Controvérsias Jurídicas

Lavagem: ocultação posterior do produto do crime é mero exaurimento

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25 de julho de 2024, 16h23

A Lei de Lavagem exige um elemento subjetivo especial para configuração do crime. Não basta que o agente pratique qualquer conduta de ocultação ou dissimulação, sendo necessário que aja com o intuito de mascarar a origem ilícita do bem obtido para sua subsequente reinserção na economia com aparência de licitude. Por essa razão, condutas como a de esconder dinheiro embaixo do colchão ou guardá-lo em baú, por mais que representem modalidades de ocultação, não estão imbuídas do dolo específico inerente à configuração do crime de lavagem, constituindo mero exaurimento do delito anterior.

Não há uma nova ação destinada a limpar o dinheiro sujo ou a lhe conferir aparência de legalidade, mas simples disposição do bem ilicitamente incorporado ao patrimônio do agente. Nessa linha, o STJ já procedeu ao trancamento de ação penal sob o argumento de que “o crime de lavagem de capitais exige escondimento do dinheiro ilícito, por ocultação ou dissimulação. Necessário é que se possa com a manobra de lavagem distanciar, dissociar o dinheiro de sua origem[1].

Quando se pratica uma empreitada criminosa, da qual decorrerá um produto ou proveito econômico, é de se esperar que o agente venha a guardar ou dispor desses valores. Quem furta uma carteira com dinheiro pretende gastá-lo, quem aplica um estelionato persegue algum proveito econômico posterior. Em todos esses casos, a fruição do produto do crime antecedente não passa de uma destinação normal dada pelo agente, ou seja, mero exaurimento do crime anterior.

Distinção entre lavagem de dinheiro e exaurimento

Punir como lavagem de dinheiro tais condutas implicaria inaceitável bis in idem, já que o exaurimento está inserido no contexto do delito já cometido. É seu esgotamento natural. O bem jurídico tutelado pelo tipo penal da lavagem de dinheiro não se confunde com o do crime antecedente, podendo ser tanto a administração da justiça quanto a ordem econômica, a depender do caso. Quando o agente passa a agir como se fosse o legítimo possuidor dos valores, tal comportamento, por si só, não configura a lavagem de dinheiro, sendo necessário que atue para branquear o dinheiro sujo, de modo a produzir uma imagem de normalidade de seu patrimônio.

Assim, sua configuração exige a realização de uma nova conduta criminosa, distinta da prática delituosa anterior e dela destacada, por meio da qual o agente dificulta a ação da justiça, mediante expediente dissimulador ou por ocultação. Dispor simplesmente do produto do crime ou guardá-lo como se fosse seu, nada mais é do que lhe dar normal destinação, dentro da linha de desdobramento causal previsível e esperada.

É precisamente neste ponto que reside a diferença entre a lavagem de dinheiro e o exaurimento. Outrossim, nas hipóteses em que não há exaurimento, necessário distinguir-se a lavagem de dinheiro do favorecimento pessoal (artigo 349 do CP), cuja pena privativa de liberdade é bem menor, detenção de 6 meses a 1 ano, justamente porque aqui não há ação destinada à reinserção do produto do crime no mercado com aparência de normalidade [2].

O que configura, portanto, a lavagem de dinheiro não é a normal disposição do produto ou proveito obtido, mas o dolo de mascarar, disfarçar, maquiar, limpar a origem ilícita do produto do crime para lhe conferir aparência de capital lícito.

Spacca

Nesse sentido, para o Supremo Tribunal Federal “a lavagem de dinheiro é entendida como a prática de conversão dos proveitos do delito em bens que não podem ser rastreados pela sua origem criminosa. A dissimulação ou ocultação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos proveitos criminosos desafia censura penal autônoma, para além daquele incidente sobre o delito antecedente” [3].

E, ainda, “a lavagem de dinheiro constitui crime autônomo em relação aos crimes antecedentes, e não mero exaurimento do crime anterior. A lei de lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98), ao prever a conduta delituosa descrita no seu art. 1º, teve entre suas finalidades o objetivo de impedir que se obtivesse proveito a partir de recursos oriundos de crimes, como, no caso concreto, os crimes contra a administração pública e o sistema financeiro nacional[4].

Diante disso, a posse, o uso, o recebimento ou a aquisição de bens em nome próprio são fatos atípicos sob o prisma da Lei nº 9.613/98. Não comete crime o agente que utiliza o dinheiro do furto para pagar suas contas ou que financia a casa própria com dinheiro de propina. Também não responde por lavagem o agente que enterra o dinheiro no jardim de casa ou o guarda em depósito, a fim de gastá-lo posteriormente [5].

Esse também é o entendimento do STJ, segundo o qual “existindo ocultação ou dissimulação sobre natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade do produto derivado de crime contra o sistema financeiro nacional, é possível a caracterização de simples exaurimento desse crime ou até mesmo receptação ou favorecimento real, delitos previstos no Código Penal e merecendo apuração em sede própria, inexistindo, a rigor, lavagem de dinheiro, sob pena de desatenção ao princípio da legalidade estrita (CF, art. 5º, XXXIX, e CP, art. 1º). A previsão legal expressa não permite questionar a conclusão recorrida de que o simples uso ou movimentação de valores oriundos do crime não configuram lavagem de dinheiro, que exige o fim de camuflagem, em lei indicado como ocultação ou dissimulação[6].

