Opinião

Da necessidade de solução para os bens essenciais não considerados 'de capital'

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25 de julho de 2024, 18h28

A Lei 11.101/2005, nos parágrafos 7-A e 7-B do artigo 6º, menciona “bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial” ao dispor sobre a competência do juízo recuperacional para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre referidos bens.

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De igual modo, em seu artigo 49, §3º, o qual prevê as exceções legais de sujeição à recuperação judicial, a lei menciona não ser permitido, durante o stay period, “a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.

A Lei 11.101/2005 não traz, contudo, o conceito de bens de capital essenciais.

O Decreto nº 2.179/97 define bens de capital, em seu artigo 2º, para fins do próprio Decreto:

Art. 2º Para os fins deste Decreto, consideram-se:

I – “Bens de Capital”: máquinas, equipamentos, inclusive de testes, ferramental, moldes e modelos para moldes, instrumentos e aparelhos industriais e de controle de qualidade, novos, bem como os respectivos acessórios, sobressalentes e peças de reposição, utilizados no processo produtivo e incorporados ao ativo permanente;

Esse conceito aplicado à Lei 11.101/2005 é criticado por parte da doutrina, a exemplo do professor Paulo Penalva e do ministro Luis Felipe Salomão:

No entanto, essa não deve ser a única interpretação à expressão “bens de capital” prevista no § 3º do art. 49. Para a finalidade da Lei 11.101/2005, é razoável entender que o capital de giro da sociedade em recuperação seja considerado essencial para o seu funcionamento, da mesma forma que o são os equipamentos e demais bens utilizados na sua produção.

Salomão, Luis Felipe; Santos, Paulo Penalva. Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência – Teoria e Prática (Portuguese Edition) (p. 449). Forense. Edição do Kindle.

Apesar disso, é o conceito que vem sendo aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça. No REsp 1.758.746/GO, o bem de capital restou definido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça como “bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period“.[1]

Nesse sentido, o STJ excluiu o dinheiro, recebíveis e grãos, por exemplo, da proteção prevista nos artigos 6º e 49 da Lei 11.101/2005.

Inclusive, no REsp 1.991.989 MA, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ficou claro o entendimento de que o produto final da atividade empresária, inclusive produtos agrícolas, não pode ser enquadrado como bem de capital essencial, posto que é, na verdade, objeto de comercialização pela recuperanda, e não o aparato essencial à sua produção. [2]

Problema dos bens essenciais que não são admitidos como ‘de capital’: trava bancária, recebíveis, capital de giro, grãos

A definição de bem de capital essencial gerou alguns problemas nos procedimentos recuperacionais em virtude da expropriação de bens que são essenciais, mas não são considerados “de capital”, tais como as travas bancárias, recebíveis, bloqueios em contas do capital de giro das empresas, retirada dos grãos e produtos do estoque.

Como se sabe, a expropriação desses bens pode inviabilizar as atividades das empresas que, em sua maioria, realizam operações com alienação fiduciária ou cessão fiduciária, o que passou a ser exigência dos bancos uma vez que créditos com essas garantias não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial.

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Ademais, sob a ótica da atividade rural, vale destacar que os créditos e garantias cedulares vinculados à CPR (Cédula de Produto Rural) com liquidação física não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial em caso de antecipação do preço, ou representativa de operação de troca por insumos (barter), nos termos do artigo 11 da Lei 8.929/1994.

Mais uma vez, coloca-se em risco a atividade da recuperanda, pois, em que pese os grãos não sejam, por definição, considerados bens de capital, são, em muitos casos, essenciais para a manutenção das atividades da devedora, indispensáveis para que os produtores possam fazer o seu negócio girar.

Nesta toada, importante trazer à tona o posicionamento do juiz Renan Carlos Leão Pereira do Nascimento, titular da 4ª Vara Cível de Rondonópolis (MT), que, nos autos do processo nº 1007913-24.2023.8.11.0003, ID 130969738, entendeu que os grãos produzidos por produtores rurais podem ser considerados bens de capital essenciais e devem ser mantidos em sua posse, flexibilizando o conceito de bem de capital essencial.

De se chamar atenção que, nesse mesmo processo e em outros, de forma semelhante, o Juízo decidiu que a essencialidade dos bens deverá ser apreciada e decidida caso a caso, com a oitiva do administrador judicial que acompanhará com proximidade o desenvolvimento das atividades das recuperandas e poderá discorrer, com precisão, acerca da essencialidade de cada um em específico.

Vale salientar que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso já entendeu que a análise da essencialidade deve ser realizada de forma individualizada, sob pena de desprestigiar o sistema de garantias [3].

Situação do ponto de vista do credor

O credor, por óbvio, irá buscar o cumprimento da lei no sentido de que seu crédito seja considerado extraconcursal e, consequentemente, possa retirar de imediato os bens das recuperandas que não são de capital, ainda que considerados “essenciais” para as devedoras, objetivando o recebimento do seu crédito antecipadamente.

Há quem defenda que a restrição a bens de “capital” essenciais não seria à toa, pois apenas os bens corpóreos e duráveis podem ser mantidos na posse da devedora durante o stay period e depois entregues ao credor. Já os bens consumíveis, tais como dinheiro, grãos etc., não oferecem a mesma solução, pois, uma vez consumidos, não haveria mais garantia.

Nesse aspecto, não se pode pensar apenas na empresa em soerguimento. O credor fiduciário detém um direito que não pode, nem deve ser mitigado a qualquer custo, sobretudo considerando que a segurança jurídica é extremamente importante para a existência do crédito.

