Diário de Classe

O último dos juristas e o juiz Prometeu

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

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27 de julho de 2024, 8h00

Recentemente, tive a oportunidade de participar de uma mesa com o professor Mario Losano, que estava no Rio de Janeiro para divulgação da tradução e lançamento da obra As Três Constituições Pacifistas. Na ocasião, juntamente com o professor Eduardo Manuel Val, a quem agradeço o gentil convite, conversamos longamente com o historiador do direito sobre os desafios da democracia, o papel do direito e das constituições e, principalmente, dos movimentos políticos de resistência à extrema direita que se expande a nível global.

Ao problematizarmos essas questões a partir dos desafios impostos pelo desenvolvimento da tecnologia, o professor Losano indicou um romance brasileiro que estava lendo. Trata-se de O Último dos Copistas, de Marcílio França Castro. Segui a entusiasmada indicação. O romance apresenta um editor de texto que, preocupado com a baixa demanda de sua profissão em tempos de IA, se envolve em uma pesquisa sobre o último copista, Ângelo Vergécio, que viveu em Paris no século 16 [1]. Como sabemos, os copistas se tornaram uma categoria dispensável diante da invenção e disseminação da prensa inventada por Gutenberg no século 15 (muito embora os chineses já possuíssem tecnologia semelhante anteriormente).

O paralelismo traçado entre os dois personagens é uma das aberturas a partir da qual Marcílio França Castro tematiza indiretamente a questão da tecnologia. Afinal, os dois personagens têm seus ofícios ameaçados pelo avanço da técnica. Com efeito, existe uma relação direta entre a tecnologia, o modelo de produção e as demandas profissionais. A mudança causada pelo desenvolvimento técnico implica variações não apenas materiais, mas também simbólicas, determinando o imaginário social e jurídico, como explora Thomas Vesting em sua obra Gentleman, Gestor, Homo Digitalis.

Se, ao longo do século 20, o desenvolvimento da automação industrial fez com que os trabalhadores das fábricas migrassem para o setor de serviços, hoje, no século 21, a inteligência artificial ameaça tomar conta de boa parte das ocupações ainda não encerradas pelas máquinas. Yuval Harari, um dos principais ideólogos que nos alarmam acerca dos riscos da imbatível IA, aborda em seu best-seller Homo Deus a iminência de classes massivas que se tornarão economicamente inúteis. Para Thomas Fuchs, “de acordo com Harari, em sua análise cínica, no final das contas, nós nos renderemos cada vez mais aos algoritmos e previsões da inteligência artificial, pois eles já poderiam fornecer melhores informações sobre o futuro do que nossa limitada inteligência humana” [2]. Os exemplos apresentados por Harari nesse sentido são muitos e impressionantes. O autor relata como a IA está pronta para extinguir não apenas os taxistas, mas também os poetas, músicos e os advogados. Afinal, como questiona Harari, “qual será o destino de todos esses advogados quando algoritmos sofisticados de busca forem capazes de localizar mais precedentes em um dia do que o faria um humano em toda a sua vida, e quando scanners de cérebro forem capazes de revelar mentiras e enganações só com o apertar de um botão?[3].

A questão de Harari direcionada aos juristas pressupõe premissas teóricas não explícitas e problemáticas, mas que, no entanto, estão disseminadas no imaginário (jurídico) contemporâneo. A aposta do Poder Judiciário brasileiro na implementação de algoritmos que confiram celeridade e precisão à aplicação de jurisprudência é fato que circula todo dia a partir de declarações de ministros do STF e CNJ. Um dos elementos pressupostos e não tematizados é o problema da interpretação. O que significa interpretar? Existem casos em que a aplicação de normas prescinde de interpretação? Afinal, robôs podem interpretar?