Corroborando todo o exposto, o STF entende que “o recebimento dos recursos por via dissimulada, como o depósito em contas de terceiros, não configura a lavagem de dinheiro. Seria necessário ato subsequente, destinado à ocultação, dissimulação ou reintegração dos recursos[7].

No campo da doutrina, há quem faça ressalvas à atipicidade no uso do produto ilícito para investimento na reiteração criminosa, como no caso de utilização do dinheiro proveniente de organização criminosa para o custeio da graduação de seus integrantes no curso de direito, os quais posteriormente atuarão na defesa de seus interesses. Maria Gutierrez Rodrigues [8] indica que a jurisprudência espanhola caminha no sentido da tipificação da lavagem de dinheiro nesses casos.

Pierpaolo Cruz Bottini rechaça a possibilidade, sob o argumento de que “tal ato se limita a transformar os recursos ilícitos em instrumentos do novo crime. O agente não confere, nem visa conferir aparência de legalidade aos valores, ao contrário, volta a inseri-los no contexto de criminalidade[9].

Neste caso, parece mais correta a posição de que não existe ação de lavagem, mas mero gasto do dinheiro sujo, ainda que com a finalidade de produzir futuros malefícios por meio de novos crimes. Mesmo revestida de maior perniciosidade social, a ação se esgota no dispêndio dos valores ilícitos, como mero exaurimento [10].

Declaração no IR

Outro exemplo interessante refere-se à declaração de valores obtidos de forma ilícita no Imposto de Renda. Nesse caso, entendemos pela tipicidade da conduta, pois a declaração de patrimônio ilícito no imposto de renda caracteriza dissimulação, pois o agente pretende simular que auferiu o patrimônio de forma lícita e, por conseguinte, dificultar o rastreamento dos ativos. Aqui, além da dissimulação, existe o elemento subjetivo específico de distanciar o bem de sua origem ilícita a fim de conferir-lhe aparência de legalidade.

Na mesma linha, o STF: “demonstrada a incompatibilidade entre os rendimentos auferidos pelo denunciado, as quantias movimentadas em suas contas-correntes e os valores em espécie declarados à Receita Federal, o que caracteriza a formação dolosa de patrimônio lícito inexistente, conduta que perfeitamente amolda-se ao delito previsto no art. 1º, caput, da Lei n. 9.613/98[11].

Conclusão

Em suma, a lavagem de dinheiro se diferencia do post factum não punível porque ela não se resume à simples guarda ou disposição dos valores ilicitamente adquiridos. Trata-se de uma nova ação realizada pelo agente, visando a conferir aparência de legitimidade aos bens criminosamente obtidos, para ulterior fruição.

É necessário o dolo de escamotear, encobrir mediante rodeios e subterfúgios, os ativos de origem ilícita, colocando-os fora do alcance dos órgãos de controle. A lavagem exige a realização de um ardil, não podendo se limitar à guarda ou mera disposição do produto do crime, já que estas estão diretamente vinculadas à mesma linha de desdobramento causal do crime anterior e não podem configurar delito autônomo.

 


[1]  RHC nº 79.537/SP 2016/0325719-7, rel. min. Nefi Cordeiro, j. 12-12-2017, 6ª T., DJe 1912-2017.

[2] CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Fabia. Lavagem de Dinheiro: comentários à Lei n. 9.613/1998. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 116.

[3]  Inq nº 3.995/DF 0000065-81.2015.1.00.0000, rel. min. Celso de Mello, j. 11-10-2018, DJe 17-10-2018.

[4]  Ap nº 470/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 7-12-2012, publ. 22-4-2013.

[5] CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Fabia. Lavagem de Dinheiro: comentários à Lei n. 9.613/1998. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 117.

[6]  REsp nº 1.338.019/CE 2012/0168786-0, rel. min. Nefi Cordeiro, DJ 10-6-2016.

[7]  AP nº 644/MT 9954524-88.2011.1.00.0000, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T., j. 27-2-2018.

[8]  RODRÍGUEZ, Maria Gutiérrez. Acelerar primero para frenar después: la búsqueda de criterios restrictivos en la interpretación del delito de blanqueo de capitales. Revista General de Derecho Penal, n. 24, p. 9, 2015.

[9]  BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei n. 9.613/98, com alterações da Lei nº 12.683/2012. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 126.

[10] CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Fabia. Lavagem de Dinheiro: comentários à Lei n. 9.613/1998. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 118.

[11] AP: 996 DF, relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 15/10/2020, Data de Publicação: 19/10/2020.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

  • é advogada, professora, mestranda em Direito pela PUC-SP, especialista na Tutela de Direitos Difusos e Coletivos, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu (IDPEE) da Universidade de Coimbra (Portugal), ex-assessora chefe do Procon-SP (2019-2022) e ex-assessora jurídica da Alesp.

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