Este é um cenário em que não é fácil a realização de acordo entre as partes. Não se pode contar com a empatia empresarial (citada pelo economista João Rogério Alves Filho, durante live, ao analisar que, durante a pandemia, os credores adotaram uma posição mais amena em relação às cobranças). O credor está preocupado em receber seu crédito, e não na análise da repercussão da retirada dos bens da empresa devedora.

Justamente por isso, a Lei 11.101/2005 criou a previsão do stay period e da suspensão das execuções em face da recuperanda. Porém, infelizmente, a lei deixou diversos credores fora do procedimento recuperacional.

Nessa esteira, faz-se necessário encontrar um meio termo, que atenda tanto ao credor não sujeito quanto ao devedor para que, ao final, atenda, também, todos os credores concursais.

Busca por uma solução ponderada

De um lado, o credor na ânsia de receber seu crédito, buscando exercer o direito de propriedade garantido pela alienação ou cessão fiduciária. De outro, o devedor que, se perder aquele bem essencial, que pode não ser de capital, não conseguirá se soerguer.

É preciso buscar um meio termo.

Afastamento da cláusula de vencimento antecipado

Uma das soluções que entendemos viável é o afastamento da cláusula que prevê o vencimento antecipado do contrato em caso de pedido de recuperação judicial.

A referida cláusula põe em risco o soerguimento da empresa, não apenas pela corrida, por parte dos credores, para recebimento de seus créditos com a retirada de todo recurso disponível da recuperanda, como também por afastar dos credores qualquer interesse em negociar com a devedora.

Autorizar a antecipação dos vencimentos das parcelas dos contratos e a retirada de todo o capital da companhia, além de implicar na inviabilidade da recuperação judicial, posto que a companhia ficaria sem capital de giro, implicaria, também, o desestímulo ao acordo, posto que os credores iriam preferir retirar o máximo de capital possível, sem dialogar.

Com isso, para manter o equilíbrio e estimular a negociação, entende-se que os credores detentores de cessão fiduciária de direitos creditórios poderiam ficar autorizados a receber apenas a parcela mensal, e os credores detentores de cessão fiduciária de valores em conta ficariam autorizados a retirar das contas apenas o valor da parcela mensal.

Renovação da garantia como resolução ponderada

Não obstante, se afastar a cláusula de vencimento antecipado ainda não for suficiente, poderia o Juízo competente estabelecer o parcelamento do débito, renovando garantias, se necessário.

A solução pode estar em uma ponderação da necessidade de acesso ao capital mínimo necessário por parte das empresas recuperandas e a necessidade de cumprimento da obrigação, estabelecendo um percentual da receita para pagamento da dívida e um percentual para a manutenção das atividades da empresa.

E, se necessário, em interpretação por analogia ao § 5º do artigo 49, substituir ou renovar a garantia, inclusive por garantias futuras.

Não desconhecemos que a grande diferença está na não sujeição do crédito garantido por cessão fiduciária e na sujeição do crédito garantido por penhor, previsto no § 5º do artigo 49.

Contudo, nos parece possível seguir o mesmo entendimento e admitir que haja uma substituição, ou renovação, do crédito cedido fiduciariamente, permitindo que parte dos recebíveis seja utilizada para pagamento do crédito e outra parte seja destinada à manutenção das atividades da empresa, e haja a renovação da garantia por outros créditos futuros. O mesmo pode ser aplicado com grãos ou outras garantias.

Tomando como exemplo a cessão fiduciária de recebíveis de cartão de crédito: se todo crédito da venda for transferido ao credor, ou a recuperanda deixará de vender pelo cartão de crédito (e o credor não receberá mais nada), ou poderá ficar sem recursos básicos para sua manutenção.

Por outro lado, se todo o recurso for destinado à recuperanda, o credor ficará sem receber seu crédito, o que não é justo.

Nos parece adequada a destinação de parte do valor recebido ao pagamento da dívida, e parte ao caixa da empresa. Assim, a empresa continuará ativa e o credor receberá seu crédito, ainda que em um prazo mais longo.

Diante do acima exposto, acreditamos que essa solução ponderada estaria justamente no parcelamento da dívida com renovação da garantia. Tal renovação poderia consistir, por exemplo, na cessão fiduciária de outros créditos futuros, na prorrogação da cessão fiduciária de recebíveis de cartão de crédito, ou na alienação fiduciária de safra futura.

No caso da safra, se toda a safra for utilizada para pagamento ao credor, a recuperação da empresa será improvável. Por outro lado, se a safra for mantida para a recuperanda, esta irá vender e o credor ficará sem garantia. O ideal seria que parte da safra seja destinada ao cumprimento da obrigação com o credor e parte utilizada na manutenção da atividade do devedor. E para evitar que o credor seja prejudicado, pode ser constituída garantia da safra futura.

De todo modo, entendemos que é preciso estimular a solução do caso por meio de acordo entre devedor e credor, que podem encontrar um resultado positivo de forma conjunta, utilizando-se a mediação, inclusive.

Não sendo possível conciliar, cabe ao Juízo competente, ouvindo ambos os lados, decidir sobre, caso a caso, a melhor forma de satisfação da obrigação sem prejudicar a continuidade da empresa e garantir a segurança jurídica em relação ao direito do credor.

 


[1] STJ – REsp: 1758746 GO 2018/0140869-2, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 25/09/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/10/2018

[2] STJ – REsp: 1991989 MA 2021/0323123-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/05/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2022

[3] TJ-MT – AI: 10178535620228110000, Relator: SEBASTIAO DE MORAES FILHO, Data de Julgamento: 26/04/2023, Segunda Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/05/2023

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