Opinião

Afinal, Buser e Uber são iguais?

Autores

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

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  • Rafael da Silva Alvim

    é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

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27 de julho de 2024, 6h34

O leitor já deve ter se deparado, ao navegar pela internet, com notícias que atribuíram à Buser, conhecida por explorar a modalidade do “fretamento colaborativo”, a alcunha de “Uber dos ônibus”[1]. De fato, essa forma de denominar a empresa até tem alguma razão de ser, na medida em que sua principal característica — assim como a da Uber — é a utilização de uma plataforma digital (que pode ser um site ou app) para que usuários solicitem viagens individuais ou coletivas. Não por acaso, a própria empresa se intitula “o app do ônibus”.

Divulgação/Buser

Com a aplicação de tecnologias de comunicação digital a atividades econômicas há muito conhecidas (como o transporte de passageiros), viabilizou-se a ampliação das possibilidades de compartilhamento de serviços entre os usuários de sistemas eletrônicos [2]. Tanto Uber quanto Buser podem ser entendidas como fenômenos da chamada “economia do compartilhamento” (ou sharing economy), que, segundo seus críticos, teria como elemento norteador, “como em qualquer outra troca econômica, a maximização individual dos ganhos; ao invés de um valor social extraordinário” (Gerhard; Silva Júnior; Câmara, 2019, p. 797).

Ocorre que, embora novas formas de mediação do acesso a bens e serviços por meios digitais sejam, em geral, recebidas com entusiasmo, não se pode perder de vista que as tecnologias ditas disruptivas trazem consigo o risco de provocar “o deslocamento das atividades econômicas de modelos de negócios estabelecidos de acordo com as regras e leis […] para negócios que operam além das fronteiras dos mesmos, aumentando as incertezas econômicas, políticas, tributárias, jurídicas e sociais” (Pitteri, 2016, p. 1).

De fato, as novidades trazidas pelo incremento tecnológico — por mais sedutor que seja o argumento da inovação — não são intrinsecamente boas. Merecem ser analisadas com muito cuidado, de forma a evitar “o abuso das vantagens decorrentes da inovação tecnológica, mormente na complexa realidade brasileira, em que o Poder Público […] não consegue atualizar de forma contínua e eficaz a regulamentação das inúmeras atividades econômicas praticadas no território nacional” [3], como recentemente concluiu, de modo unânime, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Com essa perspectiva, cabe-nos enfrentar a pergunta posta no título. O questionamento não é trivial. Afinal, o argumento das aparentes semelhanças (que, aliás, se exaurem no uso de aplicativos e no contexto da chamada sharing economy) entre Uber e Buser vem sendo frequentemente articulado em processos judiciais nos quais se põe em debate a legalidade do modelo de negócios concebido pela Buser, o já citado “fretamento colaborativo”. Um exemplo disso é o voto proferido pela juíza federal convocada Marcella Araújo da Nova Brandão, em apelação julgada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região [4]. Em sua fundamentação, S. Exa. observou que

“[…] o Buser não é comparável com o Uber, embora a demandada procure equiparar os serviços prestados por essas empresas. O serviço de táxi não se qualifica como serviço público ou organizado em rede para assegurar a sua universalidade, como se dá em relação ao transporte coletivo de passageiros. No julgamento do RE 1.054.110, o Supremo Tribunal Federal especificamente consignou que estava tratando de transporte privado individual de passageiros.”

Se colocarmos em confronto as duas atividades, sob o ponto de vista de suas implicações jurídicas, de fato veremos que, nem de longe, a Buser pode ser considerada a “Uber dos ônibus”. De início, a diferença mais evidente: a atividade econômica prestada pela Uber é o transporte remunerado privado individual de passageiros, definido pelo artigo 4º, X, da Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) como o “serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede”.

De outro lado, a Buser se remunera do que diz ser a “intermediação” do serviço de fretamento eventual, na medida em que — de acordo com seus próprios Termos de Uso [5] —, conectaria grupos de usuários a empresas cadastradas “que prestam serviço de transporte coletivo privado de passageiros na modalidade de fretamento eventual”. Este, por sua vez, é definido pelo artigo 3º, XI, do Decreto Federal nº 2.521/1998 como “o serviço prestado à pessoa ou a um grupo de pessoas, em circuito fechado, com emissão de nota fiscal e lista de pessoas transportadas, por viagem, com prévia autorização ou licença da Agência Nacional de Transportes Terrestres — ANTT”.

Essa distinção, por si só, já produz repercussões em diversos aspectos jurídicos e regulatórios inerentes a um e outro serviços, que aprofundam ainda mais as diferenças entre Buser e Uber. Ora, basta atentar para o fato de que os efeitos da operação da Uber se projetam sobre o serviço de táxi, caracterizado pela “utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros”, nos termos do artigo 2º da Lei Federal nº 12.468/2011. A propósito, como se sabe, o táxi é considerado serviço de utilidade pública, de acordo com o artigo 12 da Lei da PNMU.