Geralmente, a respostas dadas pelos entusiastas da ideia de um juiz robô partem da dicotomia entre casos fáceis e casos difíceis. Em casos em que a resposta judicial necessita de mera subsunção entre a previsão legal e a questão de fato, os algoritmos, no sentido em que afirma Harari, seriam mais céleres e precisos do que os humanos. Em outros poucos casos, em que os conceitos em julgamento são ambíguos e fogem ao uso ordinário da linguagem, e, portanto, há uma margem de discricionariedade, a sensibilidade humana e interpretação seriam necessárias. A divisão doutrinária entre casos fáceis e casos difíceis também é implícita no “precedentalismo à brasileira” [4]. Nada seria mais conveniente, portanto, do que desenvolvermos algoritmos que façam o trabalho mecânico de aplicar as normas gerais criadas pelo Judiciário aos casos (ditos) fáceis e deixarmos os difíceis a cargo da discricionariedade dos magistrados.

Voltando ao romance de Marcílio França Castro, a semelhança entre os cenários narrados, o do copista cuja ocupação foi extinta pela invenção da prensa e o do revisor de texto que se vê ameaçado pela IA, é apenas aparente. Se, de um lado, a prensa contribuiu para o aumento da circulação de ideias e favoreceu decisivamente o “esclarecimento” filosófico, científico e político, o desenvolvimento da tecnologia na contemporaneidade deixa sérias dúvidas sobre o seu potencial emancipador, servindo em grande medida ao empobrecimento da linguagem.

Esse é um dos desafios enfrentados pelo personagem revisor do romance, que, em uma interação com uma colega de editora, reflete criticamente: “Se eu acatar toda informação que sai do Google, digo a Betânia, chegará um momento em que não falarei mais uma língua, mas o eco de uma língua. E a sintaxe será robótica, o léxico, esdrúxulo, repetitivo, aproveitável talvez como experimento poético, não como recurso humano de comunicação. Pode ser exagero, mas imagino um novo modo de convivência e de evolução das línguas, um novo paradigma filológico. Penso na corrupção dos idiomas, por exemplo, que sempre aconteceu. Essa corrupção se daria não mais pelo avanço de um povo sobre outro, de uma cultura sobre outra, como fizeram os romanos na Ibéria, mas pela disseminação gradual, quase imperceptível, das regras de uma linguagem artificial. Imagine o sotaque de algoritmos se impondo sobre as línguas naturais. Tenho lido textos que já soam assim. Avançam aos pulos, monossêmicos, capengando. Às vezes ligo o rádio, o locutor está falando, me parece um tradutor automático. Um sintagma mal engatado no outro, como as peças incongruentes de um Lego”.

A simplificação da linguagem que preocupa o personagem já é uma realidade no mundo jurídico. Cada vez mais, a formação jurídica é reduzida a esquematizações e simplificações em cursos e materiais destinados à graduação (e pós-graduação), assim como ocorre na prática judicial, o que é denunciado há muito tempo pelo professor Lenio Streck (indicamos seu novo livro Ensino jurídico e(m) Crise) e recentemente tratado por Leonardo Longen do Nascimento neste espaço, dando atenção ao uso do ChatGPT. Como também explorou o colega Óliver Vedana em sua coluna, o mercado de formação jurídica consiste cada vez mais em estratégias de aumento quantitativo (como captar clientes, como aumentar os honorários, como vender teses jurídicas, etc.) do que na promoção teórica e técnica de profissionais.

Simultaneamente, há projeto do CNJ com o objetivo de simplificar a linguagem jurídica, que busca, nas palavras de seu presidente, ministro Barroso, “eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo”, “adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos” e “explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou julgamento na vida do cidadão”. Como problematiza o professor Lenio, “a pretexto de combater a condenável linguagem empolada (o datavenismo é chato mesmo) que herdamos de uma tradição elitista, há tempos se vem alimentando uma cultura simplificadora, que é extremamente perigosa. Essa cultura naturaliza uma formação de baixa qualidade, na qual se vende (e a palavra é justamente essa) aos alunos a ilusão de que não precisam estudar a sério para exercerem sua profissão[5].

