi condenado porque invadiu a residência da vítima para prender um cidadão que teria agredido seu filho. Há outro caso de PM punido porque entrou em casas e efetuou disparos para atender a ocorrências em um local cuja responsabilidade era de outra unidade.

No Rio Grande do Sul, a conclusão do Tribunal de Justiça Militar foi de não punir um PM que invadiu a casa de alguém para obter o aparelho de celular do morador e apagar a filmagem feita porque. “O ingresso na residência ocorreu de maneira totalmente involuntária.”

REsp 2.101.494 (STJ)
HC 169.788 (STF)
Processo 0000738-42.2015.9.13.0001 (TJM-MG)
Processo 0000738-42.2015.9.13.0001 (TJM-MG)
Processo 0070778-85.2019.9.21.0001 (TJM-RS)

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