De modo diametralmente oposto, os efeitos do “fretamento colaborativo” vêm sendo suportados no âmbito do serviço público de transporte coletivo, que, inclusive, foi alçado à condição de direito fundamental social, ao ser inserido no caput do artigo 6º da Constituição. Diferentemente do serviço de utilidade pública, o serviço público é titularizado pelo Estado, explorado diretamente ou por meio de delegatários, e se reveste de uma série de características específicas, com a finalidade de que seja prestado à população em geral com regularidade, continuidade, generalidade, modicidade de tarifas, dentre outros requisitos (de acordo com o artigo 6º, § 1º, da Lei Federal nº 8.987/1995).

Dessa forma, ao passo que a Uber se insere no mercado do transporte individual remunerado de passageiros, viabilizando uma competição saudável entre os seus motoristas parceiros e os autorizatários do serviço de táxi (que, lembre-se, é de utilidade pública), a Buser interfere na prestação de um serviço público altamente regulado e cometido apenas aos prestadores capazes de demonstrar ao Poder Público que detêm condições de o explorar dentro de inúmeras balizas legais e regulatórias. A intervenção da Buser, como também reconheceu o STJ no acórdão já citado, produz concorrência desleal com as empresas delegatárias do serviço público de transporte coletivo de passageiros.

Enquanto a atividade econômica da Uber promove a concorrência entre agentes econômicos submetidos às mesmas “regras do jogo”, a Buser pretende disputar o mercado de transporte coletivo se valendo de um conjunto de regras definido por ela própria: em suma, explora a intermediação de um fretamento eventual prestado com características de serviço regular. Noutras palavras, a Buser se remunera de uma modalidade de serviço privado de transporte de pessoas, prestado inteiramente sob uma lógica de mercado e em proveito precípuo dos agentes econômicos que dele participam, mas sem dispensar o que há de mais atrativo no serviço regular: a não submissão à regra do circuito fechado.

Como não presta serviço público, a Buser não precisaria admitir gratuidades ou cumprir itinerários pouco lucrativos; como não é delegatária do Estado, não teria de se submeter a complexos processos licitatórios ou operar a partir de balizas definidas em contrato administrativo; como é apenas um “aplicativo de intermediação”, não sofreria quaisquer das consequências da ação regulatória que recai sobre seus “fretadores parceiros”, quando identificada pela fiscalização a prestação do fretamento eventual em circuito aberto.

Em suma, como teria “inventado” uma modalidade nova, criando as suas próprias regras, não teria que se subordinar à regulação, à fiscalização, à sanção — em suma, ao poder de polícia —, porque a (aparente) “ausência de regulação” não poderia justificar quaisquer restrições à sua atividade econômica.

Esse debate, inexistente no caso Uber, é absolutamente central para se entender as implicações jurídicas e regulatórias do “fretamento colaborativo”. De fato, assim como os motoristas parceiros da Uber, os taxistas não precisam conduzir passageiros gratuitamente; não precisam cumprir itinerários predeterminados pelo Poder Público (por isso mesmo, não operam sob uma lógica compensatória, organizada em rede); não respondem objetivamente por danos causados a seus passageiros.

Essa paridade de condições simplesmente não se verifica no contraste ente “fretamento colaborativo” e serviço regular, porque, em síntese, as empresas de ônibus se sujeitam a um regime jurídico completamente diferente daquele a ser observado pelos fretadores, muito embora ambos atendam a um mesmo público (os usuários do transporte coletivo).

Semelhanças e diferenças

Portanto, não é difícil ver que a Buser não é a “Uber dos ônibus”. O argumento — que não tem outro intuito senão o de ver aplicada à modalidade do “fretamento colaborativo” a mesma ratio que orientou a conclusão do Poder Judiciário pela licitude da Uber — não resiste a uma análise ligeiramente mais cuidadosa. As semelhanças, como vimos, se limitam (i) à operação no mercado de transporte de pessoas; (ii) à utilização de plataforma digital (site ou app); e (iii) ao apelo das tecnologias ditas disruptivas ao discurso da inovação, numa acepção ampla, no contexto da tecnologia do compartilhamento.

Entretanto, as diferenças entre Uber e Buser são muito maiores e mais profundas do que as semelhanças. Primeiro: os aplicativos se propõem a intermediar atividades econômicas completamente distintas (transporte remunerado privado individual de passageiros, de um lado, e fretamento eventual, de outro).

