Opinião

Anistia constitucional ao descumprimento da ação afirmativa da cota de gênero

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30 de julho de 2024, 18h28

A Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição 09/23, que perdoa as punições impostas a partidos que cometeram infrações eleitorais, como o descumprimento das cotas de gênero e raça. A justificativa para a propositura da PEC reside na dificuldade que os partidos enfrentam para atender às regras de distribuição de recursos para candidaturas femininas e de pessoas negras e pardas.

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O texto original continha dois pontos que suscitaram indignação entre especialistas e a sociedade civil organizada, defensores do aumento da participação das mulheres na política. O primeiro ponto era a não aplicação de sanções de qualquer natureza aos partidos que não cumpriram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça nas eleições realizadas antes de 2022. Vale lembrar que, nas eleições municipais de 2020, os partidos PCO, PRTB e DEM destinaram menos de 26% dos recursos públicos para candidaturas femininas.

Além da anistia, a PEC prevê a restituição dos valores recolhidos, multas ou suspensão do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para os partidos que não atingiram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça nas eleições de 2022 e anteriores. Segundo a Transparência Internacional, essa medida pode representar um perdão de aproximadamente R$ 23 bilhões em multas.

Imunidade tributária e devolução de valores

Conforme o texto aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado, utiliza-se a alínea ‘c’ do inciso VI do artigo 150 da Constituição para estender a imunidade tributária a todas as sanções de natureza tributária, exceto as previdenciárias, relativas às multas e condenações decorrentes do não cumprimento das cotas para candidaturas femininas e de pessoas negras e pardas.

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Além da anistia das sanções mencionadas, a PEC prevê a devolução dos valores recolhidos, inclusive os determinados em processos de prestação de contas eleitorais e anuais, bem como os juros incidentes, multas ou condenações aplicadas por órgãos da administração pública direta e indireta em processos administrativos ou judiciais em trâmite, em execução ou transitados em julgado. Isso inclui processos já transitados em julgado, resultando na remoção de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência.

O novo texto também visa anular todas as sanções de natureza tributária aplicadas aos partidos políticos, conforme apontam organizações ligadas à transparência partidária. Quaisquer sanções, inclusive as oriundas de processos administrativos e judiciais já transitados em julgado, que tenham duração superior a cinco anos, seriam anuladas.

Jogo zerado

O presidente do Transparência Partidária, Marcelo Issa, criticou a proposta e alertou para a amplitude do perdão concedido: “Estamos diante de um perdão completo em relação a todas as irregularidades e condenações dos partidos políticos e das campanhas eleitorais”, afirmou durante sua participação no programa WW da CNN.

Issa destacou ainda um trecho da PEC que estende a imunidade tributária a praticamente todas as sanções, exceto as previdenciárias. A medida abrange a devolução e o recolhimento de valores, incluindo os determinados em processos de prestação de contas eleitorais e anuais. Além disso, a PEC cancela sanções, extingue processos e remove inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência.

O analista Caio Junqueira, da CNN, comparou o efeito da medida ao Direito Penal: “Se fosse uma comparação com o Direito Penal, seria como se alguém multi-investigado ou multicondenado tivesse simplesmente zerado o jogo das investigações, das condenações e das sentenças já realizadas no âmbito criminal”.

Estímulo à inadimplência

Organizações como Transparência Partidária, Transparência Internacional – Brasil, Associação Contas Abertas, Associação Fiquem Sabendo, Instituto Marielle Franco, Instituto Não Aceito Corrupção, Movimento Mulheres Negras Decidem e o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre a Mulher (Nepem), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entendem que a PEC é um estímulo à inadimplência dos partidos políticos.

“Ao prever que a imunidade ocorreria a partir da inadimplência da obrigação, possibilita-se que se anule qualquer cobrança por condenação, bastando para tanto simplesmente que se deixe de cumpri-la por mais de cinco anos”, afirmam.

A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 9/23 pela Câmara dos Deputados e sua iminente votação no Senado levantam questões profundas sobre a integridade e a responsabilidade no financiamento das campanhas eleitorais no Brasil. Ao perdoar as punições impostas a partidos políticos por não cumprirem as cotas de gênero e raça, a PEC não apenas questiona a efetividade das regras de distribuição de recursos, mas também levanta um debate sobre a justiça e a transparência no sistema eleitoral.

Os críticos argumentam que a medida representa um retrocesso significativo, oferecendo um perdão amplo que pode desincentivar o cumprimento das normas e encorajar a inadimplência. A proposta prevê a anistia de sanções e a devolução de valores recolhidos, incluindo multas e condenações, o que, segundo especialistas, pode ser comparado a uma “limpeza” das infrações passadas. Essa abordagem é vista como uma ameaça à integridade dos processos eleitorais e à justiça no tratamento de partidos políticos que não cumpriram suas obrigações.

Implicações a longo prazo

Por outro lado, os defensores da PEC apontam que a proposta visa reconhecer as dificuldades enfrentadas pelos partidos ao tentar adequar-se às exigências de quotas, especialmente em um cenário político em que a inclusão de gênero e raça ainda enfrenta barreiras significativas. No entanto, a questão permanece: será que o perdão geral é a melhor solução para fomentar a equidade e a representatividade na política brasileira?

À medida que o Senado avalia a PEC, é crucial considerar não apenas os impactos imediatos na estrutura de financiamento eleitoral, mas também as implicações a longo prazo para a transparência e a responsabilidade política. O equilíbrio entre a necessidade de inclusão e a preservação da integridade das instituições políticas será decisivo para garantir que as reformas atendam às expectativas de justiça e igualdade.

Autores

  • é advogada especialista em Direito Eleitoral e militante da área desde 2008, com passagem por diversas campanhas municipais, presidente da comissão de direito eleitoral da subseção de São Miguel Paulista, em São Paulo (SP).

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