Estaríamos diante dos últimos juristas? Se os algoritmos atingem resultados inigualáveis aos nossos e se a prática jurídica como um todo pode ser pensada a partir da lógica da quantidade (em detrimento da qualidade), nossa obsolescência profissional parece inevitável. Os juristas também enfrentam, nesse sentido, uma flutuação decorrente do narcisismo coletivo apontado por Thomas Fuchs a respeito da própria humanidade, “entre o sentimento de onipotência e de impotência”. Para o autor, “tentamos compensar um profundo vazio interior ao nos espelharmos na inteligência digital, criando um ideal próprio em máquinas antropomórficas e imagens virtuais”. Ao fazermos essa projeção, obtemos um resultado paradoxal: “acreditamos cada vez mais na superioridade das nossas próprias criaturas artificiais; começamos a ter vergonha de nossa existência como seres terrestres de carne e osso; e o autoengrandecimento acaba se transformando em lamentável auto-humilhação” [6].

O juiz Prometeu

A tecnologia desenvolvida ao longo da modernidade parece substituir o papel das divindades que, durante o desenvolvimento do pensamento científico, deixaram de ser o modelo a partir do qual conduzíamos nossa formação e tínhamos consciência de nossas imperfeições. Na solidão do cosmos desencantado, criamos outra mitologia. Esse fenômeno é abordado pelo personagem de O Último dos Copistas: Ao consultarmos uma página de buscas sobre qualquer questão, é como se estivesse ali uma espécie de Posêidon, de deus dos mares profundos. “Ele mergulha e varre tudo com seu tridente, toda a memória acumulada e que não para de crescer. Numa fração de segundo, já retornou à superfície, exibe o seu poder. Às vezes me ocorre que esses algoritmos, que parecem ter vontade própria, que agem de forma dominadora e obscura, nos mostram os primórdios de uma mitologia – o surgimento de uma divindade, nos primeiros passos de sua criação”, reflete o editor de textos.

Na esperança de sermos Homo Deus, projetamos um caráter mitológico sobre as coisas. Reencantamos os entes criados por nós mesmos e, paradoxalmente, no sentido em que Fuchs reflete acima, atribuímos-lhes nuances divinas que acabam nos subjugando.

A esperança é um dos temas tratados no mito de Prometeu, o deus/titã, paladino da tecnologia nas palavras de Trajano Vieira [7], que rouba de Zeus o fogo e a técnica em benefício da humanidade. Em Hesíodo, a esperança é um dos males que Pandora carrega consigo em sua caixa. Ela, a primeira mulher, portadora de todos os sortilégios divinos, é esculpida e dada como vingança de Zeus a Prometeu e aos homens. Na versão de Ésquilo, Prometeu Prisioneiro, por sua vez, a “cega esperança” é um dos dotes dados por Prometeu aos homens, juntamente com o fogo e a técnica, roubados de Zeus. É a ideia de uma vida não mais regulada pela lei do cosmos, pela “temporalidade cíclica da natureza”; a técnica “dá facilmente a impressão de poder resistir aos efeitos do tempo e, diferentemente de todos os eventos humanos, de não estar submetida à consumação do devir, mas de desvelar, na sucessão das mudanças, aquele algo permanente que, crescendo a partir de si mesmo, é reconhecido como progresso[8].

Ao presentear os homens com a técnica sem o consentimento de Zeus, Prometeu confere um gênio criativo à humanidade, “que nos leva a supor o forte risco de que mais dia menos dia ele conduza os humanos a se considerarem deuses” [9]. O desafio criado pelo titã, nesse sentido, não consiste no roubo em si por ele praticado, mas na ruptura que tal ação causará ao cosmos na medida em que os homens, dotados de técnica, passem a se considerar deuses e, assim, subverterem a harmonia que rege o mundo.