Segundo: ao passo que a Uber promove competição legítima entre motoristas parceiros e taxistas, a Buser estabelece concorrência desleal — como reconhecido pelo STJ — com as empresas do serviço regular. Terceiro: enquanto as condições essenciais da prestação do transporte privado individual não foram alteradas pela Uber (salvo pela solicitação de corridas pelo uso de um aplicativo), a Buser pretende explorar modalidade de transporte privado coletivo em aberta desconformidade com sua própria definição legal, ao argumento de que estaria, amparada pelo princípio da livre iniciativa [6], promovendo a “inovação” no mercado.

Quarto: motoristas parceiros e taxistas estão, ambos, sujeitos à lógica da livre concorrência e da busca do lucro e prestam atividade privada, não sendo a eles imposta a condução de passageiros gratuitamente, a operação em itinerários predeterminados, ou a responsabilidade civil objetiva em caso de dano, por exemplo. De outro lado, o fretamento eventual (privado) não está sujeito a qualquer dos ônus regulatórios que devem ser cumpridos pelas empresas do serviço regular (público), como a condução de gratuidades (ou garantia de descontos), a realização de viagens em itinerários estabelecidos pelo Estado (ainda que pouco lucrativos), e a responsabilidade civil objetiva, decorrente do artigo 37, § 6º, da Constituição.

Quinto: diferentemente da Uber, a Buser ingressou no mercado com o discurso da invenção de uma “nova modalidade” de fretamento, que, não sendo expressamente prevista e disciplinada pela regulação, poderia ser livremente explorada. Contudo, não se trata verdadeiramente de uma nova modalidade, senão apenas do fretamento eventual prestado com características de serviço regular (como a venda de bilhetes de passagem, expressamente vedada pelo artigo 13, V, “a”, da Lei Federal nº 10.233/2001).

A distinção precisa entre Uber e Buser é fundamental não apenas para o adequado tratamento judicial das inúmeras discussões já existentes sobre o “fretamento colaborativo”. Mais do que isso, separar o joio do trigo é essencial para informar adequadamente os próprios usuários sobre as graves repercussões que — ao contrário da Uber — a operação da Buser pode provocar sobre a universalidade, a modicidade tarifária, dentre inúmeras outras características necessárias à prestação de um serviço regular de qualidade a todos.

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Referências bibliográficas
GERHARD, Felipe; SILVA JÚNIOR, Jeová Torres; CÂMARA, Samuel Façanha. Tipificando a economia do compartilhamento e a economia do acesso. In Revista Organizações & Sociedade, v. 26, n. 91, p. 795-814, out./dez. 2019.

PITTERI, Sirlei. Tecnologias disruptivas e seus reflexos na economia e governos. In Boletim do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia (CEST/USP), vol. 1, n. 8, out./2016.

[1] Como exemplo, pode-se citar matéria veiculada no Portal UOL, em 21 de julho de 2023, com a seguinte manchete: “’Uber dos ônibus’ gasta R$ 50 mi com ações judiciais para operar no Brasil”. Disponível em: https://www.uol.com.br/carros/colunas/paula-gama/2023/07/21/buser-vai-gastar-r-50-milhoes-com-acoes-judiciais-contra-o-negocio-em-2023.htm. Acesso em: 15 jul. 2024.

[2] O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF n. 449 (conhecida como o “caso Uber”), afirmou que os benefícios causados pela “atuação de aplicativos de transporte individual de passageiros são documentados na literatura especializada, que aponta, mediante métodos de pesquisa empírica, expressivo excedente do consumidor (consumer surplus), consistente na diferença entre o benefício marginal na aquisição de um bem ou serviço e o valor efetivamente pago por ele, a partir da interação entre a curva de demanda e o preço de mercado […]”. (ADPF 449, Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julg. em 08.05.2019. DJe 02.09.2019)

[3] REsp n. 2.093.778/PR, rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julg. em 18/6/2024, DJe de 2/7/2024.

[4] Apelação Cível n. 5005307-11.2019.4.02.5101, Rel. para o acórdão Des. Federal THEÓPHILO ANTÔNIO MIGUEL FILHO, 7ª TURMA ESPECIALIZADA, julg. em 13.12.2023, DJe de 30.01.2024.

[5] Disponível em: https://www.buser.com.br/sobre/termos-de-uso-do-usuario. Acesso em: 15 jul. 2024.

[6] Aliás, como notado pelo Ministro Luis Roberto Barroso, a quem coube a relatoria do ARE n. 1.104.226-AgR, os incisos que preenchem o art. 170 da Constituição Federal “claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, mas social, e que pode, consequentemente, ser limitada”. (ARE n. 1.104.226-AgR, rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julg. em 27.04.2018, DJe de 25.05.2018)

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Público pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp, presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal, professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

  • é mestrando em Direito (UnB). Especialista em Direito Administrativo (IDP). Sócio de Silveira & Unes Advogados.

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