Prometeu, o deus da tecnologia, é também aquele que tem o dom de antever o futuro, aquele “que compreende antecipadamente”, ao contrário de seu irmão, Epimeteu, “aquele que compreende depois do ocorrido”. A partir de seu dom, na interpretação de Galimberti, Prometeu vê por antecipação a queda dos deuses e da visão mítica do mundo, “incapaz de prefigurar a história que virá com a inauguração da técnica”. “As divindades míticas que garantem o ciclo do tempo serão eliminadas pela técnica, que está voltada para o progresso no tempo” [10]. Fabio Caprio problematiza a leitura de Galimberti quanto a este ponto específico. De acordo com a crítica do professor da PUC-RS, apresentada em palestra disponível online, a leitura do mito a partir de Hesíodo e Ésquilo nos faz concluir que Prometeu não previu a morte da mitologia enquanto tal, mas a tomada do poder de Zeus por um novo deus. É claro que, assim como fizeram Hesíodo, Ésquilo, Platão (o mito é contado em Protágoras), bem como outros intérpretes, o mito de Prometeu, como toda a mitologia, está sempre aberto a novas interpretações e maneiras de contar a narrativa. Inequivocamente, no entanto, Galimberti nos lembra que “a técnica não tende a um objetivo, não promove um sentido, não abre cenários, não redime, não desvenda a verdade: a técnica funciona”, afinal, “a técnica nada mais persegue que o próprio crescimento, um mero ‘sim’ a si mesma”.

Há célebres juízes mitológicos na filosofia jurídica. A literatura, nesse sentido, possui diversos modelos de juiz a serem explorados [11]. Ronald Dworkin apresentou seu juiz Hércules, um juiz de intelecto e sagacidade sobre-humanos, capaz de revolver a história institucional e justificá-la a partir dos melhores princípios políticos da comunidade para atingir a melhor resposta aos casos que devem por ele ser julgados. François Ost, por sua vez, apresenta três juízes – Júpiter, o juiz da transcendência dos códigos, Hércules, o juiz da imanência das demandas públicas, e Hermes, o juiz pós-moderno que decide em rede.

Pergunto-me, nesse sentido, se, diante dos últimos juristas prenunciados pelos sacerdotes da técnica, não estaríamos simultaneamente diante de um novo modelo de juiz: o juiz Prometeu. Aquele que concilia a previsão do futuro com a tecnologia. O juiz que, através do cálculo (“Inventei o prodígio das ciências – o cálculo”), antevê as predisposições de réus à reincidência. Que, diante da grande quantidade de casos em juízo, cria precedentes em formato de regras para o futuro, as quais abrangerão todas as situações, bem como mecanismos de identificação, catalogação e aplicação automática destas mesmas regras. Um juiz que nos dará novamente a cega esperança de sermos como deuses, livres das contingências e, parafraseando Dworkin, livres da responsabilidade de interpretarmos e decidirmos sobre as pessoas que queremos ser e a comunidade que pretendemos ter.

 


[1] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-ultimo-dos-copistas/

[2] FUCHS, Thomas. O que acontecerá com o ser humano? Em defesa de um novo humanismo. (In:) CASTRO, Fabio Caprio Leite de; NORBERTO, Marcelo (Orgs.). Subjetividade e cultura. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2024, p. 67.

[3] HARARI, Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das letras, 2016, p. 531.

[4] STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024.

[5]https://www.conjur.com.br/2024-jan-25/sobre-a-simplificacao-da-linguagem-do-direito-que-o-cnj-deseja/

[6] FUCHS, Thomas. O que acontecerá com o ser humano? Em defesa de um novo humanismo. (In:) CASTRO, Fabio Caprio Leite de; NORBERTO, Marcelo (Orgs.). Subjetividade e cultura. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2024, p. 66.

[7] ÉSQUILO. Prometeu prisioneiro. Edição bilíngue; tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2023.

[8] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006, p. 62.

[9] FERRY, Luc. Mitologia e filosofia: o sentido dos grandes mitos gregos. Tradução: Idalina Lopes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023, p. 168.

[10] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006, p. 57.

[11] STRECK, Lenio. TRINDADE, André Karam (Orgs.). Os modelos de juiz: ensaios de direito e literatura. São Paulo: Atlas, 2015.

Autores

  • é doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS, pós-doutorado em Direito Público (Unisinos), professor do PPG Direito Unesa-RJ, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

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